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Jogo dos Erros [Capítulo 1]

CAPÍTULO 1

Naquele dia, ele tinha levantado muito cedo, a madrugada fria ainda gelava os corpos que tentavam aquecer-se em vão em seus leitos. Sua mulher abrira os olhos para observá-lo enquanto ele apanhava a capanga - já com o desjejum - a moringa e a espingarda. Os meninos dormiam incólumes num canto da sala que servia como quarto e também cozinha. Ao sair no terreiro os cachorros o acompanharam atendendo o assovio do dono. A trilha que percorrera acabava num pequeno córrego onde ele subiu alguns metros e adentrou na mata. Ao chegar a um aclive viu as luzes coloridas de uma viatura policial cruzando a estrada ao longe. Por um momento pensou o que poderia estar acontecendo para aquele horário o carro da polícia estar rondando a estrada. Esquecera do assunto e concentrou-se na caçada.

As horas passaram. Os três cachorros não tinham farejado nenhuma caça e iam e vinham inquietos. O sol já despontara no horizonte e a neblina da manhã já começava a dispersar trazendo um calor que para aquele momento se tornava agradável. A mata um pouco fechada deixa difícil sua caminhada quase solitária, fazendo-o assim não ser tão silencioso quanto desejara. Os pássaros já haviam diminuído o som que fazem todas as manhãs antes do sol aparecer e lá no alto uma formação de urubus circundava um local perto de onde está. Já havia caminhado bastante, mais longe do que já fora.

A fome, certa como a luz da manhã, chega e ele senta em uma pedra a espera de saciá-la. Desfaz a sua carga no chão e de dentro da sua capanga tira um recipiente com sua comida. Os cachorros farejavam a alguma distância enquanto ele comia. O mais novo deles veio farejar sua comida e ele dá um safanão no animal que corre para perto dos outros.

Naquele dia ele ia ter que se contentar em comer ovo com farinha, não tinha achado nenhum verdadeiro1 pra vender e comprar o que faltava em casa, a roça ainda não dera lucro aquele ano. Os meninos e a mulher não são de reclamar, ainda bem, matutava ele.

A mistura seca desce goela abaixo, entalando-o logo, um gole de água ajuda onde a saliva falhou. Há tanto no mundo, pensa ele, e tanta gente passa fome, como uns poucos se fartam, enquanto muitos se acabam por pouco?

Envolto em seus pensamentos, torna a realidade quando nota que os cachorros estão fazendo algazarra a certa distância. Tomara que seja alguma coisa, fala pra si mesmo enquanto fecha a vasilha. Com a espingarda às costas, toma um gole de água de moringa e vai atrás dos cachorros. Caminha em passadas apressadas pulando pedras e paus secos. O ganido dos cachorros fica cada vez mais perto.

Numa clareira, eles disputam algo. Chega mais perto, mas não consegue distinguir o que é. Ralha com os cachorros até que eles soltam a presa e ele à pega do chão. O susto que levou o faz soltar o que segurava e dar alguns passos pra trás ao constatar o que era. Escoriada, suja de terra e saliva de cachorro, inerte no chão, uma mão de unhas longas e pintadas dá bom dia a ele naquela manhã em que a caça estava rara.

 

O soldado Alencar estava sentado à porta da delegacia, o coturno lustroso, a cadeira com o encosto pra frente e o palito mascado entre os dentes. Ruminava os acontecimentos da noite anterior. Como é que ele foi perder aquele dinheiro todo no jogo. As pessoas passavam e o bom dia de cada um era repetido por ele automaticamente. Estava com sono e pensava que se o delegado fosse demorar, ele bem que poderia dar uma cochilada no escritório dele. E tudo levava a crer que o delegado realmente ia demorar. A filha de seu Juvêncio tinha saído até uma cidade vizinha e não tinha voltado. Só encontraram o velho fusca estacionado no acostamento, pneu furado e nenhum sinal dela. Agora, o delegado tava lá, colhendo informações nas casas na beira da estrada. O delegado tinha achado ruim, mais três quilômetros e estava fora de sua jurisdição. Alencar sabia que ele não gostava muito que acordassem ele, principalmente, quando ele estava pronto pra ir pra casa jantar e dormir de novo. Seu Juvêncio já tinha ido lá anteontem à noite, o pobre coitado manco de uma perna e com uma saúde frágil, porém o delegado disse que teria que esperar vinte e quatro horas, que ele não se preocupasse, a filha dele já era “de maior” há muito tempo. Essa lei é fogo, e o delegado gosta de cumprir a risca, principalmente, é claro, se a lei for a favor daquela sua preguiça particular. Só que agora as vinte e quatro horas já haviam completado na noite anterior e seu Juvêncio ameaçou de denunciar ele na rádio e ao promotor se ele não fosse atrás da filha dele. Alencar tinha ficado na delegacia, alguém tinha que ficar de olho no único preso da cidade, que inclusive, estava neste momento lavando as louças do café da manhã dele, em troca, ele lhe dava alguns cigarros. Na cidade estava tudo calmo aquela manhã, tirando-se o fato de que a filha do seu Juvêncio tinha desaparecido e também o fato de que Seu Manoel do Rufino vinha andando muito apressado em sua direção. O tinha observado desde a esquina quando ele apareceu, o andar clássico dos que vem com urgência denunciava algo. Alencar só pensa se aquele saco que ele traz um pouco afastado do corpo tem algo a ver com isso.

– O “Dotô” tá? – Seu Manoel pergunta ao chegar sem ao menos dar bom dia.

– Tá não, saiu desde ontem à noite pra procurar a Jane filha de Seu Juvêncio, o que foi que houve homem? Parece que viu o demônio.

– Vi não, mas achei o rastro dele. Aquela frase deixou Alencar de cabelo em pé. Seu Manoel completa:

– Ligue pro delegado, achei uma coisa pra ele “investigá” e Deus queira que “num” seja quem eu tô “pensano”, seu Juvêncio já sofreu demais.

Com a testa franzida, Alencar fica olhando para o saco que Seu Manoel traz seguro entre o indicador e o polegar com o braço estendido bem à frente dele.

Já tinha percorrido muita estrada de chão aquela noite, todas as casas da região onde foi encontrado o carro de Jane e mais além tinham sido visitadas. Nenhuma notícia da moça. Onde diabos ela foi? Tinha encontrado o carro no acostamento, o pneu traseiro direito furado, o step ao lado junto com o “macaco” e a chave de roda, a chave de ignição não estava lá. Nenhuma pista ao redor, marcas de pneus, somente a de freadas de caminhões quando os motoristas cochilavam ou algum animal entrava na frente deles. A Polícia Rodoviária, raridade por aquelas bandas, já tinha sido acionada também, nenhum sinal da moça na rodovia. A foto dela já corria nas outras delegacias e com a própria Polícia Rodoviária. O dia já havia amanhecido há algum tempo e suas tripas revolviam de fome. Malditos matutos, não oferecem nada pra se comer. Resmungava por dentro. Já estava indo em direção da penúltima casa quando o celular tocou.

– Para aí cabo, antes que o sinal se perca – Falou bruscamente o delegado Pereira ao motorista da viatura. Atende ao telefone:

– Fala Alencar... O quê?!... Fala devagar homem que a ligação ta cortando... Tem certeza Alencar?... Seu Manoel?... Sei... Sei... Ham Ram... Tô entendendo Alencar... Olha, mas se você me fizer ir aí por causa de uma bobagem que um matuto achou...

Delegado Pereira desliga o celular e fica alguns momentos pensativo. Acende um cigarro e na primeira tragada se arrepende, pois estava com tanta fome que fumar dava menos prazer. O motorista fica a espera da sua decisão. Mais alguns tragos no cigarro, e o prazer da nicotina aumenta a ponto de esquecer a fome um pouco. O delegado acorda da sua letargia e anuncia:

– Vamos voltar pra cidade cabo. Tomara que o Alencar esteja bêbado de ontem ainda e esteja vendo coisas que não existe, mas antes passa em algum lugar pra gente comer. Parece que eu não vou conseguir dormir tão cedo hoje. A viatura faz meia volta e sai levantando poeira rumo à cidade.

Após um dia completo de buscas o restante do corpo foi quase que completamente encontrado. Quase, porque o clitóris da moça tinha sido cirurgicamente retirado. A cidade de cinco mil habitantes ficou bastante movimentada por muitos dias. O delegado Pereira em cadeia nacional, ao vivo, para os canais de TV mais populares do país dizia que a investigação estava sendo conduzida com bastante afinco e que em breve poria as mãos naquele monstro. Suspeitos foram interrogados e soltos em questões de dias. Exames de DNA serviram somente para confirmar o que a cabeça encontrada identificava claramente como Jane Saturnino da Silva, 29 anos, a filha de seu Juvêncio, desaparecida dias antes. Uma substância barbitúrica também foi encontrada e outros exames informaram que ela tinha sido cortada ainda viva. Um pai abismado e as lágrimas, falava para as câmeras que se o delegado tivesse agido rápido a sua filha podia estar viva ainda. Especialistas de todos os gêneros falavam nas TVs sobre o perfil psicológico do assassino, divergiam entre si e alguns diziam que ele atacaria novamente em algum centro urbano.

 

Dias e meses se passaram sem se chegar a um culpado. A imprensa já esquecera o caso, Seu Juvêncio caminhava todos os dias entre a delegacia e a promotoria em vão. O último suspeito foi solto trinta dias após a descoberta do corpo. O afinco do delegado Pereira não deu em nada.

1O tatu-bola, difícil de ser achado ao contrário do parente tatu-peba mais fácil de encontrar.

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Atualizado em: Sex 6 Jul 2012

Comentários  

#4 Marlende 11-07-2012 17:49
Muito bom, narrativa envolvente...escreve muito bem...Parabéns !
#3 helitonqueiroz 08-07-2012 18:33
Obrigado a todos. O capítulo 2 já foi enviado, espero que gostem também. Abraços
#2 Mitya2 08-07-2012 17:56
Gostei do primeiro capítulo, a espera do próximo.
Parabéns.
#1 PauloJose 08-07-2012 16:20
PARABÉNS MUITO BEM ELABORADO!!!
DEZ ESTRELAS.
ABRAÇOS.

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