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O Colecionador de Ossos



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O relógio na parede suja de sangue marca exatamente, duas horas da manhã, a brisa fria que entra pela janela quebrada congela a minha sala de cirurgia particular. Os instrumentos cirúrgicos enferrujados, a maca de alumínio e as luzes piscando no teto mofado complementam um ambiente obscuro e grotesco, relembrando de forma nostálgica os meus tempos de legista no IML de São Paulo.
            Ver os cadáveres expostos no trabalho exaltava a minha mente criativa. O lado esquerdo do meu cérebro sempre ganhou destaque sobre o direto, confesso que não é fácil alimentar a fera agressiva, impulsiva e destemida que vive no meu interior. A psicopatia desgovernada a qual carrego como um peso de duas toneladas, cresceu ao longo desses últimos anos, devido à falta de capacidade e profissionalismo do meu falecido Psiquiatra Dr. Eduardo Monister.
            O monstro que sou hoje é o resultado de um reflexo da vida preenchida por ódio, maldade e abandono, porém isso não dissolve a minha culpa da qual não tenho, mas sei que teria se sentisse algo, um sentimento que fosse. 
            Dentro do mundo que criei busco apenas demonstrar o meu potencial. Não é mero capricho, eu subtraio das ruas podres de Campinas as escórias da sociedade, que  prejudicam o destino de pessoas do bem. Ser investigador da polícia nas horas vagas facilita nas buscas de futuras vítimas, às quais escolho a dedo.
            Agora mesmo, enquanto me apresento a vocês, escalpelo um homem de 40 anos. Gordo, careca e cheio de estrias, às suas pernas, braços, troncos e membros são separados um a um em cima da mesa de forma metódica,  satisfazendo o  meu desejo por hora. Em menos de minutos triturarei os seus restos mortais para que não haja pistas ou suspeitas, ter cautela nunca é demais.
            Esse medíocre estuprador não usará o seu pinto novamente. Finalizando o ritual como de costume guardarei uma de suas córneas em minha caixa de madeira maciça. Bendito vício de suvenir.
            A arte de aniquilar junto à chama de vingança me tornou o Serial Killer mais temido do País. Tenho vários nomes espalhados nas redes sociais, louco, justiceiro, abominável, diabo, vagabundo, mas pelos jornais locais e investigações criminais em meu DP sou intitulado como o caso 346 “O colecionador de olhos”. Status da investigação em aberto.  
             - Júlio Fonseca, seu safado!  O  que posso fazer por você?
            - Fala Rafael meu amigo, tudo em paz? Quero te pedir um favor imenso, e você é o  melhor.
            - Não venha babar o meu ovo! Diga logo estou de saída para o almoço.
            - Quero analisar algumas fichas dos condenados da semana passada. Preciso incluir os relatórios finais e enviar para a Isadora arquivar. — Indagou Júlio com um sorriso no rosto.  
            - Não ficou sabendo? Ela foi esfaqueada e está no hospital. O Marido ciumento mandou um recado de alerta, caso ela prossiga com o divórcio. 
            - Sério? O Robson Azevedo da festa de final de ano?  
            - O canalha em pessoa! Pagou a fiança rindo pelas nossas costas e saiu pela porta da frente.  
            - Que Filho da puta. Espero que a justiça seja feita de uma forma ou de outra. Sobre a papelada eu entrego para a estagiária. Obrigada por me deixar informado.  
              É uma lástima que mulheres ainda sofram com a violência doméstica, estamos no século XXI e não na idade das pedras. São tantas leis que as protegem e nenhuma consegue surtir efeito. Fico enfurecido quando presencio uma covardia dessas sem punição. O habeas corpus, concedido pelo Juiz vagabundo na semana passada, será a sua sentença de morte. Essa madrugada vou pessoalmente entregar a ele um presente  nada agradável. Mencionei que estou entediado? Mais um presunto prestes á visitar o meu casulo de magia, onde se entra vivo e sai moído. Estou ficando cada vez mais hilário.
           
            Sigo-o em meu fusca azul é exatamente meia-noite do dia oito de agosto de 2019. Uma boa data para arrancar a carcaça do capeta. Observo os seus passos com pelo menos mil metros de distância. Não há nada de anormal, o idiota entra no mercado para comprar uma lata de cerveja e pão de forma, o cartão não foi usado. Enquanto rastreio as ligações do seu celular dos dias anteriores, percebo uma mudança de percurso rápida.       O individuo loiro de boa aparência, alto, forte e de péssimo gosto anda lentamente. Ele veste uma blusa de moletom preta, calça jeans escura e tênis branco, até aí posso relevar, mas o que questiono de forma Ininterrupta é a estranha aquisição na farmácia do seu Manoel. Porque o absorvente?
            Guardo o meu veículo moderno de 1945 em um estacionamento clandestino, não quero que ninguém saiba do meu passatempo preferido. Desvio entre postes e ruas isoladas para evitar maiores complicações. O atleta continua a caminhar até a sua mansão no bairro do Cambuí.
            Eu estou suando feito um porco, a secura que sinto na boca transforma o meu humor. Juro que vou matar esse infeliz com muita vontade.
            Entro pela janela aberta da sala, pular o muro me custou um rasgo na perna, a minha atenção fica focada nos seguranças particulares, ao menos oito estão de gaiato. A proteção reforçada soa sinistro para um mero dentista. A sua família é rica, porém não sofre ameaças constantes. Que putaria está acontecendo aqui? O que esse sacana esconde de tão precioso?
            Continuo rastejando entre os cômodos, passo pelo hall de entrada, sala de estar, banheiro, sala de cinema, salão de jogos, academia, biblioteca, sauna, cozinha, quarto da emprega. Santa mãe de Deus! Estou em um Resort.
            Fico abaixado aguardando um sinal para o  ataque. Não será fácil leva-lo com os gorilas á solta. Preciso de uma estratégia diferente, limpa e segura. Sinto a sua presença vulgar vindo em minha rota de colisão. Os meus dedos agarram firmemente uma faca afiada que roubei do kit de churrasco. Sinistro né?  Quer saber de uma coisa? Estou sem ideias vou ativar o modo foda-se e cravar essa belezura de metal na jugular desse cordeiro. Em três, dois, um...
            - Socorro! Robson me tire daqui! Deixe-me ir... Não conto a ninguém sobre o que aconteceu. Eu não aguento mais. – Os gritos de dor e desespero ecoavam da boca de Verônica, a nova vítima de Robson.  
            - Cale a boca Verônica! Vai morrer igual às outras. E não fique com saudades, estou voltando para meter uma bala em sua cabeça. Vou me livrar de você quanto antes
. Pare de chorar! – O Dentista masoquista ria enquanto caminhava para a cozinha. O que ele não contava era com a presença ilustre do nosso querido Júlio.
            - Olá seu arrombado! Vamos brincar?
            - Me larga!
            A poça de sangue que se formava como um rio vermelho acalmava o meu coração inerte. Simbólico, mas real, o meu prazer momentâneo se fundia a sensação de missão cumprida. O defunto, agonizando no chão do piso importado, aguçou o lado macabro dormente em meu interior. Eu estava saboreando cada segundo de sua dor. E sabe por- quê? Eu sou uma aberração!  
            Desde criança tenho fascínio pela expressão humana. Já reparou? O enrugar da testa sinalizando as emoções, as bochechas elásticas contracenando com a boca. O nariz com as suas formas variadas sendo essencial para a nossa sobrevivência. As orelhas caracóis trazendo o som do universo. A boca cheia de dentes, saboreando alimentos  das mais diversas culturas. E é claro o meu ponto fraco os olhos, dois seres deslumbrantes que nos revelam a verdade nua e crua. Agora sabem o motivo da minha coleção particular. A propósito não vendo e nem troco, são por encomenda. E em meu bolso, tenho uma novinha em folha.   
            Enfim, enquanto eu conversava com vocês refletindo sobre os meus gostos peculiares, aproveitei para fuzilar os cúmplices. Tiros certeiros no cérebro de cada um para evitar desperdício de tempo. Encapuzei o meu rosto feio de cicatrizes e salvei a donzela sequestrada. Quem diria que eu descobriria um covil de tráfico de órgãos? Esse palácio dos horrores me surpreendeu literalmente.
            Então é isso pessoal, vou pegar o rumo e voltar para o meu barraco. Preciso incondicionalmente da minha cama e um café preto. E amanhã de manhã comendo um delicioso pão com queijo vou dar algumas risadas sarcásticas das notícias urgentes relatando um novo ataque do Colecionador de Olhos.
            - Boa noite Isadora como está hoje?
            - Olá Rafael! Bem melhor obrigada! Soube do meu ex?
            - Sim. Está tudo bem? Como você reagiu?
            - Estou aliviada. Aqui está o relatório que me pediu da cena do crime. Contém as digitais dos envolvidos e os vídeos das câmeras escondidas.
            - Quem viu as provas?
            - Ninguém. Está como confidencial e devido a sua promoção recente só você tem o acesso. Posso fazer mais alguma coisa? 
            - Sim! Por favor, me passa o telefone do Júlio? E pode ir embora, já está escurecendo. Não quero você em perigo. Até segunda. Beijos.
            - Aqui está seu esquecido. Beijos até.
***********
            - Alô Júlio? Pode falar?
            - Sim! Soube que recebeu um aumento de salário.
            - Opa! Uma ligação anônima revelou um esquema quente. Queria te convidar para sair. Topa?
            - O presente de grego está em mãos?
            - Isso mesmo! Bora beber uma e queimar papéis na fogueira?
            - Demoro. Te encontro em uma hora.
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Atualizado em: Ter 13 Out 2020

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