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Rebelião I

A rebelião começou em uma manhã de céu azul, límpido. Inicialmente ouviram-se gritos ásperos, furiosos. Depois dos gritos, tudo começou a se precipitar com rapidez: os engenheiros encarregados de avaliar a construção do muro afastaram-se rapidamente, entrando na ala administrativa da penitenciária, os agentes sopraram os apitos com fúria, numa vã tentativa de disciplina, enquanto os presos atravessavam a entrada da galeria e começavam a dominar toda a parte interna do Conjunto Penal. Muitos funcionários corriam atordoados. Rebelados dispararam em direção à cozinha, que abrigava um arsenal de facas e outros objetos cortantes. Cozinheiros e uma nutricionista tentavam escapulir. Os agentes eram desprezados.
De todos os pavilhões – eram oito – viam-se presos correndo em direção ao prédio administrativo, cujo portão foi rapidamente fechado. Os vidros das guaritas dos pavilhões eram quebrados e as cadeiras dos agentes foram rapidamente transformadas em pedaços de compensado e hastes de ferro. O compensado iria alimentar as fogueiras. Os pedaços de metal podiam servir para destruir a prisão. Ou para matar. Os primeiros momentos eram sempre os mais difíceis: a cólera explodia, os ressentimentos afloravam e buscava-se extravasá-los. Jamais se sabia em quanto tempo o motim podia ser debelado. Assim, os presos agiam com rapidez e violência e quase 500 homens avançavam numa marcha ensandecida. Contavam com a surpresa para causar grandes estragos.
Nas guaritas externas havia policiais militares. De poucas delas eram visíveis os movimentos da turba, mas sentia-se, sobretudo sentia-se. Os sons de objetos partidos, de grunhidos furiosos, de imprecações de pavor e de passos apressados amplificavam-se, assustadores. Num dos postos, um PM suava e imaginava o que se passava além de um muro interno distante cinquenta metros dele. O fuzil repousava, inútil, entre os dedos encrespados. Tinha ordem de atirar apenas se os presos pulassem a muralha e ganhassem a estrada enlameada por chuvas recentes.
Lá dentro a massa avançava em macabra sincronia. Primeiro, buscava se armar. As facas na cozinha foram imediatamente recolhidas. Facões foram tomados e chapas de metal, que revestiam grades, foram arrancadas. Com desesperada perícia, presos as empregavam como matéria-prima para fabricar arremedos de facas, ou “chuços”. Gritava-se com fúria. Um deles resolveu dispensar um ajudante da cozinha: soltou-o. O funcionário correu para o abrigo do pavilhão administrativo, escapando de outros detentos. Surgiam líderes, alguns seguiam os “xerifes” de seus pavilhões. No três, articulava-se.
Um rebelado selecionava reféns, estimando que meia-dúzia deles era suficiente. Garantiriam que a polícia não invadiria o Conjunto Penal, que era ao mesmo tempo presídio e penitenciária. Os agentes iam sendo liberados: “cabeças baratas”, diziam os presos, com irônico desdém. Os reféns foram levados para o pavilhão três e, em meio à anarquia, um grupo com cerca de trinta se encarregou da guarda e se armou para eventuais conflitos. Aqueles eram os estrategistas: nos momentos iniciais muitos queriam apenas destruir. Saciado o desejo, iam se deparar com a realidade do motim. Nesse momento é que viriam à cena os estrategistas. Por enquanto, eles assistiam complacentes, aos grupos se armando para a destruição.
Em cerca de vinte minutos o cenário do motim estava completo: marchava-se para a destruição total das instalações da penitenciária. Alguns aproveitavam para cobrar rixas, outros instigavam os demais a destruir as fundações do muro que provocara a rebelião.
Um amotinado ergueu um pedaço de concreto e atirou-o sobre o teto do prédio administrativo: uma pancada seca ressoou. Outros começaram a imitá-lo. Um assaltante, que cumpria pena havia dez anos, pressentiu que aquela seria a mais violenta rebelião de que já participara. E sorriu feliz. Um latrocida sugeriu que se apedrejasse a administração com alguma sincronia. Dispersaram-se arranjando munição: surgiram cadeiras destruídas, pedaços de concreto e longos bastões de madeira.
Começava a haver coordenação e, a uma ordem, um grupo atirou paus e pedras sobre o teto da administração. Funcionários ficaram sitiados entre o pátio interno e o gramado, que conduzia ao portão principal. Um grupo de policiais militares, responsável pela segurança externa, entrou na penitenciária, atravessando o gramado. Surgiram os primeiros repórteres. Os funcionários que escaparam chegavam ao portão da entrada. Lágrimas escorriam dos rostos das mulheres da cozinha, bastante abaladas.
Nesse momento, cobertos pela artilharia primitiva dos comparsas, presos tentaram invadir a administração. Dispostos em uma fileira, policiais militares destravaram suas metralhadoras e dispararam rajadas para o alto. Na estrada poeirenta, além do muro, um grande pânico: parecia ter começado um tiroteio entre rebelados e polícia. Foi o momento mais tenso daquele início de motim. Mais uma rajada de metralhadora para o alto e mais outra. A uma ordem enérgica, militares entraram na ala para evitar a invasão. Um policial civil – que chegou momentos antes – foi atingido por uma pedrada, quando corria para auxiliar os colegas.
Crescia o número de repórteres. Um funcionário narrava como escapara dos amotinados. Disse que agiam com muita violência. Outro agente informava o motivo da rebelião: os presos não desejavam a construção de um muro na área interna. Esse muro ia diminuir a área de visão dos detentos, que por isso se insurgiram. Um terceiro discursava contra o diretor da prisão e exigia maior segurança para os funcionários. Especulava-se sobre quantas pessoas estariam ainda em poder dos amotinados. Todos eram funcionários da cozinha.
Os primeiros parentes de presos começavam a chegar. Uma mulher, baixa e gorda, olhava distraída a fachada da prisão, pintada de um amarelo que se diluía. Não gritava, diferente de outros familiares, histéricos. Esses gritos confundiam-se com os que vinham dos pavilhões e transpunham as chapas de aço dos portões.
A prisão ficava isolada numa extinta rodovia baiana, nas cercanias de um bairro periférico. Mesmo com a distância, era inevitável a presença de curiosos, que se aglomeravam, aguardando notícias. Jornalistas e policiais misturavam-se à lama das chuvas recentes do início de novembro e aos transeuntes. A rebelião caminhava para a terceira hora e, em curtos intervalos de tempo, chegavam policiais empunhando armas de grosso calibre. Os atiradores de elite buscavam, nas guaritas, posições privilegiadas de tiro.
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Atualizado em: Qui 10 Out 2019

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