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PAPAI VITALINO

O Sr. Vitalino tinha o hábito de ler os jornais todas as manhãs. Esperava ansiosamente pela chegada do mesmo, o que se dava geralmente às 5 e meia e 6 horas, um pouco depois dele retornar para cama, após ter ido pela segunda ou terceira vez ao banheiro durante a noite para urinar, em razão da sua próstata “fundida” (não vá confundir com outra palavra leitor). Tivesse adotado as medidas preventivas como o seu médico do Círculo Operário por diversas lhe recomendara, ao invés de duas ou três, iria apenas uma, ao banheiro, durante a noite, como era hábito nos seus tempos de mocidade. Mas o Sr. Vitalino era um sujeito turrão, teimoso, daqueles que não se deixa convencer por opiniões alheias. A menos que não as encontre nos jornais, aquele enrolado bonitinho que o menino da bicicleta durante anos e o cara da moto, atualmente, atiravam no corredor da casa dos fundos, onde morava, havia já vários anos, desde que tivera de vender tudo que tinha, ou seja, sua modesta casinha financiada, para que o finado Dr. Vladmir mexesse os pauzinhos e evitasse que seu filho, aquele moleque peralta, inconseqüente, mofasse na cadeia. Tudo por causa da ausência da mãe, acreditava o Sr. Vitalino, que os abandonara pra viver com um sujeito vagabundo, ignorante, caoio, manco, mas que devia satisfazê-la, sabe-se lá por qual milagre da natureza, muito mais que o Sr. Vitalino.

Certa manhã, fora buscar pães e leite na Mercearia da Ana, que um dia fora do Sidney (o inveterado jogador da Mega Sena), quando fora rendido por dois moleques, enquanto montava em sua bicicleta, estacionada na calçada. Encostaram-lhe um cano na cabeça, tomaram-lhe a bicicleta e fugiram. Nem o próprio Sr. Vitalino nem ninguém esboçaram reação. Nunca mais vira sua bicicleta, certamente trocada, minutos depois, em alguma boca de fumo nas beiradas de São João (O Batista) do Rio Claro.

A partir daquele dia, as coisas mudaram na vida do Sr. Vitalino. Diante da experiência nada agradável da morte iminente, resolveu rever os seus conceitos. As críticas ao governo, à igreja, às autoridades, aos artistas e aos jogadores de futebol, aos vizinhos, aos coletores de lixo e de reciclagem que na pressa da lida diária sempre derrubavam algum excesso no meio do caminho, desapareceram de sua boca. O Sr. Vitalino percebeu que as pessoas erram, feito aqueles moleques que lhe apontaram uma arma contra a cabeça, por razões várias, dentre elas, a ignorância, o inconformismo, mas, sobretudo, pela falta de esperança, de perspectiva.

Não consertaria o mundo, mas, faria a sua parte, estava decidido. Compreendeu que o mal deve sim ser observado, mas para fins educativos, para fortalecer a certeza de que não é o melhor caminho a ser seguido, porque de modo algum o mal construirá a felicidade possível, permitirá a paz interior, sem a qual, nenhuma vitória por mais admirável que seja, se justifica.

Diante de cenas de maldade que presenciava, seja ao vivo e a cores, na tevê ou nas páginas de jornais e revistas, ao invés de lançar sua ira, palavras ofensivas, passara a orar a Deus por aquelas pessoas. Todas elas, as que haviam praticado e as que haviam sofrido  a maldade.

Passara a se interessar por leituras edificantes, afinal, haviam tantas disponíveis, e gratuitamente. Descobriu que a cidade tinha várias bibliotecas públicas, onde podia ter acesso a livros de autores realmente interessados no progresso da humanidade. Então passou a freqüentar uma delas semanalmente. Fizera amizades com as sempre educadas e atenciosas atendentes, e com pessoas, também leitores, que até então desconhecia.

Mas percebeu que algo ainda lhe faltava. Algo mais contundente, que poderia ser a sua definitiva contribuição para essa gigantesca obra de redenção espiritual da humanidade, em curso, ainda que poucos a percebam, porque envolvidos absoluta e completamente apenas com os valores materiais do mundo.

Trabalhava duro pela manhã e à tarde, como pintor de edificações, lotado na Secretaria da Educação da Prefeitura local. E ganhava para o seu sustento. Percebeu que ganharia muito mais se deixasse de freqüentar os bares da cidade, após o expediente. Haveria mais dinheiro no seu bolso, e mais carinho e atenção da parte dos filhos já casados e resolvidos na vida,  mas que por causa de sua mudança de hábitos, ao invés de visitá-lo a cada 15 dias, passaram a visitá-lo todo final de semana.

Na sua rotina de trabalho, percebeu o Sr. Vitalino que as crianças da escola, na idade de 7 a 14 anos ainda dedicavam algum tempo para a prática do futebol, em detrimento do celular e da internet. Então, resolveu que poderia fazer feito o seu pai e formar um timinho da escola, uma vez que esta não tinha em seu quadro de funcionários, a indispensável figura do professor de Educação Física.

Com o dinheiro que economizara dos goles deixados de tomar nos bares da cidade, comprou um jogo de camisa de segundo mão, de um parceiro seu de bilhar, também frequentador do Bar do Tobias. Ao seu vizinho, pediu que pudesse limpar o terreno na esquina da rua onde moravam, de propriedade dele, para que as crianças ali pudessem brincar de futebol. Foi conversando com um menino, com outro, e mais outro, durante o recreio da escola. Combinaram de se reunir aos sábados à tarde e aos domingos pela manhã, e à tarde também, porque não? Conseguiram com o Tobias do bar, os caibros pra fazer as traves de madeira, o apito do juiz do jogo (o próprio Sr. Vitalino) fora a dona Florinda, a costureira da rua, quem dera. E logo o Tobias estava fornecendo a água mineral em copinhos, o Pinóquio estava todos os meses cortando o cabelo da molecada, de graça, desde que os pais  acompanhassem os filhos, integrantes do timinho de futebol da rua. Mas usasse essa expressão “timinho” pra molecada do Seu Vitalino...!

Faltava um nome para o time. E certa tarde, antes do prélio com o time do outro bairro ali perto, em votação, escolherão finalmente o nome do time: Vitalino F.C. A primeira participação no campeonato municipal dente de leite, dera-se um ano depois. O primeiro título, após dois anos.

Vitalino, já beirando os 60 anos de idade, havia se aposentado, mas não deixara de trabalhar. Percebeu que a molecada estava crescendo, e que precisava algo mais que o futebol. Conversara então com o padre e o pastor das igrejas do bairro, e conseguiu algo inédito, que ambos cedessem espaço em suas respectivas igrejas, para que fosse instalada uma sala de instrução, em cada uma delas, onde, voluntariamente, profissionais viriam ensinar alguma profissão à criançada. Mas onde conseguir esses profissionais dispostos a abraçar a causa?

Foi então que o Sr. Vitalino, já na condição de pai de todas aquelas crianças, descobriu o outro lado dos jornais, além daquele dedicado às desgraças do mundo.  O lado bom, que destaca as ações positivas de vários setores da sociedade, e que assim, influencia o leitor, o cidadão, a rever seus conceitos, a acreditar que, ao contrário do que possa parecer, sim, o bem prevalece, e é maioria entre os seres humanos. Matéria de página inteira veiculada na edição de domingo, contando a história do Vitalino F.C e suas ações sociais, fez com que, já na segunda-feira, vários profissionais voluntários fizessem contato via celular com o Sr. Vitalino. Seis meses, um ano, dois, três anos depois, as crianças, agora jovens iniciando a vida, da maneira correta, ou seja, instruídos, formados em alguma profissão, conscientes de suas responsabilidades e formando famílias, cruzavam com o Sr. Vitalino, e o agradeciam, o abraçavam e o beijavam, expressando com atitudes e gestos de carinho, seu reconhecimento e gratidão.

Nas tardes de domingo, Sr. Vitalino já na casa dos 70 anos de idade, sentava em sua confortável cadeira, no corredor de sua casinha de fundos, e pensava enquanto ouvia o futebol no radinho de pilha, que as vitórias da vida são possíveis, quando todos unem esforços para alcançar objetivos que seja de interesse de todos. Pensava que a sociedade bem podia aceitar as diferenças, como forma de enriquecimento espiritual e não disputa tão pouco segregação. E já não pensava, tinha certeza, que, de fato, a dificuldade é um convite ao crescimento humano, de que a única forma de acabar com o mal é retribuí-lo com o bem. Ouvira sobre isso pela primeira vez, quando conversara com a professora de Letras, a Sra. Rita, pessoa meiga, boníssima, discreta e bastante culta, a primeira a se apresentar como voluntária, naquela segunda-feira que mudaria vez por todas a vida do Sr. Vitalino.  Tivera receio em princípio quando ela lhe dissera que era espírita, mas conversando com Rita e observando- a trabalhar com as crianças, logo percebera o equívoco de sua avaliação inicial. Hoje, a Sra. Rita, para a criançada, os jovens e adultos do bairro atende pelo nome de Dona Vitalina. E ele, já desde muito tempo, como Papai Vitalino.

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Atualizado em: Qua 22 Jul 2015

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