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A VOZ DO SILÊNCIO
Três vozes socorreram A' hu Lassad.
A primeira voz foi a de sangue – tenebrosa, gratuita, chamou-lhe para fora da mortalha fria, de tintura preta, sóbria, e de componente da mais fina seda.
A segunda voz, da angústia – inebriou com insensível obscuridade as mentes mais fortes dos Parváts e Lannins. Tornou-os cegos por alguns instantes. E camuflou a presença do Espírito Livre.
A terceira voz, a que encerra o descanso, e que permanece oculta por mais de um século – fundiu-se, por excelência, contra as cotas de malha, os mantos secos desgastado, e as botas úmidas dos vigilantes.
Foi levada até a sala arqueada, de eco em eco, assolando-se aos homens, e por fim, tragara a inexistência dos vultos pueris dos irmãos jovens.
Os perfis se debateram, horrivelmente, e então, em instantes, as vidas os foram tomadas, e seus corpos despencaram como bonecos, espatifados contra o assoalho, seus lábios não emitiram nenhum som.
A voz curta e doentia que os invadira e que burlava o sepulcro, se manifestando por cima do mármore, do ferro e depois sobre o selo.... Essa era a voz da Ordem.
E com as duas primeiras vozes inclusas subtraíram dos manguezais de corpos o cadáver flácido de A' hu Lassad.
- Das veias da ignorância, tu clamas.
- Seu suplício é encontrado em todas línguas do mundo.
- Sua voz é a origem.... Tudo que é Céu e Abismo surgiu de teus lábios...
A abóbada tremeu.
Pedras linchadas entre as alturas dos arcos de pilares de tamanhos colossais, rochas britadas e pedaços com metais transitando de cobre á platina, moldados dos pontos curvilíneos extensos, em toneladas até as juntas dos edifícios, fazia-se um escudo deprimente de trinta metros de altura sob o módulo assentado na superfície da gruta. E mesmo do arco mais alto da redoma pôde-se ouvir a série de bombardeios sonoros vindo da profundeza fechada daquele recinto. E a cada batimento, as toneladas de materiais de construção soltavam areia e chumbo, os metais ardiam, o ar implodia.
Os corpos dos Jovens vigilantes mortos agora transpiravam, e entravam em espasmos periódicos.
Da sala arqueada, de dentro do mausoléu, as três vozes aquietaram-se e viraram uma só criatura.
O silêncio excessivo se apoderou sobre o domínio, da escuridão do velho complexo, cada sombra se reduzia ao rítmico batimento e da respiração do ser enterrado. O silêncio absoluto apoderou-se sobre as paredes, as silhuetas das estátuas antepostas na entrada da câmara, e impregnou de maneira interna os pilares e as trezentas sepulturas solitárias na cavidade externa da sub câmara, postas quase de maneira antagônica ao lugar que servia de monumento nefasto, e prisão para o Lorde Renegado.
Logo, o som do silêncio se completava com os ruídos dos órgãos dos sentinelas assassinados, que absorviam últimos recursos, e que em último auxílio gástrico, faziam com que a urina e as fezes escorressem miseravelmente para fora de seus corpos. E o som de seus excrementos, produzidos numa flatulência mesmo após suas mortes, pingando toxicamente sobre o piso, também, logo, se tornou do silêncio, e do silêncio apenas.
- ...
Da mudez prolongada, A´ hu Lassad saíra do estado putrefato de sua urna, partindo tudo, inclusive a pedra, a madeira, e o mármore, para sobressair, bocejando, de sua cripta escura e fedida.
Piscou os olhos. Suas pupilas eram negras e imensas, e a parte branca dos seus olhos não existiam, e sua íris eram lindas, profundas esmeraldas.Então, ele piscou de novo, e seus olhos se transformaram em topázio, do mais lúcido azul celeste.
Seus cabelos eram longos e escuros, formavam uma cascata indomável de cachos entorno de seu rosto afilado. Sua pele, escura como ébano, se mesclava com a escuridão entorpecedora, e só as pérolas de seus olhos e suas vestes se tornavam excessivamente visíveis. Seu vestido, longo, com uma cinta branca sob os quadris e que ia em um corte inclinado até a altura dos joelhos, a peça era elegante e cheia de ouro. Brilhava; As mangas, os ombros, e a circunferência de seu busto eram marcados por símbolos elegantes de sua falecida Casa Imperial.
A'hu Lassad, vigésimo de sua linhagem, olhou fixamente para os corpos que tão rápido se decompunham através da magia. Notou como eram jovens, e percebeu as insígnias que adornavam os mantos em suas costas.
- Lannins... – o desprezo era carregado, e ele cuspiu, antes de se virar para observar toda a redoma de pedra que o encarcerava. Os túmulos predispostos em fileiras, na outra seção da câmara, quase que não o atraiu a atenção, e ele não teceu nenhum comentário. Seus radiantes olhos ficaram presos sob as duas estátuas gigantes que se emparelhavam ao redor da entrada da tumba.
As formas eram de duas mulheres seminuas, nenhuma delas com cabeça, ambas grávidas. Apontavam para o interior do mausoléu com um poder inquisitivo, e era palpável a magia nas duas esculturas.
A’hu se perguntou o que ou quem elas estariam representando. As imagens dominavam alguma bênção hierática, isso era claro, mas sempre associadas à algum canto e rito divino, suas personificações não eram tão óbvias e costumariam variar entre os mitos, na maioria virtuosos, das fábulas entoadas pela população. Tentou recobrar de qual hino seriam aqueles personagens, e quem elas seriam.
Fez um muxoxo, e estalou a língua.
- Estive aqui embaixo por muito tempo, parece. – Cerrou o cenho, um sorriso irritado florescia da sua face. Ignorou as duas estátuas por alguns segundos, e ergueu os olhos para encarar o arco abissal daquela tumba mortífera.
Que lugar terrível, constatou, desgostoso. Não fizeram nenhuma cerimônia em alojá-lo naquele espaço subterrâneo, tinha certeza, e aquela arquitetura simplória infeliz de uma gruta comum, foram ali que haviam decidido largá-lo... Após tudo o que ele fizera.
Ergue uma sobrancelha, sondando os arredores, semicerrando os olhos sobre a fenda macabra do lugar que fora seu local de descanso por... Ele não sabia quanto tempo havia se passado.
Presumia que houvessem passados bons anos, já que constatara a ascensão dos Lannins ao poder. Só uma Casa Guardiã podia ser escolhida como protetora de um templo ChayOm. E ele podia ser considerado um indigno, e seu corpo certamente não estava sendo adorado, nem mesmo mantido em uma das habitações bem zeladas do Império, muito pelo contrário. Contudo, também não o haviam jogado dentro de um poço, ou o enfiado em uma cova qualquer. E também não estava em indecentes catacumbas, exposto como um desafio, uma diversão para os ladinos, ratoneiros, mercenários e invasores de tumbas ilegais.
A'hu Lassad imaginou si próprio nas mãos do povo medíocre, e insetos da plebe, e teve um estremecimento imperceptível. Seu sorriso gelou.
Ficava contente por não terem feito isso com ele, mas imaginava que o motivo estava longe de ser qualquer solidariedade. Era muito provável que vários lordes houvessem desejado esse tipo de destino vexaminoso. – Revirou os olhos, se lembrando do comportamento da oposição em sua época – Talvez, em última hora, eles tivessem, quem sabe, sido convencidos pelos Sábios, e votado todos contra esta ideia terrível.
Os Meistres das Torres tomavam exímio cuidados para com os corpos de todos os Arcanos. Cuidados especiais, de proteção contra tributos, contra controles mentais, impedimentos de reanimações, e expulsões de exumadores. Coerentes, era de todo direito deles de se preocuparem com alguém procurando e desenterrando os restos mortais de um discípulo da Escola, que possuísse um título de erudição ou não, independentemente do nível de instrução que este atingiu antes de morrer. O que eles menos desejariam era um Arcano Zumbificado e controlado por um necromante, ou um dos seus sendo exumados e investigados por alguém da Paróquia.
Então eles haviam optado por enterrá-lo vivo. A'hu refletiu a situação, com uma vontade de rir, embora não sentisse nenhuma graça. ''E os malditos Lannins estão em poder, e sob a posse da minha segurança!'' Questionou- se por que ainda não o haviam matado. Entendia o porquê de não o terem enfiado em espaços de vergonha, e não humilhado seu corpo em lugares públicos, e nem exposto seus pedaços trucidados em locais abertos;
Além das preocupações dos Meistres, o corpo do Lorde Renegado não poderia ser colocado em tais situações indignas pois uma boa parte da população o havia adorado durante seu reinado, sem contar os inúmeros aliados menores que tivera com As Casas de Baixo e com os Artificies e aprendizes reais, e estes não tolerariam desrespeito contra sua imagem, antes de dividirem o reino em um caos de rebuliços populares e revoltas estrondosas.
Mas, por outro lado, se seus opositores quisessem evitar tais consequências, bastava torturá-lo e humilhá-lo em segredo, antes de moer sua carne e lança-la para dentro de uma tumba. Ele mesmo conseguia imaginar diversas maneiras criativas.
Além das preocupações dos Meistres, o corpo do Lorde Renegado não poderia ser colocado em tais situações indignas pois uma boa parte da população o havia adorado durante seu reinado, sem contar os inúmeros aliados menores que tivera com As Casas de Baixo e com os Artificies e aprendizes reais, e estes não tolerariam desrespeito contra sua imagem, antes de dividirem o reino em um caos de rebuliços populares e revoltas estrondosas.
Mas, por outro lado, se seus opositores quisessem evitar tais consequências, bastava torturá-lo e humilhá-lo em segredo, antes de moer sua carne e lança-la para dentro de uma tumba. Ele mesmo conseguia imaginar diversas maneiras criativas.
Algo estava errado.
Revirando os olhos em direção ao seu túmulo, com a expressão complicada, retornou pelo mesmo caminho do lugar da qual tinha saído. Os pés descalços e a bainha de sua vestimenta se arrastaram na poeira, enquanto ele se movia lentamente até o encontro de sua tumba.
Os pedaços violentados da superfície se abriram para ele, apresentados como dentes. Fileiras de presas; incisivos e caninos, irregulares, e no interior, uma garganta que exalava um odor quente, e do fundo, uma sórdida estrutura, fissuras ocas e pequenas dumas rochosas de calcário, enfiadas por entre, pedaços de concha e pontudas hastes de minerais e piche. O abismo se aproximava como uma boca escancarada de um louco preso em uma risada histérica. A aura era pesada. Pedia para que ele entrasse de volta em sua cova e se enterrasse ali com a composição do solo.
Sem se impressionar, A'hu Lassad se curvou sobre a vala onde estivera seu corpo e se ajoelhou no solo devastado, a manta do vestido contra a sujeira de cimento e areia, e então, nem um pouco intimidado com o abismo que ria diante dele, se prostrou com as mãos suaves na parte superior, fria e áspera, de sua lápide. Leu as inscrições e não compreendeu o que estava ali escrito. Não fazia sentido.
Ergueu-se de repente, as mãos ainda repousadas na lápide. Os olhos escorreram atônitos da cratera imensa, do memorado, de seus pés nus, e acabaram pousando do outro lado do salão, onde as sombras dos trezentos sarcófagos finalmente lhe chamaram a vista.
Notou as pequenas luminárias, penduradas entre as urnas funerárias erguidas, cada qual que se projetava magnífica, as madeiras sutilmente lustradas, e pareciam terem sido entalhadas a partir do ouro e do mogno mais escarlate.
Estudando a gruta com mais cuidado, não deixou de ranger os dentes com a clara discrepância entre o tratamento dado para sua urna, enfiada em um poço e na região obscura sob cuidados desleixados, e as funerárias aparelhadas, bem iluminadas, e com tablados de marfim no fronte, as letras cuidadosamente esculpidas.
Era de se esperar, ele se convenceu. “Mas quem são vocês? ””
Indo até lá, se aproximou e tocou, hesitante, com uma das mãos, e a deslizou contra as dimensões de um dos sarcófagos. Estendido a mão, quase de imediato largou e se afastou do ataúde, com a posição em guarda. Havia sido tolo, agido por um movimento involuntário, e levado pela curiosidade, nem chegara a pensar que aqueles túmulos poderiam segredar um nível de ameaça contra a sua pessoa.
Talvez estivessem ali justamente para guardá-lo, sendo uma extra defesa, para impedi-lo de emergir á superfície. Como aquelas duas estúpidas obras dissimuladas, que preparavam uma emboscada na entrada da câmara, cujos dedos o advertiam á todo segundo.
Instintivamente se arrependeu, recuando passos para trás, mas no momento em que fazia isso realizava o óbvio. “ Não há magia".
Os ataúdes não se moveram, o mausoléu permaneceu neutro, e A'hu expirou, a tensão saindo de seus ombros, enquanto seus olhos perscrutavam os caixões dos mortos; a ínfima luz dourada emitida pelas velas dos tocheiros atingia o seu rosto e seus olhos claros, que relutantes, desviaram a visão em um desconforto. A pigmentação, por alguns instantes, se tornou de um verde desbotado.
A'hu Lassad encarou o monumento de mármore. As memórias ali escritas diziam: Forhóevgan, Coração de três Leões. – Juramentado da Coroa. – Vhând Hárct Slowegh... Parou de ler.
Ele não conhecia a entidade. Desceu os olhos até a lateral da lápide, e por sorte encontrou assinaladas as últimas funções do morto, e por qual prestígio ele fora condecorado. Seguindo as linhas com o dedo, ficou algum tempo procurando algo que valesse, e quase desistiu, quando finalmente notou uma frase relatando a tal incrível perícia do falecido. “ Paladino da Fé. Não manifestado. Unção pós morte”.
Era só isso. Nada dizia sobre morto em combate, honrarias, ou o cenário de sua morte.
- Por acaso, um Exonerado da Ordem?
Às vezes, ocorria de suspenderem por tempos ilimitados a profissão de Arcanos ativos, e quando estes morriam, ficavam anônimos, sem honrarias, até descobrirem o cadáver. Mas este não podia ser o caso. Estavam enterrados em um templo ChayOm.
Talvez fosse mais obscuro, A'hu elaborou em sua mente.
Vez ou outra, a Ordem ampliava os seus poderes além de sua jurisdição e manipulava as cortes a oferecerem imunidades para seus alunos preferidos, quando seus pecados não eram grandes demais. Entretanto, outra medida era tomada, e o ofício de qualquer um destes alunos seriam apagados dos memoriais púbicos, e do Templo.
“ Sobretudo se estivessem em delegações, camuflados como outros. ” – Ele finalizou as buscas, insatisfeito. Se virou para olhar as outras lousas dos desconhecidos, quando tocou um pequeno símbolo com o polegar na superfície da laje que verificara.
A'hu Lassad, o Renegado, ficou boquiaberto:
- O que... – As lamparinas embrumavam os túmulos, porém, o ar era de tal densidade que criou um complexo entorno das lápides escuras, e a luz irradiada mantinha-se presa naquela região. A imagem era clara. – O Olho de Deus... Como... Agora vejo, Paladino da fé”. Não é da nobreza. Não um dos nossos.
“ Não consta absolutamente nada dele em serviço das Realezas, e nem do Império. Mas aqui está ele, “ungido’, como se pertencesse à alguma Classe clerical. Enterrado no Templo e ainda... com este maldito símbolo...”
A raiva o corroía por dentro. Aquela era uma traição inaceitável. Abominável! Que ideia era aquela? O que a Ordem estava fazendo? Até mesmo os Lannins teriam motivos para serem contra tal atrocidade. Lembrou-se deles, e pelo ódio que eles nutriam dos Defensores. Não era possível que tivessem virado a casaca. As poucas vezes que A'hu e os outros nobres concordaram eram quando decidiam sobre a destruição dos inimigos da Ordem.
E a Paróquia era a pior e a mais detestada, e todos os Arcanos entravam em consenso sobre isso. Apesar disso... O Olho.
A'hu se afastou da lápide com ferocidade, e repugnado. Definitivamente, algo não estava certo.
Voltou seu olhar para as inúmeras lajes, as tumbas de matizes rubras e circuitos dourados, guarnecidas por lousas de pedra, e espalhadas pela galeria parcialmente iluminada. Pressentiu o pior e sabia que caso olhasse cada monumento sua intuição se provaria correta. Os trezentos sarcófagos erguidos não seriam de ninguém da Ordem. Seriam todos do Olho.
Tentou se acalmar e pensar com clareza. Mas tanto quanto antes, se sentia perdido. Seu memorial na lápide, os corpos dos Defensores zelados em um Templo de sua sociedade, a magia estranha que sentia no ar, o sabor do silên... A'hu Lassad caiu.
Sentado encima de um dos tablados, as mãos entre os joelhos, e o rosto confuso. Então, se deu conta. Como não se lembrava do que havia acontecido? Por que não tinha conhecimento sobre como havia sido enfeitiçado? E.… como havia acordado?
De início, presumira que a Ordem o houvesse adormecido, imobilizando-o, e o mantido ileso e preso, silenciado por toda uma eternidade dentro de um caixão. Sua segunda opção, fora especular que estivesse estado, por um tempo indeterminado, em um selamento místico da mais Alta Classe. Mas agora, tinha suas dúvidas. Nenhum desses feitiços causavam a amnésia, ao menos que lhe tivessem lançado algum Impedimento com algum feitiço de modificar a memória. Mas uma magia dessas, nestas proporções, era improvável que não perdesse a influência externa, e agora que estava acordado, seria estranho que aquele que lançou o feitiço não aparecesse, após o alvo desobedecer ao comando de paralisia. Um Arcano dotado que prega peças nas memórias de corpos desanimados, com toda certeza, sentiria com facilidade a desconexão de um dos seus feitiços. E havia outra razão para descartar aquela teoria, sua perda de memória era incompleta. Se lembrava de tudo, menos de seu encarceramento. Os detalhes de sua queda ainda estavam mornos, recentes.
Descartando as opções, só restava uma alternativa, e ele se arrepiou, imediatamente relançando um olhar sobre as suas mãos. Virando as palmas, manteve os olhos presos em sua carne, o temor subindo:
- Não. – E não pode ser pois estou ciente de mim. Pensou. Minha mente e meu espírito não estão sobre o controle de outro.... Ou será assim que eles se sentem, quando estão sendo controlados?
Ressurreição: O temor de todo e qualquer instruído.
Muito além de simples uma reanimação de necromancia, um poder tão obscuro, tão terrível, que seus ensinamentos foram expulsos de qualquer vertente mágica na terra, os seguidores da feitiçaria ancestral foram exterminados, e qualquer menção da magia tida como tabu. Tal a corrupção e a perversão que a habilidade formulava, nem mesmo A’hu, tido como o mais profano dos profanos em sua época, tivera a coragem de buscar conhecimento nestas partes da feitiçaria.
A ressureição, ele sabia, fora um poder oculto dos mais elevados. Não uma mera autoridade sobre os mortos, mas uma sedução que trabalhava sobre a derivação das coisas, uma magia voltada à troca do significado das palavras, a subversão da linguagem e a quebra completa de seus conceitos. Um homem que utiliza da linguagem é um Mago, um feiticeiro. Já o homem que controla a linguagem, domina seus efeitos e os desprende de seus significados anteriores.... Este é o Xamã.
Mas é impossível que seja o caso.... Conhecia as lendas. Além do fato inegável de que os que praticavam esta antiga arte haviam se tornado pó e adubo, a exilada escola de videntes apagada da história, a magia era tão profunda que mesmo os fascinados pela prática omitida, os Ocultistas, fãs das pesquisas sinistras e escondidas, não conseguiam encontrar um fator que os levassem para uma conexão verdadeira com a encantação maligna.
E havia outro caso, pelos contos era sabido que uma magia ancestral exigia uma carga de valor proporcional entre o convocado e o usuário. Uma magia dessas, que quebra as dimensões entre o espaço e o tempo... Era para A’hu Lassad, o feiticeiro dos feiticeiros e o Imperador da Grande Masíbia estar sentindo alguma coisa, uma mínima fagulha de simpatia entre ele e seu conjurador, pelo menos.
Mas não sinto nada. Olhou de esguelha para o umbral colossal, com os dois artifícios ainda paralisados, inanimados. Por exemplo, consigo sentir a ilusão advinda daquelas duas partes. Uma magia forte, mas nada além. Voltou a ignorar as duas estátuas estranhas, e a saída da tumba, e suspirou fundo, enfiando as unhas nos joelhos para aumentar a concentração. Parece um século que não uso magia. Será que passou todo esse tempo?
Não obteve nada. Soltou o ar, os brilhantes olhos piscaram e percorreram o escuro. Ele ficou em silêncio por alguns segundos. ''O Silêncio...
Um pensamento o interrompeu, de repente. E se a magia fosse tão profunda, que ele não fosse capaz de senti-la? Um mágico capaz de controlar a linguagem das coisas, e ter poder sobre a vida e a morte, com conhecimentos que até mesmo o Lorde Renegado temera quando vivo. Um ser desses teria facilidade não só para manifestar uma magia ancestral, como também conseguiria exercer um poder invisível sobre as coisas vivas, não é?
A' hu Lassad voltou a suar frio. Enfiou as unhas mais fundo na carne e focou na dor, se sentindo completamente vivo. Mas e livre? Não posso descartar a hipótese de estar sob o controle de outro.
Abaixou a cabeça, e entrelaçou os dedos, apoiando o queixo, enquanto encarava o chão. A expressão se tornou cada vez mais inquisitiva. Se perguntou mais uma vez quantos anos haviam se passado, e como seria esse novo período.
Talvez, a nova sociedade aceitasse mais fácil as pesquisas ocultas, talvez a Ordem tenha deixado de velar o conhecimento sobre a razão ilimitada, e o conhecimento tenha sido dissipado entre o povo. Talvez os tabus de outrora não mais existissem, e dependendo do tempo, as novas culturas ascendidas se fizessem cheias de magos e ocultistas obscuros, adeptos das antigas e proibidas artes da magia.
Lassad suspirou, era enorme o número de opções. Não ficou confortável com nenhuma delas, e imaginou uma ralé de feiticeiros clamando por sua posse, ou um xamã excêntrico o convocando dos mortos. Fosse qualquer um destes casos, ele não entendia o motivo.
Não que tivesse uma imagem incerta de si. Não. Nunca. Sabia quem fora, ou melhor, quem era. O Mago dos magos. O Feiticeiro mais poderoso de seu tempo, e o líder mais sublime, com um governo esplêndido que se estendeu sobre vales e planícies, e destronou reis e conquistou povos. Contudo, mesmo em sua idade mais sábia ele nunca tinha adquirido o núcleo da magia, ou domado seus significados. Reteve-se em apenas utilizar de seus feitiços para os seus princípios, e para os objetivos do seu império. Fora um gênio, mas havia tido contato com pessoas mais habilidosas, e lido histórias, e escutados rumores assombrosos, que encantariam qualquer homem. Não se fazia cego para estes fatos.
O que faria alguém do futuro, de uma era, que se fosse o caso, capaz de conquistar o poder sobre a vida a morte, precisar da influência de seu corpo e do seu espírito? Estranho uma entidade com uma magia mais poderosa que a sua necessitar de sua ressureição. Com tantos outros feiticeiros experientes por aí, transformados em deuses nas mitologias históricas.
Achava tudo aquilo, se verdadeiro, um tanto absurdo. Se lembrou dos contos de seus velhos instrutores, sobre homens antigos com poderes que os faziam recitar as vozes dos antigos. Usando seus corpos como intermédio dos espíritos para que estes lhes contassem os segredos do mundo.
Sempre imaginou que os xamãs dos tempos esquecidos utilizassem do poder da ressureição por causa de um objetivo parecido. Pelo menos, os videntes pregariam algo parecido, enquanto eram caçados até os campos de Ávidgar. ‘’Não deixais a história morrer, as vozes do mundo são de uma herança que não nos é permitido deixar para trás. Cada homem tem uma voz que anseia para ser escutada. Somos os ouvintes perpétuos das transições da humanidade.’
Todavia, A' hu Lassad era de carne e osso, não era etéreo e nem levitava, e certamente, não estava afim de contar absolutamente nada para ninguém.
Se levantou da laje, e vagou sem pressa até a entrada da tumba. Não tentou atravessar o umbral. Ficou apenas parado, os oceanos de seus olhos perscrutaram a área e afogaram as dimensões das esculturas sinistras, que ele não pode deixar de reparar, o vigiavam com suas presenças de mármore. Encarou-as por um bom tempo, mas as duas criaturas permaneceram no mesmo gesto, os dedos voltados para o mausoléu, simples gigantescas peças de decoração.
O Imperador franziu a testa, e voltou a dar as costas, sentindo a correnteza de forças malignas. Sentando novamente encima de um dos túmulos, ignorou a vontade ameaçadora, o desejo por sangue mal disfarçado no ar, e voltou a se inserir em uma reflexão repentina.
Aquelas criaturas.... Não estavam ali por ele, estavam? Era improvável que a Ordem tivesse posicionado bichos tão inferiores para confrontá-lo. Talvez fossem para impedir certos indivíduos de tentarem roubar os cadáveres. Visto que as criaturas estavam posicionadas dentro da câmara e apontavam de modo impositivo para o interior do mausoléu, não era difícil conceber a ideia de algum oficial tentando subtrair algum corpo, pertence, ou candelabro do recinto, e essa ser a forma escolhida para evitar o problema.
Pensou se elas o deixariam passar, com tranquilidade caso ele quisesse, ou se considerariam uma infração. Pela aura que sentia, podia apostar que já sabia a resposta.
''Supondo que eu esteja sendo controlado e sob efeito de alguma magia, será que elas considerariam isso como a apropriação do meu corpo? Se eu realmente me tornei o invólucro de uma outra vontade, a minha saída será forçada.''
E, por tanto, as estátuas considerarão como furto.
''Ficarei sabendo quando atravessar.'' Mas, após o atacarem, teria de se considerar um cadáver ambulante sem vontade própria? ''Se sou um cadáver ambulante sem voltada própria, então cadê o suposto Mestre, e por que continuo pensando?'' Nada fazia sentido.
Por alguns segundos considerou a alternativa da sua vinda ser a obra de algum admirador tentando reviver seu ídolo histórico, ou a ação de algum fanático por magias, um louco que pouco se preocupava com os deveres ou os porquês do exercício da feitiçaria. Mas excluiu todos os casos na mesma velocidade. As possibilidades eram multíplas, e os motivos triviais.
A única coisa que importava era descobrir a extensão e os efeitos daquela magia. Se era como uma invocação, e se ficaria preso a um contrato, como um demônio ou um gênio, subvertido aos desejos alheios.
Esfregou o rosto com as mãos, se cansando de toda aquela introspecção. Sempre fora um homem da ação, do confronto inesperado contra seus inimigos. Mas aquele era um momento curioso, e precisava de cautela. Mas odiava as hesitações da alma.Se preparou para se levantar e ir embora, temendo que sua preocupação virasse uma nojenta covardia dos fracos, e que se contaminasse com aquela pausa ensurdecedora.
Piscou os olhos. ''Ensurdecedora?'' Qual o motivo de ter pensado essa palavra? Tudo estava quieto. Não. Há uma inquietação no ar.
Relançou um olhar para as gárgulas, suspeitas. Não eram elas. Era algo superior, uma projeção nem maligna ou benigna, porém, suave e.… distante. Foi quando ouviu. Ou melhor, finalmente, notou o que escutava. Era uma sinfonia. Era o sabor da umidade, do denso ar e seu fluxo. Era o calor das pedras, a tensão acumulada nas paredes e nos solos. Era o som das coisas vazias, e que diminuíam, e então, que se transformavam... em nada.
A' hu Lassad respirou fundo, paralisado.
Escutava o som de um turbilhão imaterial, e de sentidos opostos. Escutava o som do nada, e o que era imperceptível.
O imperador não sabia, mas escutava a Voz do Silêncio.
Atualizado em: Qui 4 Jan 2024