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O CASO DO ROUBO (?!) DO POTE DE MANTEIGA OU POR QUE ANGÉLICA FOI PRESA
“Supermercados erguem barricadas
contra esse teu projeto de comer.
Há gritos, há desmaios, há prisões.” (CDA)
Angélica Aparecida Souza Teodoro (18), pobre, afrodescendente, morava, até antes da hora fatal, numa casa precária, no Jardim Maia, Zona Leste da capital de São Paulo, com o seu filho, uma criança de dois anos de idade, e sua mãe, Nazaré de Souza (48), que aparenta ter mais, um rosto de marcas indeléveis de sofrimento.
Desempregada, realizando vez por outra tarefas como diarista, sem dúvida, no seu refúgio, a fome é presença constante. Assim não fosse, não se arriscaria a tirar, dentre centenas de potes de manteiga, de mercado próximo, um, apenas um, para satisfazer ao pequeno filho, uma criança esquecida no poço da indignidade humana.
O que disse, o que pensou Angélica, no momento do parto, quando o viu chegar, sem o enxoval de bebê, sem a decantada assistência pré-natal, a esta terra tropical, ao eterno “país do futuro”, do futebol, do carnaval, das célebres e nutridas bundas, tipo exportação (com direito a seguro!!), e de intermináveis “tsunamis" político-sociais??!
Por certo, uma alegria, a da jovem mãe, mas, na sua condição, fatalmente, uma angústia e a indagação: “o que vai ser dessa minha criança?”.
Difícil, os poderes sabem, sobreviver desamparada social e politicamente. Uma loucura, entre o acordar e o adormecer, a vida dos “Josés”, das “Marias” e das “Angélicas”. Durante o sono, pesadelos atormentam, entre o inspirar e o expirar, um alento, pequeno descanso para o maltratado corpo.
Ao lado, ao redor da miséria já institucionalizada, mercados, lojas, shoppings, abarrotados de coisas e objetos para serem comercializados. Alguns desses estabelecimentos, lotados, principalmente, do essencial para a manutenção da vida, os gêneros alimentícios, uma designação sofisticada para aqueles necessitados que os chamam de comida, o rango.
0 que se passa na mente de uma pessoa, dia e noite, com a fome atravessada na garganta e arranhando os tristes dentes que ainda resistem e vendo o fruto que botou no mundo murchando, como uma flor mal-nascida, excluída, sem jardim regado, e desnutrido por falta dos elementos necessários à vida??!
Não atuou [Angélica] e não atua nos gabinetes federais, estaduais ou municipais, nem de certos grupos ditos religiosos e empresariais. Não seqüestrou, nem matou ninguém, enfim, não havia cometido crime, anteriormente. Por isso, foi considerada ré primária.
De onde se esconde e se encolhe - a cada sofrido dia - ao local do conflito, um salto.
Anestesiada/desesperada, posto que a esperança o asfalto cobriu, Angélica se dirigiu ao mercado e pegou um pote de manteiga, escondendo-o no boné, dentre diversas coisas que poderia levar, de volume menor e de maior valor - um batom, um cosmético da moda - que despertam a vaidade da mulher, (talvez, ela tenha perdido esse olhar feminino), priorizou a responsabilidade maternal.
Por falta tão irrelevante, condenaram-na, e o que é mais grave, confinaram-na no Cadeião de Pinheiros, há quatro meses, no meio de acusadas de crimes hediondos.
Que polícia/justiça rápidas, eficientes. Um vasilhame de manteiga, marca Aviação, no valor de R$ 3,10, objeto de desejo/necessidade (Freud/Marx explicam??!), tem em contrapartida um custo altíssimo, inestimável, a perda da liberdade de um ser que não vem sendo amparado pelo Estado.
A autoridade superior, no seu confortável gabinete, numa impecável mesa de trabalho, ditou a sentença – CULPADA – após o que, tendo degustado lauta refeição, sentiu-se realizada pelo dever cumprido e descansou tranqüilamente.
A lei dura, lâmina fria de aço, como uma navalha afiada, não pode pensar, apenas age e rasga a tolerância e o perdão.
Diante do fato, revoltado, o Presidente da OAB/SP, Dr. Luis Flávio D’Urso, afirmou: “Repudio esse fato. É um absurdo, uma demonstração de que erro judiciário acontece todos os dias nos tribunais. Mesmo que tenha ocorrido o crime de ameaça, isso não leva ninguém à cadeia por tanto tempo. Pelo histórico, estamos diante do furto famélico (quando a pessoa furta algo para suprir a necessidade básica)”.
Não adiantaram as manifestações de apoio à doméstica - denúncias, "habeas corpus", pedidos de relaxamento de prisão. O advogado, Dr. Nilton Trindade, defendendo-a, diz que ela não ameaçou ninguém, pelo contrário, foi agredida pelo dono do mercado com um tapa na cara e levada presa por um policial da PM, aposentado, que é irmão do acusador.
Infrutíferas as colocações confirmando o erro judicial, tendo em vista, também, o “princípio da insignificância”, defendido pelos que primam pela visibilidade do Direito, como é o caso, notadamente, do Presidente da OAB/SP.
Oportunas, sem dúvida, as matérias de setores da mídia de São Paulo (TV Bandeirantes, por exemplo) argumentando sobre a causa do pequeno delito, diante do descalabro da corrupção, da violência em todos os níveis, da mentira política de ontem e de hoje, redundando numa oficialização (?) da impunidade. Tudo isso que o brasileiro vê ocorrer no país. “A Lei é dura, mas é a Lei” (“Dura Lex Sed Lex”) somente para os desafortunados, excluídos??!!!
Alguém já indagou sobre o dono do mercado, como ele alcançou um satisfatório padrão financeiro? Se ele aplica as normas trabalhistas na sua empresa? Por que ele não foi condescendente com a situação? (Será que eu estou sendo ingênuo, ou anacrônico?). A selva é de pedra, realmente...
Um dos objetivos da República Federativa do Brasil está explicitado na Carta Magna Brasileira, no art. 3º, inciso III: “erradicar a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. De há muito, os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, desencontrados, vêm se distanciando, salvo exceções, de metas desenvolvimentistas e de segurança da população.
Enquanto o povo brasileiro toma conhecimento de mais um triste acontecimento, não sei quantos, tidos como “homens de bem”, estão pelos shoppings, pelos salões da elite, nas colunas sociais, nos carrões pelas ruas, nos espaços mais seletos, em posições confortáveis. Alguns deles (a justiça não ignora) são portadores de riquezas bastante duvidosas. Por que então não são levados a responder pelos seus delitos contra o cidadão, contra a sociedade?
O que é feito para pôr um fim à hipocrisia, aos prejuízos individuais e coletivos, a não ser homenagens, ganhos e segurança para os “patrões”??!
Valho-me da literatura, desviando-me do perigo do narcisismo/individualismo, de pseudo-realizações intelectuais e espirituais, contextualizando-a no seu campo de ação, a sociedade. O mestre, Carlos Drummond de Andrade, contribui para isso e continua atualíssimo:
“Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração.”
contra esse teu projeto de comer.
Há gritos, há desmaios, há prisões.” (CDA)
Angélica Aparecida Souza Teodoro (18), pobre, afrodescendente, morava, até antes da hora fatal, numa casa precária, no Jardim Maia, Zona Leste da capital de São Paulo, com o seu filho, uma criança de dois anos de idade, e sua mãe, Nazaré de Souza (48), que aparenta ter mais, um rosto de marcas indeléveis de sofrimento.
Desempregada, realizando vez por outra tarefas como diarista, sem dúvida, no seu refúgio, a fome é presença constante. Assim não fosse, não se arriscaria a tirar, dentre centenas de potes de manteiga, de mercado próximo, um, apenas um, para satisfazer ao pequeno filho, uma criança esquecida no poço da indignidade humana.
O que disse, o que pensou Angélica, no momento do parto, quando o viu chegar, sem o enxoval de bebê, sem a decantada assistência pré-natal, a esta terra tropical, ao eterno “país do futuro”, do futebol, do carnaval, das célebres e nutridas bundas, tipo exportação (com direito a seguro!!), e de intermináveis “tsunamis" político-sociais??!
Por certo, uma alegria, a da jovem mãe, mas, na sua condição, fatalmente, uma angústia e a indagação: “o que vai ser dessa minha criança?”.
Difícil, os poderes sabem, sobreviver desamparada social e politicamente. Uma loucura, entre o acordar e o adormecer, a vida dos “Josés”, das “Marias” e das “Angélicas”. Durante o sono, pesadelos atormentam, entre o inspirar e o expirar, um alento, pequeno descanso para o maltratado corpo.
Ao lado, ao redor da miséria já institucionalizada, mercados, lojas, shoppings, abarrotados de coisas e objetos para serem comercializados. Alguns desses estabelecimentos, lotados, principalmente, do essencial para a manutenção da vida, os gêneros alimentícios, uma designação sofisticada para aqueles necessitados que os chamam de comida, o rango.
0 que se passa na mente de uma pessoa, dia e noite, com a fome atravessada na garganta e arranhando os tristes dentes que ainda resistem e vendo o fruto que botou no mundo murchando, como uma flor mal-nascida, excluída, sem jardim regado, e desnutrido por falta dos elementos necessários à vida??!
Não atuou [Angélica] e não atua nos gabinetes federais, estaduais ou municipais, nem de certos grupos ditos religiosos e empresariais. Não seqüestrou, nem matou ninguém, enfim, não havia cometido crime, anteriormente. Por isso, foi considerada ré primária.
De onde se esconde e se encolhe - a cada sofrido dia - ao local do conflito, um salto.
Anestesiada/desesperada, posto que a esperança o asfalto cobriu, Angélica se dirigiu ao mercado e pegou um pote de manteiga, escondendo-o no boné, dentre diversas coisas que poderia levar, de volume menor e de maior valor - um batom, um cosmético da moda - que despertam a vaidade da mulher, (talvez, ela tenha perdido esse olhar feminino), priorizou a responsabilidade maternal.
Por falta tão irrelevante, condenaram-na, e o que é mais grave, confinaram-na no Cadeião de Pinheiros, há quatro meses, no meio de acusadas de crimes hediondos.
Que polícia/justiça rápidas, eficientes. Um vasilhame de manteiga, marca Aviação, no valor de R$ 3,10, objeto de desejo/necessidade (Freud/Marx explicam??!), tem em contrapartida um custo altíssimo, inestimável, a perda da liberdade de um ser que não vem sendo amparado pelo Estado.
A autoridade superior, no seu confortável gabinete, numa impecável mesa de trabalho, ditou a sentença – CULPADA – após o que, tendo degustado lauta refeição, sentiu-se realizada pelo dever cumprido e descansou tranqüilamente.
A lei dura, lâmina fria de aço, como uma navalha afiada, não pode pensar, apenas age e rasga a tolerância e o perdão.
Diante do fato, revoltado, o Presidente da OAB/SP, Dr. Luis Flávio D’Urso, afirmou: “Repudio esse fato. É um absurdo, uma demonstração de que erro judiciário acontece todos os dias nos tribunais. Mesmo que tenha ocorrido o crime de ameaça, isso não leva ninguém à cadeia por tanto tempo. Pelo histórico, estamos diante do furto famélico (quando a pessoa furta algo para suprir a necessidade básica)”.
Não adiantaram as manifestações de apoio à doméstica - denúncias, "habeas corpus", pedidos de relaxamento de prisão. O advogado, Dr. Nilton Trindade, defendendo-a, diz que ela não ameaçou ninguém, pelo contrário, foi agredida pelo dono do mercado com um tapa na cara e levada presa por um policial da PM, aposentado, que é irmão do acusador.
Infrutíferas as colocações confirmando o erro judicial, tendo em vista, também, o “princípio da insignificância”, defendido pelos que primam pela visibilidade do Direito, como é o caso, notadamente, do Presidente da OAB/SP.
Oportunas, sem dúvida, as matérias de setores da mídia de São Paulo (TV Bandeirantes, por exemplo) argumentando sobre a causa do pequeno delito, diante do descalabro da corrupção, da violência em todos os níveis, da mentira política de ontem e de hoje, redundando numa oficialização (?) da impunidade. Tudo isso que o brasileiro vê ocorrer no país. “A Lei é dura, mas é a Lei” (“Dura Lex Sed Lex”) somente para os desafortunados, excluídos??!!!
Alguém já indagou sobre o dono do mercado, como ele alcançou um satisfatório padrão financeiro? Se ele aplica as normas trabalhistas na sua empresa? Por que ele não foi condescendente com a situação? (Será que eu estou sendo ingênuo, ou anacrônico?). A selva é de pedra, realmente...
Um dos objetivos da República Federativa do Brasil está explicitado na Carta Magna Brasileira, no art. 3º, inciso III: “erradicar a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. De há muito, os poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário –, desencontrados, vêm se distanciando, salvo exceções, de metas desenvolvimentistas e de segurança da população.
Enquanto o povo brasileiro toma conhecimento de mais um triste acontecimento, não sei quantos, tidos como “homens de bem”, estão pelos shoppings, pelos salões da elite, nas colunas sociais, nos carrões pelas ruas, nos espaços mais seletos, em posições confortáveis. Alguns deles (a justiça não ignora) são portadores de riquezas bastante duvidosas. Por que então não são levados a responder pelos seus delitos contra o cidadão, contra a sociedade?
O que é feito para pôr um fim à hipocrisia, aos prejuízos individuais e coletivos, a não ser homenagens, ganhos e segurança para os “patrões”??!
Valho-me da literatura, desviando-me do perigo do narcisismo/individualismo, de pseudo-realizações intelectuais e espirituais, contextualizando-a no seu campo de ação, a sociedade. O mestre, Carlos Drummond de Andrade, contribui para isso e continua atualíssimo:
“Falam por mim os abandonados da justiça, os simples de coração.”
Atualizado em: Ter 24 Fev 2009