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O Senhor das Sombras

Prólogo
 
Esta história fala sobre o Lado Sombrio da alma: o que não gostamos sobre nós mesmos. Segundo o psiquiatra e psicoterapeuta suíço Carl Jung, (1875/1961), o lado sombra de cada um de nós, também chamado do “lado obscuro ou negro” é aquela parte do inconsciente que desprezamos, escondemos ou rejeitamos. A grande maioria de nós desconhece esse lado, mas quem o conhece, pode ter dificuldades para lidar com ele. E após despertado, pode trazer consequências irreparáveis. Nosso personagem principal, o escritor Lawford, visita seu amigo e psiquiatra, o dr. Frontin Lebranc, e a partir de sua chagada a Clínica San Antonio, onde o lado sombrio de cada paciente é levado ao extremo. Situações que beiram o inacreditável são vivenciadas por nosso escritor.
 
Primeiro Capítulo
A Viagem.
 
Estávamos no intenso inverno Londrino de 1857, após haver saído de Londres pela ferrovia National Rail, poucas horas depois desembarquei na estação Railway Station, no Condado de Doncaster, e dirigi-me até a estalagem Sauvage, que era a mais próxima da pequena estação local, onde tratei imediatamente de alugar um coche, pois meu destino era a pequena cidade de York, no vale que levava o mesmo nome. O trajeto de saída de Doncaster, passava pelo subúrbio de Balby, onde belas casas com seus telhados elevados e pontiagudos, e janelas retangulares, deixavam a região com um toque austríaco em suas construções.
Pelas informações que tinha coletado quando passei pela Aldeia Kirk Sandall, e com alguns amigos que conheciam a região, antes de chagar ao vale, eu seguiria meu curso ladeando o rio Cheswood, que acompanha por grande parte da estrada e depois de algum tempo, chegaria a vila de Ruchswick, já no Condado de Worcester, onde a peculiaridade são as casas perigosamente construídas a beira das falésias(escarpas), misturando beleza e perigo ao local.
Todas as informações a mim passadas estavam extremamente precisas e o coche e seu condutor me conduziam lentamente pela estrada Derwent Road, até York, uma cidade muralhada no nordeste de Inglaterra, e que foi fundada pelos antigos romanos. A enorme catedral gótica, YorkMinster, tem vitrais medievais e dois campanários funcionais, e uma beleza incomum em todos os detalhes. Chegando lá, deveria de imediato seguir ao encontro do meu amigo e prestigiado médico psicanalista francês, dr. Frontin Lebranc. Segundo o que o médico me havia relatado por carta, meu nobre amigo teria desenvolvido métodos revolucionários para controle da mente, entre eles a Psicastenia, que utilizava a hipnose individual para controle da histeria.
Durante o nosso vagaroso deslocamento, observei que quanto mais distante ficávamos dos vilarejos locais, mais a densa neblina envolvia nosso caminho, que agora já era através de uma estreita estrada entre os charcos e pântanos, que pelo seu péssimo estado, totalmente coberta pelo lodo.
Pela janela do coche, que balançava fortemente devido as condições inóspitas do trajeto, a visão dos charcos entre o intenso nevoeiro que a tudo cobria no cair da noite, era, sem dúvida, algo assustador.
Depois de atravessarmos os charcos e a névoa, que posteriormente descobri que permanecia dia e noite naquela região, e entre solavancos da carruagem, mesmo sendo já escuro devido ao adiantado da hora, pois a noite já havia chegado, não foi difícil ao cocheiro encontrar a estreita bifurcação que levava a cidade de York, no condado de Yorkshire, e a Clínica Psiquiátrica San Antonio, meu destino final.
 
Segundo Capítulo
Meu velho amigo
 
 
Meu velho amigo, agora com 65 anos, era diretor da clínica, e ali desenvolvia métodos não muito convencionais, e até mesmos contestados, para estudo da mente humana. Além de eletrochoques e imersões em água extremamente gelada, ainda incluíam seu conjunto de mecanismos de trabalho, incisões cirúrgicas para estudo da massa encefálica, e também o hipnotismo, motivo de minha visita, já que a muito tempo alentava relevante interesse pela metodologia do controle mental.
Durantes os últimos anos, Londres foi inundada por charlatões que afirmavam ter completo conhecimento para domínio da mente humana, mas que ao final, não passavam de ardilosos impostores, ludibriando a boa fé da sociedade. Frontin era uma das poucas exceções, pois após ler alguns artigos escritos por ele na revista da sociedade de psiquiatria londrina, escrevi a ele relatando meu interesse em escrever uma matéria sobre seu trabalho. Pedido este que foi aceito de imediato pelo médico.
Enfim, após transpor o gigantesco portão de ferro, que tinha em sua parte superior, distinta em letras grandes o nome da instituição, fui recebido pelo meu anfitrião.
---Sr. Lawford, estou lisonjeado pelo seu interesse em conhecer meu trabalho. Disse ele ao abrir a porta do coche para que pudesse descer.
Era um homem de estatura mediana, creio quem torno de 1,65 Mt de altura, e que se vestia muito bem, um fino traje em tweed preto e cinza, uma camisa em tons claros e uma gravata borboleta na cor vinho.
---Este é meu serviçal, Edgar. Ele vai levar sua bagagem enquanto entramos para tomar um chá e conversarmos.
Falou Frontin, apontando para um homem de meia idade que o acompanhou até o coche.
Antes mesmo que eu pudesse agradecer por ter aceito meu pedido, o médico colocou sua mão em meu ombro sinalizando que deveria acompanhá-lo para conhecer o incomum local.
Em uma breve oportunidade, assisti uma conferência do dr. Frontin em 1855, a dois anos, quando ele estive no Comitê de Psiquiatria Londrina. Naquela ocasião, eu pretendia escrever uma matéria sobre o mundo dos alienados e posteriormente publicá-la no London Gazette. Já naquele período o médico declarava seu interesse em abrir sua própria clínica, o que um ano depois acabou acontecendo, onde ele ficaria mais à vontade para trabalhar com seus métodos, longe do ceticismo dos críticos, que o chamavam de Lunático, e também da repulsa de muitos a respeito de sua metodologia.
Ao adentrar no saguão da clínica, já percebi que a construção era muito antiga, toda erguida em blocos de pedras escuras, um local extremamente grande, com pilares grossos espalhados pelas laterias, mesmo a instituição tendo uma ampla fachada, eram apenas dois andares, e sua ala principal ficava no térreo. Não haviam paredes separando os pacientes, apenas camas que ficavam paralelas as paredes laterais, pois como já mencionei, não haviam naquele gigantesco salão paredes divisórias.
Alguns pacientes, que creio eu, sempre estavam aos cuidados dos enfermeiros, ou de algumas freiras que também auxiliavam no local, permaneciam amarrados as bordas de ferro de seus leitos, certamente para sua própria segurança, e outros perambulavam desnorteados pelo corredor central, de um lado para outro, como sonâmbulos, talvez pelo efeito de algum sedativo.
Em uma primeira impressão, aquele local era uma imagem depressiva, muito distante do que eu havia imaginado. Apenas poucas janelas deixavam o ar fluir para dentro do degradante local, impregnado com o cheiro pestilento de excrementos humanos. Devo admitir ser aquilo um hórrido cenário.
A alienação humana exposta em seu grau mais assustador.
Mas era apenas o início de uma estarrecedora experiência, que eu jamais esqueceria.
 
 
Terceiro Capítulo
A Alienação Humana
Seguimos nossa caminhada um tanto espantosa para mim até o fundo da extensa ala onde uma escadaria nos levaria aos porões. Naquele local permanecia em condições sub-humanas e bestiais pacientes com elevado grau de demência, assassinos condenados a morte, todos encarcerados em minúsculas jaulas aguardando o momento em que eram levados a condição de cobaias humanas e assim cruelmente fornecerem sua contribuição, mesmo que não seja espontânea e consciente, para os experimentos de Frontin.
Ali tive consciência da total agonia que a mente humana pode chegar, o extremo da alienação incontrolável.
Gentilmente Frontin conduziu-me até onde seria meu quarto no andar superior da clínica, durante o trajeto dois pacientes despertaram minha atenção. Um deles já me era conhecido, tratava-se de Robert Roster, um jovem de Swuan Valey, que após matar a própria irmã Catarine Roster, afirma ser atormentado pelo espírito da falecida, o segundo caso é uma paciente chamada Charlott Dolms, uma jovem aparentando 25 anos, que segundo o médico, tem total liberdade para transitar pela clínica, Frontin disse que a jovem estava sempre a dançar, usando tão somente um retalhado figurino de bailarina.
Minhas parcas acomodações eram escassas, apenas uma cama de metal com um velho colchão, e uma mesa em madeira já bastante desgastada ao lado de uma cômoda. Sobre a cama haviam deixado alguns lençóis dobrados, um travesseiro e um cobertor. Uma caixinha com fósforos foi deixada sobre a mesa, o que possibilitou para eu ascender o lampião que estava sobre a cômoda, a arrumar meus pertences nas gavetas, que exalavam um fortíssimo odor de umidade.
Passado dois dias da minha chegada, Frontin já havia feito as apresentações aos enfermeiros e religiosas que o auxiliavam no local, mas minhas atenções eram concentradas na leitura das anotações sobre os experimentos em Psicastenia cedidas pelo médico, entretanto, outros episódios despertaram minha curiosidade. Um deles o fato de haver um cemitério em uma ribanceira bem próxima nos fundos do manicômio, e talvez por mera coincidência, durante minha primeira noite na clínica, pela janela de meu quarto percebi que um cadáver era arrastado para lá, pelos enfermeiros. Outra situação intrigante era a noite, quando de minha janela, no segundo andar da clínica, observava o dr. Frontin, iluminado apenas pela luminescência da lanterna que carregava em uma das mãos, abrir o pesado cadeado que
enclausurava todos que ali estavam, permitindo a saída do coche da instituição, onde Edgar e a jovem Charlott, com seu desgastado traje, desapareciam em meio a noite nebulosa. Os motivos daquelas saídas noturnas e para onde eles iriam ainda era um mistério para mim, pelo menos até aquele momento.
No decorrer dos dias, enquanto acompanhava o médico em suas visitas aos pacientes, percebi que alguns internos se negavam a falar, mas segundo Frontin, não eram desprovidos da voz.
---O não falar é a recusa da mente, é o não permitir que a outra personalidade se exprima, é o bem em confronto com o mal dentro da cada indivíduo.
Ele afirmava que todo indivíduo carregava dentro de si duas personalidades distintas.
---Todos os meus experimentos são para a libertação da criatura presa no íntimo de cada um dos pacientes. Em toda personalidade humana, duas criaturas lutam pela supremacia. Pelo domínio total da mente.
---Então devemos aceitar esta luta interior e priorizar o bem em nós. Comentei
Ele sorriu enquanto caminhávamos pelo corredor central.
---Bem ou mal, meros sofismas inúteis, meu amigo. O homem sempre soube que sua personalidade é uma instável e inadequada combinação de elementos conflitantes.
Frontin buscava libertar a sombra interior, oculta em cada subconsciente de seus pacientes. Segundo ele, a sombra é tudo o que foi negado, mas permanece oculto, ou seja, reprimido em seu inconsciente.
Outro paciente que me chamou a atenção era um jovem, creio não ter ele mais que 25 anos, e que durante a janta demonstrava grande habilidade ao tocar seu violino.
---Observe esta rapaz, meu caro Lawford. Disse Frontin
---Seu nome é Charles Peace, um exímio violinista, mas que ao libertar sua sombra interior, matou sua noiva Júlia Hofbrand, enforcada com uma corda de seu instrumento.
---Será que ele sabe realmente a diferença entre realidade e loucura? Indaguei, ao ver o homem sorrir a todos enquanto tocava.
---Talvez saiba, mas eu duvido, pois os olhos são inúteis, quando a mente é cega, perturbada. E continuou.
---A insegurança social carrega o custo de vestir uma máscara, de aprender a nos distanciar de nossa natureza única, de nossos desejos pessoais, necessidades e sentimentos; em vez disso, adotamos um personagem aceito socialmente. Peace foi uma das vitimas desta insegurança, pois ele nunca foi somente um músico, seu real instinto era de um assassino.
Respondeu o médico, ao mesmo tempo que levantava-se para sair.
Aos poucos fui compreendendo a natureza das pesquisas realizadas por Frontin, buscando alcançar o sigiloso, intrínseco na alma de cada paciente.
 
Quarto capítulo
O primeiro mistério
 
Recordo-me da primeira noite na clínica quando circulava pelos corredores do segundo andar para conhecer o local, e passando pelo gabinete de Frontin, notei que havia a fraca iluminação da lanterna que ficava em sua mesa, observando pelo vão da porta, que não estava totalmente fechada, percebi que uma enfermeira, Greta, estava lá, totalmente despida, dançava rodando por toda sala com uma taça de vinho nas mãos, enquanto o velho médico admirava a cena recostado em um divã.
Naquele momento tentei imaginar quem naquela sala seria mais insano?
Percebo agora que alguns favores tinham seu preço até mesmo no mundo irracional dos loucos.
Mas as saídas noturnas de Charlott e Edgar, e o cemitério nos fundos da clínica, eram situações inquietantes para mim, mas deveria ter cuidado, pois não poderia de maneira alguma me indispor com Frontin, afinal ele estava me dando toda oportunidade de estudar e observar o trabalho realizado por ele.
Ao completar a primeira semana no sanatório, achei-me com coragem para investigar, então aproveitei uma noite chuvosa e fria e avancei furtivamente pelo corredor até a cozinha, onde pela porta lateral tive acesso à ribanceira do campo santo, onde as inúmeras ossadas por mim descobertas em meio a lama que escorria com a forte chuva, eram uma imagem aterradora, mas meu objetivo era outro, queria saber onde se dirigia todas as noites a jovem paciente e o cocheiro.
Logo que a carruagem da clínica deixava os portões, Edgar fazia uma parada para Charlott descer, e em seguida seguia seu curso, ao mesmo tempo em que ela se embrenhava no nevoeiro, atravessando o pegajoso lamaçal.
Tentei por várias noites seguir a paciente bailarina do doutrinador de mentes, mas foram noites infrutíferas. O seu desregrado trajeto repetia-se a cada noite, sempre em frente a tavernas, e nas áreas mais movimentadas da cidade, até que entre os casebres e populaças, e encoberta pela odiosa névoa, eu a perdia noite após noite. Só a reencontrando na manhã seguinte na clínica.
Em umas das manhãs, após o café com o médico, em seu gabinete, ele solicitou-me que fosse até seus aposentos e apanhasse sua valise de instrumentos cirúrgicos, pois gostaria que o acompanhasse em um procedimento, que seria realizado na enfermaria da clínica.
Entrei nos aposentos de Frontin para buscar a valise de instrumentos solicitada pelo médico, e surpreendeu-me com comodidade encontrada ali, algo bem diferente do restante da clínica. Papel de parede em florais na cor verde claro embelezavam todo o ambiente, belíssimos mobiliário de madeira torneada, e no canto, um cama coberta de fino véu, certamente para evitar que insetos atrapalhassem o seu descanso, e sobre a cama, coberta por alvo lençol, estava Greta, a enfermeira. Uma jovem de cabelo loiros e compridos, olhos claros, e um belo sorriso.
---Em que posso ajudá-lo, sr. Lawford, ou será que se enganou de aposento? Disse ela, cobrindo-se ainda mais com o lençol, mas sem nenhuma vergonha com relação a minha entrada inesperada.
---Vejo que auxilia o doutor em todas as suas necessidades. Mas entrei para buscar a valise com seus instrumentos. Respondi
---Espero que ao me encontrar na cama de Frontin, não tire conclusões precipitadas. Disse a jovem sorrindo.
---Eu não insultaria um jovem tão bela, com pensamentos tão banais, prefiro pensar que tudo tem um propósito.
A jovem sentou-se na cama, ainda cobrindo o corpo com o lençol.
---Agradeço sua cortesia, vejo que o senhor é um homem culto. Mas por favor pegue a valise que está sobre a Eu poderia saber que é o seu cômoda e saia, preciso me vestir.
---Não quero impedi-la. Retornei.
---Como o senhor mesmo disse, tudo tem um propósito, e não posso esquecer-me do meu.
---Eu poderia perguntar que seria os seu propósito aqui na clínica? Indaguei
Ela sorriu novamente, enquanto levantou-se de leito, envolta no lençol.
---O senhor é impertinente, ou apenas muito curioso? Disse ela, enquanto caminhava até um biombo de bambu, no canto da sala.
---Sou apenas direto, minha jovem. Respondi.
---Parece-me que o senhor é um homem muito seguro.
---Pode um homem inseguro viajar tão longe, para conhecer a mente humana? Respondi.
 
--Creio que não, sr. Lawford.
Enquanto falava, a jovem recolheu suas vestes brancas de enfermeira, que havia deixado sobre o biombo, e colocou-as, saindo de trás painel já devidamente uniformizada.
---Seja qual for o seu propósito Greta, lembre-se que quem implora nada ganha, e quem paga, acaba pagando muito, por muito pouco.
Falei a jovem, enquanto pegava a valise sobre a cômoda e saia do quarto.
 
Quinto capítulo
A descoberta
 
Não sei dizer porque mas, aquilo se tornou, para mim, uma obsessão, era imperativo descobrir qual o motivo daquelas saídas noturnas, e porque ela voltava todas as noites, pois poderia fugir. Os dias foram se passando até que em uma sombria noite após seguir a jovem por logo tempo e novamente perdê-la de vista resolvi tomar outro percurso de retorno fazendo um trajeto em meio aos charcos. Certamente mais uma noite desperdiçada, naquele local o nevoeiro era ainda mais intenso, mas para minha profunda surpresa eu estava no caminho certo. Escutei ruídos vindos dos charcos e vultos a movimentar-se na escuridão, primeiramente senti um medo petrificante, depois me agachei e fui silenciosamente até onde os ruídos me levassem e encontrei Charlott em meio aos charcos e a neblina, uma cena digna da mais implausível lenda animalesca, vi a jovem ajoelhada ao lado do corpo de um corpo, entre um som que mais parecia um grunhir de um animal a vagante bailarina estrangulava ferozmente apertando o pescoço do homem, que certamente estaria embriagado. Após a vítima estar desfalecida, surgiu Edgar, que vasculhou os bolsos e retirou o relógio de bolso do agonizante cavalheiro. Tudo agora ficava um popuco mais claro para mim, os dois saiam a noite para praticarem furtos, porém suas vítimas, al´me de seus pertences, perdiam suas vidas. Eu estava vivenciando naquele mórbido e terrífico momento algo que jamais esqueceria. Tão demonicamente era a ação da dupla, que minha presença por detrás das árvores, e encoberta pela nefasta neblina que cobria aquele lugar infernal, não foi por eles notada. Depois de alguns segundos fugi apavorado e enquanto tentava correr desesperadamente por entre os pegadiços charcos não saia de minha mente a imagem da face de Charlott com suas mãos e sua veste cobertos de lama, asfixiando mortalmente sua presa.
Retornei aos meus aposentos com as roupas enlameadas e tremendo quase descontroladamente, não tanto pelo frio que era intenso naque noite, mas principalmente pelo pavor que tomava conta de mim. Não sabia ao certo o que fazer, se falasse o que presenciei ao dr. Frontin poderia na noite seguinte juntar-me aos inúmeros corpos jogados na ribanceira. Se aquela monstruosidade em forma de mulher desconfiar que sei seu segredo eu poderia ser sua próxima vítima. Eu não tinha dúvidas que a situação em que me encontrava naquele momento era deveras preocupante.
Após livrar-me das roupas enlameadas e tomar um banho tentei descansar em minha cama, mas isto não foi possível porque dormir naquele momento era algo improvável. Até que ao amanhecer alguém bateu a minha porta. Era Greta.
---Sr. Lawford, o dr. esta chamando para um café em seu escritório.
Normalmente o café era no refeitório juntamente com os seus colaboradores e com as freiras. Mas naquela manhã eu teria uma interpretação dos fatos pela ótica de Frontin.
Logo ao entrar em seu escritório fui recebido por Frontin, que com seu jaleco branco e sua camisa xadrez e a usual gravata borboleta na cor preta.
– Sente-se Lawford, você já esta há alguns dias conosco e ainda não tive o tempo necessário para expor por completo meus métodos e objetivos na clínica. Farei isto enquanto tomamos nosso desjejum mais reservadamente.
Sentei-me a frente de sua mesa, onde uma bandeja com biscoitos e um bule de café estava a nossa disposição.
---Como você sabe Lawford, os métodos convencionais nunca poderão entender o que se passa na mente de uma pessoa desajustadas, isto porque o seu objetivo e conter a crise e não identificar a causa. Aqui, como já pode observar trabalhamos do modo inverso, incentivamos o desequilíbrio para estudar sua origem.
---Mas isto não seria um ato desumano, levar ao sofrimento para estudar sua causa? Perguntei.
Frontin apenas sorriu enquanto tomava seu café.
– Veja bem Lawford, não identificar as causas e deixar que futuramente outras pessoas tenham os mesmos distúrbios sem uma possibilidade de cura apenas porque meu senso ético não permitiu que prosseguisse, isto sim seria uma desumanidade e uma covardia.
– Vendo desta maneira me parece que o sr. tem razão, mas existe algum limite para estas análises, creio eu.
O médico levantou-se calmamente o foi até o armário que estava em um canto da sala, retirando uma chave do bolso do jaleco, abriu a porta e retirou uma pasta de papel facha-o novamente depois. Retornou a sua mesa e colocou a pasta a minha frente.
– Com todo respeito amigo Lawford, eu tenho observado que tem um interesse especial por este caso, inclusive levando-o a se arriscar pela noite para investigar.
A pasta que o médico me passou as mãos era de Charlott Dolms. Ela já tinha conhecimento do que eu havia feito a noite passada, e em outras noites também.
 
Capítulo seis
A policia nos portões
 
Eu havia subestimado Frontin, ele tem olhos em toda parte.
---Sei que está surpreso com muita coisa que está vendo aqui, mas tudo tem seu propósito. Disse o médico.
--- esta jovem mulher sofre de um transtorno clínico chamado ´´ Síndrome da Cleptomania``, que os leigos chamam vulgarmente de larápio, mas é muito mais do que um simples nome, é um instinto, e devemos libertá-lo e estudá-lo.
– Peço que me desculpe se tomei alguma atitude que não lhe agradou doutor, mas minha ignorância quanto a estes detalhes me fizeram tomar atitudes precipitadas.
Frontin apenas sorriu levemente com meu pedido de desculpas, e fechou a pasta que estava sobre a mesa.
---Não se preocupe Lawford, em seu lugar eu também agiria da mesma forma. Mas agora que já esta a par de tudo , ou quase tudo, eu o convido para me ajudar nas pesquisas e quem sabe dar a ciência uma boa contribuição. E acrescentou.
---O que chamamos de sombra do inconsciente, consiste no lado obscuro da Psique, onde estão contidos nossos instintos primitivos. É a origem de tudo aquilo que há de melhor ou pior na raça humana. Para que o sujeito seja inserido na comunidade, é necessário que ele passe pelo processo de domesticação com relação aos ímpetos contidos na sua sombra interior. E pode ser doutrinado tanto para o bem, quanto para o mal.
– Certamente que entendo sua posição doutor, estou a sua disposição. Respondi.
Neste momento um enfermeiro entra na sala de Frontin.
---Desculpe interromper doutor, mas um coche da polícia está no portão.
---Então abra o portão, não vamos deixar a polícia esperando.
Respondeu o médico erguendo-se de sua poltrona, e enquanto caminhava até a saída da sala, completou sua observação.
--- Todos nós temos em nosso inconsciente uma sombra, algo que esta escondido de todos, até mesmo de nós mesmos. Nosso trabalho aqui é encontrar a sombra de cada um de nossos pacientes, liberá-la, e assim poder estudá-la. Mesmo que para isto, seja necessário alguns sacrifícios.
Não havia ficado muito claro o que Frontin queria dizer, quando se referiu a alguns sacrifícios. Mas certamente eu podia imaginar, tendo em vista o que já tinha presenciado na clínica.
Descemos de imediato até a porta de entrada da clínica, onde o coche da polícia de York já estava parado.
---Bom dia senhores. Disse um dos policias, enquanto o outro ficou no coche.
---Em que podemos ajudar oficial?
Perguntou Frontin, enquanto estendia a mão para cumprimentá-lo.
---Sou o tenente Wisbech, e ontem houve uma morte próximo a clínica, um homem foi morto por pilhantes. Disse o homem.
---É lamentável, mas não notamos nada de anormal fora de nossos portões. Retornou Frontin de imediato.
---Peço que desculpem o incomodo, apenas estamos preocupados com a segurança de seus pacientes. Retornou o policial enquanto subia novamente no coche.
---O senhor já sabe quem é o pobre homem que foi morto?Perguntei
---Peter White, farmacêutico da cidade, os ladrões deixaram os documentos da vítima.
Respondeu Wisbech, enquanto fechava a porta de seu transporte, encaminhando-se para o portão de saída.
---Venha Lawford, vamos visitar os pacientes.
Disse Frontin sorrindo, no mesmo momento em que retornava ao interior da clínica.
Eu preferia pensar que o médico não estava a par das atrocidades que Edgar e Charlott cometiam, em suas saídas noturnas.
Mas por outro lado, como poderia um médico com seu vasto conhecimento, não prever tal consequência?
 
 
Capítulo sete
O Penhasco
 
Após aquela conversa, fui vivenciando a cada dia uma realidade devastadora e de uma crueldade sem precedentes. Os métodos de Frontin não eram tão libertadores como ele afirmava, bem ao contrário, serviam apenas para seus experimentos bárbaros com a mente humana.
Em pouco tempo se desvirtuaram valores éticos e humanos, tornado-o mais um dos tiranos pesquisadores da alienação. Permitiu libertar-se a sua própria sombra maléfica aprisionada em seu subconsciente, tornando-se assim, o senhor das sombras. Manipulando seus internos como meros fantoches.
Dois dias se passaram da visita do tenente Wisbech, e as saídas noturnas haviam cessado.
Então ao final de tarde do segundo dia, Frontin convidou-me para sair em sua carruagem particular. Um coche em madeira escura e forrado com veludo marrom em seu interior.
--Vamos Lawford, creio que já está pronto para uma demonstração do que podemos fazer com a mente destas pobres criaturas. Disse ele ao fazer o convite.
Ao abrir a porta para eu entrasse, pude ver Charlott Dolms sentada em um dos assentos.
--Entre Lawford, não temos muito tempo, já esta anoitecendo.
Disse ele ao entrar e sentar ao lado de sua paciente, enquanto eu me coloquei no assento a frente dos dois.
--Vamos Edgar. Esta foi a ordem de Frontin ao cocheiro para partirmos, e por aproximadamente trinta minutos, adentrássemos ao vale de York até um penhasco, onde o vento era forte e o final de tarde já trazia a névoa, e um ar gelado. Após pararmos o coche a alguns metros de um gigantesco penhasco, o médico colocou as mãos sobre os ombros de Charlott e sussurrou algo pausadamente em seus ouvidos, depois mandou-a descer.
---Venha Edgar, preciso de sua ajuda. Disse ele ao cocheiro.
---O que quer que eu faça doutor? Perguntou Edgar.
---Apenas leve esta paciente até a borda do penhasco, e aguarde.
Eu e o médico permanecemos dentro do coche, enquanto o cocheiro e a jovem caminharam até a borda do imenso precipício.
---Observe Lawford, como a mente humana pode ser manipulada, basta saber como. Disse Frontin, apontando para os dois que se afastavam.
Por alguns segundos Edgar e Charlott permaneceram parados a borda do precipício, então, inesperadamente a jovem deu alguns passos para trás, indo de encontro a Edgar com seus pequenos braços estendidos, empurrou o cocheiro penhasco a baixo.
---Mas o que elas fez? Falei, já erguendo-me para descer.
---Sente-se Lawford, ainda não terminou. Disse o médico segurando-me pelo braço. E ele estava certo em sua afirmação.
Após empurrar Edgar a morte, Charlott virou-se para onde estava o coche, soltou um grito, como um animal ferido, e jogou-se ao mesmo destino do cocheiro, ao fundo do precipício.
Por alguns instantes eu permaneci sem saber o que fazer, ou o que dizer, pois a cena por mim presenciada deixou-me novamente vacilante quanto a aceitar os métodos usados por Frantin, que aproveitou minha tão grande estagnação, e assumiu as rédeas do coche iniciando o retorno a clínica.
Durante o retorno a clínica, pensamentos desconexos inundavam meu cérebro. Eu precisava tomar uma atitude, somente não sabia qual, e faltava-me coragem para isto.
Ao descermos do coche, já de retorno ao hospital psiquiátrico, Frontin levou-me até sua sala.
---Vamos beber um pouco, creio que deve estar ainda um pouco confuso com o que presenciou. Disse o médico, retirando uma garrafa de dentro de sua escrivaninha, e servido-me uma taça de vinho.
---Realmente, eu ainda estou perplexo. Respondi
Ele apenas sorriu brevemente.
---O homem em si, compreende dois seres, um que chama de homem como poderia ser, e em sua perfeição, este ser, no seu íntimo está além do bem e do mal. Mas limitado pela convenções sociais. Seu verdadeiro instinto esta aprisionado.
---E o outro homem? Perguntei
---Também está além do bem e do mal, mas livre de todas as restrições impostas pela sociedade, sujeito somente a sua própria vontade, sem escrúpulos e sem falsa moralidade. Livre para fazer o que deseja. Respondeu, e continuou.
---Sou um médico da mente, cabe a mim revelar, entender e controlar toda força que vem da natureza.
---O homem liberto e livre do bem e do mal, de que fala, certamente é o elemento mais fraco entre nós. Nossa luxúria e nossa violência alimenta o homem mais frágil. Comentei.
---Mas por eles que faço minha experiências, caro . Lawford. Respondeu Frontin
---Poderíamos extirpar o mal do íntimo de um ser humano usando apenas um bisturi? Retornei de imediato.
---Meu caro Lawford, você recai no modo convencional, do pensamento nobre e incorruptível. Mas não é a realidade que encontramos nas vielas de Londres, nos cortiços impregnados de miséria.
---Como assim doutor? Indaguei
---Eu não me preocupo com uma avaliação moral, mas com o controle de todos os recursos da personalidade humana. Isto é ciência meu amigo. Disse ele.
---Mas não só de insensíveis e perversos é formada a sociedade. Retornei.
---Quanto mais justo e ingênuo for um indivíduo, mais sua alma viverá atormentada por conceitos sociais e desejos reprimidos. Diz Frontin
 
Capítulo oito
O propósito
Alguns dias após o terrível episódio por mim presenciado, encontrei Greta sozinha na sala de cirurgia, enquanto ela preparava um paciente para mais uma experiência de Frontin. Incisões no lóbulo frontal, que segundo o médico, este procedimento, mesmo sendo de uma crueldade sem precedentes, poderia fazer uma mudança considerável na personalidade do paciente. Segundo Frontin, desde o século XVI, criminosos confessos passam por este processo, e tem suas personalidades totalmente modificadas.
---Parece que a crueldade não tem limites, não é mesmo? Comentei enquanto auxiliava a enfermeira a colocar o paciente em uma pequena mesa de metal.
---Espero não ter causado uma má impressão em nosso primeiro contato? Disse ela.
---Não diga isto Greta, deve ser bem difícil servir aos caprichos de um médico, principalmente se ele vive recluso em uma casa de loucos. Argumentei.
---O senhor estava certo quando disse que tudo tem um propósito, é por isto que estou aqui. Afirmou, ao mesmo tempo em que amarrava o homem a mesa, usando grossas tiras de couro.
---E eu poderia saber qual seria este propósito? Interpelei.
Mas antes que houvesse tempo para a resposta da jovem, Frontin adentrou na sala com Edgar, que além de cocheiro, auxiliava nas interações com pacientes, e sabe-se lá o que mais.
---Espero que esteja tudo pronto. Vamos começar o procedimento. Disse o médico.
Eu certamente participei de tudo que se passou naquela sala, e entendi porque os membros do comitê de psiquiatria de Londres reprovavam os métodos usados na clínica. Frontin não buscava a aprovação de ninguém para seus experimentos, e quem pensa desta forma não esta preocupado com o que é certo ou errado. O importante para ele era alcançar seus objetivos, mesmo que para isto, muitas vidas seriam sacrificadas em nome da ciência. No dia seguinte ao procedimento, o paciente não apresentava qualquer sinal de consciência. Foi diagnostica como inconsciência involuntária, e jogado em uma jaula imunda, para morrer de inanição.
Eu estava em mais uma das noites em que não conseguia dormir, talvez por me sentir também culpado pelas atrocidades que ali aconteciam, ou por ouvir os gritos de desespero daqueles que ainda sobreviviam, mesmo que encarcerados como feras. Até que uma leve batida a porta me fez levantar. Ao abrir, alguém empurrou a porta e entrou rapidamente. Era Greta.
---Preciso falar-lhe. Disse ela.
--Mas é claro, sente-se a diga o que te faz vir a meu quarto no meio da noite. Falei de imediato.
Ela passou-me as mãos uma pasta de paciente, que trazia escondida sobre o avental do uniforme.
---O médico sabia de tudo, ele tinha conhecimento de quem eram eles.
A pasta continha as fichas de pacientes de Edgar e Charlott, eles eram irmãos, e estavam na clínica com pacientes alienados. Segundo os registros, os dois irmãos haviam assassinado a proprietária de uma hospedaria em Noting Hill.
---Só agora me mostra isto, eles já estão mortos!
Exclamei, meio confuso.
---O senhor disse que eu deveria ter um propósito para estar aqui. É sobre isto que quero falar-lhe.
A luz fraca da lua, encoberta pela forte neblina, deixava o quarto quase as escuras, por isto ascendi o lampião que havia sobre a comoda, e pedi a Greta que continuasse.
---Meu nome é Greta Moureau, sou filha de Michel Moureau. Meu pai era empresário naval, e foi morto por assaltantes dentro de um armazém no cais de Londres, ele foi estrangula e seus pertences roubados.
---E os assassinos?
---Nunca foram localizados. Respondeu ela.
---E se você trouxe esta pasta para mim, pensa ser eles os assassinos de seu pai. Conclui.
---É bem mais do que isto senhor Lawford. Disse ela, e continuou sua narrativa.
---Eu era enfermeira do Hospital Geral de York, na Wiginton Road, e durante meu turno, em uma noite, Edgar e Frontin levaram ao hospital uma freira que havia sofrido uma queda e fraturado algumas costelas. Foi quando percebi no pulso de Frontin, o relógio que havia sido roubado de meu pai.
---Você tem absoluta certeza disto? Perguntei.
---Sim. Na época eu procurei o tenente Wisbeck, e contei a ele.
---E como veio parar aqui? Inquiri.
---Quando soube que precisavam de enfermeiras, fui voluntária.
---E o que pretende fazer? Indaguei
---Pretendo fazer com que Frontin pague pelos crimes que estas pessoas cometeram, manipulados pelo seu controle mental.
---Mas nenhum tribunal vai acatar este argumento como prova, ele vai sair ileso disto tudo. Retruquei.
Ela sorriu brevemente enquanto levantava para sair.
---O tribunal que irá condená-lo está dentro desta casa de loucos. Disse ela, e saiu rapidamente.
 
Capítulo nove
Enlouquecendo
Cada vez mais, eu tinha e certeza que tudo que se passava naquele local, era hediondo. Mas precisava manter minha mente lúcida, e isto era quase impossível. A insanidade, o desespero, a fúria incontrolável, a loucura violenta que deteriora a mente, a deformação do ser humano. O fogo que lacera a carne, a lama que congela os pés, a fuga de uma lucidez sem rumo.
O abandono absoluto da realidade, os trapos encardidos que cobrem as minúsculas janelas, a angustia e a agonia incontida da alma. A luz precária, a chama trêmula, o ruído amedrontador das correntes, o odor ferruginoso das grades. Deus chora por todos, pelos desequilibrados, pelos alienistas, por onde o cavaleiro das sombras cavalga, onde a espada do inferno nos ataca barbaramente. O maligno infiltrando-se em nossa alma, e a constante inconsciência que nos atormenta. Transborda o cálice do malévolo escorrendo seu néctar de terror pelas fétidas paredes de pedras.
O caos extremo do espírito, a degradação humana, a razão refém da bestialidade, a alienação devastadora da alma.
A revelar-se o animal adormecido dentro de cada ser humano, delirante, enfurecido, bizarro. A cruz que não alimenta a fé, a luz que não dissipa as trevas, a crença que desmorona como as pilastras de um templo em ruínas.
E o mal se propaga promiscuo e voraz a dominar as criaturas que a debilidade recrutou.
Convulsões, histeria, gritos, tudo para ser estudado em uma ciência animalesca, experimentos vão ao limiar da inconsciência.
Na sombra tirânica da cruz a violência está a brotar pelos escuros e sujos corredores, pelas celas úmidas, nos colchões esfarrapados onde ficam aqueles que a irmandade chama de escória. O cheiro de éter se espalha pelo mórbido ambiente. A cabeça a bater na parede, mostrando a violência do instinto incontrolável, é mais um delirante a escorrer seu sangue pela parede pútrida da cela.
O lunático com o olhar estático como se pudesse atravessar paredes, ver o infinito, as mãos trêmulas, os pulsos esqueléticos, as cicatrizes na alma, uma fuga da vida, em vão, sem propósito. Do outro lado das grades estão as freiras, o hábito, o rosário, mas também o chicote, o ferro em brasa a transpor a carne, o castigo divino em forma de fogo.
O tilintar dos cascos dos cavalos, é o carroção fechado, o cadeado a bater na grossa porta de ferro, alguém a espreitar pela ventana, é mais uma remessa de miseráveis indesejados pela confraria mesquinha.
Somente Deus pode lançar uma praga como punição por nossos possíveis pecados, mas nem toda praga é obra de Deus, existem homens que acreditam terem o imenso poder de Deus.
Já é noite, pelos sujos e pequenos vidros da minha janela a luz da lua invade o acanhado cômodo realçando a precariedade do mobiliário, ouço gritos de desespero e gemidos vindos das imensas alas do manicômio.
Tento não sucumbir naquele mar de insanidade e tortura, meus princípios de decência e moralidade eram postos a prova todos os dias.
Mas eu não sabia que em breve tudo tomaria um rumo imprevisível e trágico.
 
 
Capítulo dez
A noite do Terror
Já passava das 23 horas, quando Frontin me convidou para descer aos porões da clínica, chegando lá, encontramos, já amarrado em um dos leitos da enfermaria, que mais se aproxima de uma masmorra, um de seus condenados pacientes, ou devemos chamá-lo de cobaia. O médico pega uma seringa já prepara com um líquido de cor esverdeada, e colocada dentro de uma bandeja de metal, e aproxima-se da cama do enfermo. Greta, que estava ao lado do leito, apenas observava, e nem ao menos me direcionou um olhar. A náusea causada pelo fétido local, fez-me cobrir a boca e o nariz com uma das mãos.
---Observe. Diz o médico.
Segurando o braço quase esquelético do paciente, Frontin introduz o líquido esverdeado diretamente na veia.
---Para que este medicamento doutor? Perguntei , mas não foi necessário uma resposta, pois em segundos o cadavérico paciente começou a contorcer-se, suas amarras quase não o seguravam mais, e seus gritos, como uma fera enjaulada, ecoavam por todo o corredor. Provocando uma gritaria quase insuportável vinda das celas. Eram os outros internos, compartilhando sua alienação.
---Desde os mais primitivos ancestrais do homem, existe uma energia descontrolada em seu inconsciente, basta apenas libertá-la. Disse Frontin.
---Ele parece uma fera. Comentei
---Este é o verdadeiro homem, que está preso dentro desta moribunda criatura. Uma força que até ele mesmo desconhece. Completou ele.
Após assistir mais uma desumana e condenável demonstração de Frontin, recolhi-me aos meus aposentos. Creio que horas se passaram, sem que eu conseguisse a tranquilidade interior, para assim poder descansar. Até uma batida forte na porta me fez saltar da cama, assustado. E em seguida alguém gritou.
---Senhor Lawford, acorde.
Levantei-me rapidamente, e ao abrir a porta passaram correndo por mim algumas religiosas, que tinham seus quartos próximos ao meu.
---O que houve? Indaguei assustado.
---Um incêndio no piso de baixo, não conseguimos controlar. Respondeu uma freira que passava também a correr.
Não exitei nem por um momento e corri até as escadas, e pude observar a correria, o desespero de enfermeiros na tentativa de salvar os pacientes, desci as escadas e as chamas estavam por toda parte, auxiliei na soltura dos pacientes que estavam amarrados aos leitos e também sai daquele inferno de fogo e fumaça. Na parte externa do prédio, alguns pacientes estavam todos agrupados, outros já tentavam sair pelo portão, que já estava aberto. A visão da Clínica San Antonio sendo consumida pelo fogo, era assustador. Caminhei por entre pacientes e enfermeiros, a procura de Greta, até encontrá-la ajoelhada ao solo, tentando amenizar o nervosismo de um dos pacientes.
---O que aconteceu, de onde veio todo este fogo? Perguntei, ainda atônito.
---Todos os pacientes foram retirados, isto é o que importa. Respondeu ela.
---Não podemos ficar aqui, temos que buscar ajuda. Falei.
---Vamos pela estrada, talvez possamos encontrar alguém. Disse ela erguendo-se e saindo em direção ao portão.
---Vamos buscar ajuda. Gritei aos enfermeiros, e saí acompanhado de Greta pela estrada.
---Eu não encontrei Frontin, você o viu?Perguntei enquanto caminhávamos.
---Creio que ele não conseguiu sair a tempo. Respondeu ela.
---Como assim, não conseguiu sair? Indaguei novamente.
Mas antes que ela pudesse responder, a luz da lanterna de um coche foi avistado, a aos poucos se aproximou. Era o coche da polícia de York, e o tenente Wisbech.
---Entrem, vamos retornar a cidade, vou providenciar para que todos sejam recolhidos. Disse ele abrindo a porta do coche para que pudéssemos subir.
Já no distrito policial, eu e Greta aguardávamos em uma sala, enquanto os carroções da polícia de York transportava os pacientes, enfermeiros e freiras até o Hospital Geral.
Wisbech adentrou a sala com duas canecas com café.
---Tomem um café, creio que estão precisando.
---Foi muita sorte nossa ter encontrado seu coche justamente quando estávamos buscando ajuda. Comentei.
---Na verdade não foi sorte, eu havia investigado as denúncias de Greta, a respeito de Frontin, e estava me dirigindo para falar com ele. O médico pode ter participação indireta em vários roubos seguidos de morte, que aconteceram no vale.
---E vocês o encontraram. Perguntei.
O tenente ficou pensativo por alguns instantes, para depois dar a resposta.
---Sim, nós o encontramos. Estava amarrado com correntes em sua própria cama. Morreu queimado em seu quarto.
---Amarrado? Como alguém faria isto? Interpelei ainda surpreso com o que ouvira.
---Talvez alguém o tenho dopado, colocado alguma droga em sua bebida. Mas agora nunca saberemos, seu corpo foi carbonizado. Respondeu Wisbech.
Ainda permaneci dois dias em York, e depois regressei a Londres. Greta retornou ao seu antigo trabalho, como enfermeira do Hospital Geral. E a vida no vale de York seguiu seu curso, e em breve ninguém mais lembraria do trágico incêndio que destruiu o Sanatório San Antonio.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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Atualizado em: Ter 10 Out 2023

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