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O Sorvete Japonês
No auge dos meus saudosos 19 anos, quando não possuía carro e, ao menos, parcelava bem as minhas tralhas, eu costumava ir a pé à faculdade. Estudava à noite, e o "causo" deu-se no final do ano, quando fazíamos apenas uma prova ou entregávamos uma resenha e íamos embora – como em qualquer universidade ou faculdade da vida. Não posso reclamar da caminhada, pois, se muito, andava uns setecentos metros. Morava bem próximo à faculdade e havia uma pracinha, daquelas bem ajeitadas, no meio do caminho. O bairro, embora industrial, era razoavelmente bonito, todo arborizado, e até tranqüilo para se zanzar às noites. É importante dizer isso, pois aconteceu logo após a prova (ou a resenha entregue) das oito horas. O horário de verão de começo de dezembro ainda deixava o sol clarear um pouco da noite e lá estava eu, voltando para a casa, quando, não sei o porquê, inventei de comprar um sorvete na conveniência do posto de gasolina da esquina. Já tinha jantado e simplesmente resolvi que um sorvete cairia muito bem. Comprei o bendito e fui sentar-me na pracinha para a degustação; havia duas ou três mães com suas criancinhas lá, alguns motoristas de van aguardando os alunos de outras cidades e, quem vem ao caso, um senhor japonês, de idade avançada, sentado num dos bancos. Sentei-me na grama, pois não queria atrapalhar nenhum dos ali presentes, e comecei a consumir o sorvete, com meus pensamentos além. Já havia uns poucos minutos, ainda algum sorvete no palito, e o senhor japonês – que se sentava a poucos dois metros – falou comigo em um sotaque muito carregado para, obviamente, o idioma japonês:
- Quando Oita tinha só um porto grande, eu gostava de tomar sorvete lá só para ficar vendo os barcos de pesca...
Não entendi, a princípio, e pensei que Oita era o nome do senhor japonês, mas logo ficou claro que era uma cidade que possuía um porto. Pude retrucar:
- O senhor vem dessa cidade, Oita?
Começou uma boa conversa:
- Oita, no Japão, era cidadezinha, né?! Vila. Nasci e morava na vila. Não sei mais como está. Era só um porto grande e depois veio indústria. Muita fábrica tava indo pra lá.
- E o senhor trabalhava nessas fábricas?
- Não. Chichi tinha bom negócio de kabosu. Todo mundo, minha irmã e meus dois irmãos, eu, todo mundo cuidava da terra.
Eu sabia que “chichi” em japonês é a forma familiar de “otousan”, ou seja, “pai” em bom português, pois já havia elaborado uma dissertação sobre Yukio Mishima (coisa de faculdade), e estudei a respeito. Porém não fazia idéia do que seria “kabosu”. Preciso dizer que o Japão sempre me fascinou com sua cultura: seu idioma, o teatronô, o sumô e todo seu ritual xintoísta. Sempre que me era permitido, direcionava os trabalhos da licenciatura para os caminhos nipônicos. Mas continuando...
- O que é isso, senhor, “kabosu”?
- Já viu limão, né? – (N. do A.: o “né” é pra valer!)
- Sim, claro! – Sorri para ele.
- É igualzinho. Fazia bom vinagre!
Quando eu percebi que aquela figura oriental era boa de papo, gostando eu de uma prosa “daquelas”, ainda mais sobre o Japão, pus-me ao desafio:
- Quando o senhor deixou Oita? – Perguntei.
- Humm, tempão. Cheguei em Indaiatuba em... sessenta e oito. Antes só em Oita! E foi em Oita que fui parar agora vendo seu sorvete.
Olhei para o palito em minha mão, já pelado, e pensei que nunca antes havia me deparado com um sorvete transatlântico. Ri comigo mesmo... E o senhor japonês percebeu:
- O sorvete era diferente disso que tem hoje. Era muito bom e melhor!
- Era como, senhor?
- Bem difícil conseguir desculpa para ficar sentado no porto. O sorvete vinha de fora; é que Oita não tinha a máquina que fazia a massa naquela época, então era trazido de Nakatsu até o porto já prontinho e com fruta, bem fresquinho, e ficava em uma geladeira bem grande. Chichi era amigo do mercador do porto, dava vinagre de amostra, e eu, quando queria ficar vendo os barcos com a pesca – que era muito bonito – eu pedia sorvete. Eu tinha que comer na hora. Desculpa boa para poder sentar e ficar lá, né?!
E o senhor japonês caiu na risada. É meio confuso, mas é algo assim: ele transportou-se para sua juventude e estava se divertindo à beça com isso. Pelo que entendi, gostava de ficar observando os barcos de pesca no porto, mas não se podia ficar lá não sei o porquê. Então seu pai, amigo do comerciário local, oferecia amostras de vinagre para garantir o varejo e, como cortesia por parte do comerciário, o jovem japonesinho podia se deleitar com sorvete, que, em Oita, era uma iguaria à época e tinha de ser consumido ali – situação perfeita para poder ficar sentado no porto e observar os barcos. É, tudo isso só no momento da conversa para entender.
- Deveria ser muito boa, aquela época! – Eu disse.
- Era bom, sim. Cada momento que a gente pode aproveitar é muito bom, né?! O que esse sorvete deixou você fazer? – Perguntou o senhor japonês.
- Como assim? – Não entendi a pergunta, momentaneamente.
- O sorvete me deixava fazer a coisa que eu mais gostava, olhar os barcos muito bonitos no porto de Oita, e eu sonhava que queria um. – Ele quis dizer que sonhava em ter um. – Além do próprio sorvete, lá de Nakatsu, né?! Com pedacinho de fruta, bem fresquinho... Então, seu sorvete deixou você fazer o quê?
Não fazia idéia do que responder ao senhor. Era só um sorvete, uma sobremesa tardia perdida no caminho de volta da faculdade. O que poderia responder? Pois então:
- Ele deixou que eu sentasse aqui e conversasse com o senhor!
O que eu poderia ter respondido? É clichê, mas tinha eu alternativa? Nunca havia filosofado sobre um sorvete. Eis que o senhor responde, aos risos:
- Hehe! Esse velho não é nada! Olhe aqui (referindo-se à pracinha): tranqüilidade das crianças brincado e uma boa conversa ali na frente também (apontando para os motoristas). Quer mais? Olhe para cima! Céu laranja e já ébem noitinha (já era mais de oito e meia da noite). É momento assim, bonito, que eutôfalando para você, que é jovem. É a paz. Pura paz de espírito... Esse sorvete deixou você aproveitar tudo isso, tirando esse velho chato! – E caiu na gargalhada.
Estava uma noite agradabilíssima e aquele senhor japonês tinha toda a razão aqui e no Japão! A prosa estendeu-se...
Já há mais de dez anos que aquele sorvete me deu um presente inestimável. O Sr. Matsuou e eu somos amigos até hoje. E ele ainda me ensina.
Comentários
Deus coloca anjos em nossa vida em forma de amigos.
Com certeza foi isso que aconteceu com você!!!
Parabéns pelo texto.
Beijo