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A SÍNDROME DA INTELIGENCIA CONDICIONADA

Memórias de um futuro provável.
Capítulo 2
 
   Loren sentiu-se triste, pois ao externar espanto quando soube da relação crente/pastor no passado recente, sem querer, havia chamado a sua própria avó de burra, ainda que sem a intenção.
   O ano era 2050. 
   Eram outros tempos e uma criança na idade dela poderia discernir certas coisas que um adulto (evangelizado) de antes da revolução era incapaz de perceber.
    A partir do momento em que as pessoas ficaram livres para pensarem por conta própria, além daquilo em que as lideranças evangélicas diziam ser verdade, a primeira coisa que a população enxergou, foi que a maioria dos antigos líderes religiosos, eram por sua vez, vigaristas, usurpadores e manipuladores, que mantinham o povo sob custódia eterna, ameaçando os “rebeldes” com o inverídico enquanto recompensava os obedientes com o improvável.
   Tudo no campo do abstrato!
    A única coisa de concreto que havia em seus discursos era o poder de manipulação para perseguir e difamar aqueles que de alguma forma resistiam a esse tipo de domínio. 
    A Síndrome de Estocolmo surgiu muito antes mesmo do evento da Segunda Guerra Mundial, já que por dezenas de anos boa parte da população ocidental se via obrigada a “apaixonar-se” por seus torturadores e sequestradores em troca de afeto barato e “proteção espiritual” dentro dos "cassinos da fé". 
   Por conveniência, ganância, medo ou necessidade, os oprimidos os retratavam como criaturas messiânicas ou embaixadores deste, mesmo quando submetidas a rigorosos processos de abusos.
    Após a revolução, a população percebeu que estes, apesar de tudo, não eram os criadores originais de Deus ou de nenhuma outra divindade (além deles mesmos), porém, ao se colocarem como intérpretes absolutos da vontade divina, valeram-se da ingenuidade alheia para torna os súditos em “quase imbecis”, incapazes de tomarem decisões por conta própria, com necessidades de recorrerem a suposta orientação divina para tudo o que faziam na vida. Havia um preço em cada consulta, e um preço maior era pago, caso esta não fosse feita. 
    O primeiro sintoma pós-liberdade foi a confusão mental.
    Era como se aquela gente estivesse percebendo suas faculdades cognitivas pela primeira vez na vida.
    Alguns nem se lembravam mais de que possuíam um cérebro, pois viviam lobotomizados do alvorecer ao entardecer por décadas a fio.
    Ao serem libertos, ficaram com receio de pensar, sobre o que pensar e o que fazer depois do pensamento, ou seja, da ação livre, espontâneo ou programada. 
    Entre decidir sobre um simples cursinho, um projeto de vida ou na abertura de um negócio próprio (por exemplo), havia uma dúvida abismal e um medo do fracasso, de não estarem fazendo a coisa certa.
— Nunca faça nada sem consultar a Deus!
   Essa era a recomendação número um, dita em todo conglomerado evangélico.
   Consultar a Deus era o mesmo que pedir a opinião do pastor.
   Este, por sua vez, consultava sua própria lógica. 
   Se de certa forma a ação do crente fosse trazer ônus para o pastor como indivíduo ou para toda a igreja, era dito que aquela era uma decisão divina.
    Se, por outro lado, a decisão do crente envolvesse o ausentar-se um pouco dos trabalhos da igreja para construção de uma própria carreira, fazer donativos diretos a pessoas ou a instituições de caridade (sem passar pelas mãos do pastor), ou apoiar projetos livres, que não estivessem ligadas àquele segmento, desta feita, aquele era um projeto do maligno, ou no mínimo sem a aprovação celestial, caracterizando-o como extremamente perigoso, rebelde sujeito as penalidades eternas.
     Dona Sophia suspirou de forma exaustiva, não conseguindo fitar os olhos em sua neta, como se houvesse um misto de culpa e vergonha pelos seus dias de "ovelha do Senhor"!
 — Era uma época em que ninguém pensava e todos consultavam ao profeta!
    A netinha não fez comentários, a fim de não tornar a vergonha de sua segunda mãe ainda maior.
    A idosa continuou tecendo detalhes, ora em voz alta, ora pensando consigo mesma.
    Lembrou-se de como isto (o incentivo ao pensar), em partes, ocasionou a grande revolta naquele dia fatídico, conhecido como A Segunda Noite de São Bartolomeu, ocorrida em 2033.
    Alguns até atribuíam essa data como a do renascimento de Cristo, 2 mil anos após sua morte.  Outros preferiam tirar o nome dessa divindade de tudo o que fosse importante, inclusive do calendário.  Outros passaram a chamar 2033 como o ano zero da Nova Era e cada ano pós-abertura era tida como N.V ao invés de D.C.
    Loren passou a mão na cabeça de sua avó, como se mais uma vez pedisse desculpas pela ofensa.
    Sophia reafirmou não se sentir ofendida, já que foi disparado sem pensar e ela conhecia bem a sua neta, que só estava estupefata com o nível de submissão dos seus antepassados, quando capturados pela igreja.
    Gentilmente, a idosa dirigiu-se à sua neta:
— Pois é, filhinha: historiadores, antropólogos e estudiosos de diversas áreas preferem chamar os nascidos nas últimas 13 décadas como Pessoas Passíveis da Síndrome de Inteligência Condicionada. 
    Sophia arqueou uma das sobrancelhas como sinal de espanto. 
    A idosa continuou: 
— A sociedade dos psicólogos e psicoterapeutas, apesar de não se referirem aos de minha geração como alguém com deficiência mental, inseriram o termo PP-SIC na lista de patologias, cujo número de CID pode inclusive ajudar em processos de pedidos de aposentadorias compulsórias, quando o sujeito ainda preso em seu passado tenebroso (como vítima), demonstram casos clínicos semelhantes aos de quem estivera exposto à salubridade ou periculosidade, ou abusos psicológicos.
   A idosa completou:
— Foi uma forma sutil de o estado desculpar-se por deixar a igreja dominar tanto e por vezes ter se aliado a esta, quando de fato deveria combater os seus excessos, separando-a desta instituição tão sagrada (a república) bem como seu livro de efeito (a constituição) que sutilmente fora substituída por uma bíblia, cuja interpretação vinha sempre do grupo religioso que tinha o maior curral eleitoral em questão.
    O fundamentalismo religioso imperou por essas 13 décadas com os evangélicos, assim como dominou por mais de 1200 anos com os católicos. 
    Juízes, desembargadores e pessoas do Supremo: todos eles (em grupos fechados) sentiam-se tão culpados quanto seus antepassados nos tempos de Lutero, Galileu, Giordano Bruno e tantos outros silenciados (ou injustiçados) pela Santa Sé, que julgava acima de qualquer outro poder terreno.
     Em meio aos risos, a menina prosseguiu e, apontando para a capa da revista em suas mãos, leu a lista que estava nas mãos do pastor e disse:
— Mas vó...! Nessa lista que o pastor segura no altar em pleno culto, nos itens, estão itens à venda: mini tijolinho para construir sua casa nos céus; água ungida do rio Jordão; feijão mágico que combate doenças letais; chave da vitória que abre as portas de todas as bênçãos; caneta santificada que realiza os desejos que escrevemos; terra do Monte Sião; restos de construção do templo sagrado...
    A lista era interminável!
    A menina completou:
— É sério que havia gente tão burra para acreditar nisso?
    Sophia a repreendeu outra vez. Desta feita, apenas com um olhar, lembrou-a dos conceitos técnicos recém-apresentados sobre a inteligência Condicionada pertinente àqueles escravizados pela fé, ingenuidade e ganância, disfarçada de servidão a Deus. 
    A menina desculpou-se de novo.
    Sophia mais uma vez alertou não estar ofendida, pois conhecia bem a criação que dera à sua neta, que queria apenas evitar que a sua prole se metesse em encrencas com gente mais sensível, cuja patologia ainda era objeto de estudo e tratamento. Sem falar, que de quando em quando, havia nos arredores, um ou outro ato terrorista, cometido (ou incentivados) por aqueles que antes viviam no luxo, explorando a desgraça alheia, e agora eram tratados como pessoas comuns (não como divindades ou celebridades) e precisavam trabalhar para que (assim como todos) pudessem tirar do seu próprio esforço, o sustento ou riqueza equivalente a sua própria coragem e competência. 
    Coragem e Competência para o Trabalho! 
    Essas eram a segunda e terceira palavra mais odiada por todos os que viviam da "vida fácil" que a ingenuidade alheia lhes proporcionava. A primeira delas era o próprio vocábulo TRABALHO.
    Loren entendeu a gravidade do assunto.
    Percebeu que, mesmo sem saber, poderia esbarrar-se com "gente da pesada" por descuido ao fazer tais alegações e se desculpou mais uma vez.
    Em resposta, dona Sophia disse como se quisesse ensinar, sem constranger:
— Isso não é tudo: O produto mais caro de toda igreja sempre foi a salvação! Eles ameaçavam as pessoas com o inferno e lhes ofereciam os céus como alternativa de um problema que eles mesmos criaram. O pagamento principal era a obediência irrestrita ao líder local, aos dogmas da igreja e a toda uma hierarquia ascendente e horizontal da igreja. Isso poderia incluir somente a família de um pastor de uma assembleia recém-formada ou até de uma ordem sólida com mais de 100 anos de existência. 
     Sophia prosseguiu:
— Isso poderia implicar em obedecer a quase (ou mais de) 1 milhão de pessoas com idades, interesses ou níveis de escolaridade diferentes numa mesma organização, cuja gloria e respeito eram exigidos de forma particular, relativo ao grau ascendente que ocupavam no ministério ou conforme os “podres” que sabiam um dos outros e de seus superiores.
   Sophia completou:
— Um crente novato, por exemplo, que descobrira (ainda que sem querer) algo que não devia sobre alguma liderança e sabia usar isso como moeda de troca, podia ser tornar tão (ou ainda mais) influente e poderoso que um pastor veterano com 50 anos de ministério, cuja carreira fora construída somente com bajulações doentias e obediência cega aos mais antigos.
   Os olhos das meninas ficaram arregalados, como se fossem sair de órbitas. 
   Como se estivesse vendo um fantasma, ela perguntou:
— É sério isso? Mas eles não eram ungidos? Não eram santificados? Como poderia tudo isso ocorrer sem a punição divina?
   Com um ar pesaroso, a idosa meneou a cabeça e disse:
— Pois é, minha querida: há mais mistérios e segredos hediondos em uma pequena igreja do que grãos de areia de uma praia inteira. Esta é uma conversa longa e não intento revelar tudo de uma só vez, pois pode te gerar sérios transtornos do mesmo modo que gerou aos “usuários dos templos” naqueles dias tenebrosos. Amanhã prosseguiremos esta conversa. Talvez um assunto por vez. Volte a brincar, amanhã prosseguiremos. Preciso sair e esticar um pouco as pernas. Respirar um ar puro para liberar essas emoções ruins do passado que voltam sempre que toco nesse assunto deprimente.
   A criança virou-se para sair, quando ela a tocou em seu ombro e disse:
— Outra coisa: cuidado ao vasculhar minhas gavetas! Há coisas que você não está preparada para absorver. Além de uma religiosa loquaz, também fui jornalista, cientista, pesquisadora e defensora dos direitos humanos. Guardo arquivos (na memória) e nas gavetas, que poderiam causar uma terceira revolução (se fosse o caso). Posso confiar que você será cuidadosa em averiguar tais conteúdos, não é?
     A menina afirmou com a cabeça. A idosa completou:
— Compartilhar com outras pessoas, nem pensar. O que está ali deve permanecer ali! Tenho confissões e pesquisas que poderiam comprometer a hora e a imagem de muita gente, talvez até de instituições inteiras, acirrando assim o ressentimento que muitas “ovelhas” trazem de seus antigos “pastores”.
    A neta concordou. Jurou ser cautelosa. Sabia que podia tirar proveito disso e crescer em sabedoria com uma testemunha viva, ou seja, sua própria avó, autora e observadora da própria história e suas atuais revoluções. 
    Uma das poucas sobreviventes.
    Assim eram chamadas as pessoas que conseguiram se desligar (ou enfrentar) o sistema religioso e permanecer vivo e sem tantos traumas psicológicos.
    Aquela conversa não representava nem 1% daquilo que Sophia desejava compartilhar com sua prole antes de deixar esse mundo. Esperava fazer isso somente quando a maior idade viesse.
     Ela, porém, lembrou-se de que maior idade e maturidade são coisas totalmente distintas.
     Lembrou-se de seus dias de “pivete” e o quanto sua curiosidade e desejo pelo conhecimento haviam conduzido o seu destino até ali.
     Dias de perseguição e dias de glória!
     Era sempre assim, entre altos e baixos, e ela não se arrependia nenhum pouco disso...
     Uma vida apenas de crenças e obediência cega é uma vida que é inútil ser vivida.
     Ela não queria isso para ninguém, muito menos para sua neta, cuja mãe deixara essa vida em uma situação extrema, poucos anos após a grande revolta… 
CONTINUA...
Texto (conto) escrito em 26/1/24.
*Antônio F. Bispo é graduando em jornalismo, Bacharel em Teologia, estudante de religiões e filosofia.  
Obs.: a parte 1 desse conto chama-se O POVO PAGÃO e pode ser localizado aqui mesmo neste perfil. Caso não localize, ponha no google ou chame no PV que vos envio. Grato por vossa companhia!
Acompanhe os demais capítulos desta saga.
Você pode também sugerir desfechos alternativos e apontar personagens ou situações para deixar este conto ainda mais empolgante.
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Atualizado em: Seg 27 Jan 2025

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