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Catalisador

Os pormenores cinzentos e esbranquiçados das construções de metal praticamente vazias pareciam transpor o campo físico e gravitarem pelo metafísico impregnando toda a visão do Distrito do Trabalho da Citadela de Valhalla bem como as pequenas e taciturnas figuras que perambulavam pela rua mirando o chão igualmente inanimado e soturno como seus transeuntes transformando o conjunto inteiro em uma única massa amorfa, cinzenta e estática irradiada por delicadas ondas tétricas e emanando fartas oscilações lúgubres e taciturnas formando uma atmosfera sepulcral que englobava a SuperCidade. Não somente ali mas por todo lado tudo parecia tristonho e cadavérico, sentia-se como observando um imenso corpo metálico morinbundo se decompor aos poucos à sua vista enquanto inerte em um deserto gélido e silencioso sem ninguém à contemplá-lo ou sequer sentir sua falta a não ser por ele que não poderia definir seu sentimento pessoal exatamente como falta e sim uma leveza, uma agradável e esperada finalidade para algo que arrastava havia tempo demais. Mas isso já era de um costume no qual ele nunca realmente pegara o gosto, tudo que já observara em seu tempo ali seguia a uniformidade cadavérica e obscura do mais completo processo de desgaste e todos se arrastavam há tempo demais. Imaginava o dia que observaria algo vivo. 
- O que está observando? - Ela perguntou, seu rosto era límpido e os olhos, pequenos e obscuros, concediam a ela uma faceta curiosa de se observar.
- Algo triste.- Ele respondeu em seu tom usualmente cabisbaixo.
- Se é triste, por quê o olha? - A voz dela era calma e leve, até mesmo prazerosa de se ouvir.
- Esse é meu propósito...  - ele começou - nasci e morrerei como um Observador, ao meu povo foi concedida a tarefa de documentar e registrar a história da SuperCidade pelos Homens Originais em seus detalhes. - Finalizou ao passo que pôs de lado o visor de seu imenso Telescópio de Varredura, uma monstruosa máquina com 3.76 metro de altura e 2.45 metro de largura remendada por diversas placas de metal e fios desencapados que se emaranhavam caoticamente ao seu redor.
O Observador sentou-se em um longo e largo banco metálico que também servia de cama para ele e mirou o chão cinzento da Placa de Azetor, um disco metálico com 69.911 quilômetro de diâmetro e servia como transição entre o Nível 7515 e 6999 da SuperCidade e sua infinidade de cidades, citadelas, tribos itinerantes, cavernas e outras coisas tão soturnas, escuras e sem vida quanto uma porção infinitesimal do chão daquele disco.
- Você parece triste com isso. - Ela disse.
- Não sei o que quer dizer. - Ele retrucou.
Ela se moveu para próximo do pé do Observador, que mesmo mais perto da figura e sentado, ainda era um titã se comparado ao tamanho diminuto de sua companheira momentânea, ela possuía apenas 1,21 metro de altura a medida que ele media exatamente 4,55 metro de altura. Muito da altura dela desaparecera há décadas atrás quando, segundo a mesma, seus braços e pernas foram esmagados por um Titã de Manutenção, agora existiam somente ataduras onde um dia houveram membros.
- Sabe...desde que eu e Dresden começamos nossa viagem do nosso Nível até o Curandeiro conhecemos muita coisa como você. - Ela começou enquanto ele limitou-se a encará-la sem impedir sua fala. - Muitos apenas olhando em volta, tristes com o que viam mas todos eles possuíam uma coisa que os mantinha sorridentes e vagando por aí...de repente você apenas precisa encontrar isso também.
- Se refere a um motivo?
Ela não respondeu e não conseguiu esconder estar confusa pela palavra, haviam mais ou menos nove dias desde que Era e Dresden, seu marido, haviam chegado ao Posto de Observação onde ele estava alocado há 156 anos com a tarefa de observar, registrar e documentar dados sobre a Placa de Azetor e seus transeuntes bem como as cidades que existissem, e morressem, em seu entorno pelo período de 587 anos, 81 ciclos e 345 horas-dia. 
- Motivos são razões e podem ser variados, já ouvi dizer que podem significar até mesmo toda a existência de um ser. - Ele explicou, não era difícil de assumir que Era e Dresden eram intelectualmente inferiores a ele, como a esmagadora maioria das formas de vida que existiam por aqueles lados.
- Ah! - exclamou depois de instantes - entendo...então é isso, você precisa de motivo, motivo é o que eles tinham e é o que eu e Dres temos.
- Me diga...por que deseja encontrar esse Curandeiro?
- Eu e Dres morávamos em um vilarejo no nosso Nível, um dia um Titã de Manutenção removeu o nosso chão e fez com que nossa casa desaparecesse junto com a maioria do pessoal que morava conosco e causou um enorme desabamento que levou meus braços e pernas… - ela parou um momento, sua voz mantivera um tom calmo, quase carismático até decair em um vórtex de melancolia que absorveu todo o seu empenho em uma tentativa fracassada de se manter otimista. Os olhos dela saíram do Observador e miraram os raios de luz que penetravam a lona esverdeada esburacada que cobria a morada do Posto de Observação e, de repente, eles ganharam um contorno incrível de se observar, havia escapado de um abismo triste e do negrume do desespero para mirarem algo distante mas palpável, impossível de se alcançar mas ainda assim plausível de se conquistar. - Meus braços e minhas pernas foram esmagadas no desabamento que o Titã causou, nossa casa e boa parte do nosso povo desapareceu completamente restando só nós dois e mais um que há muito tempo se separou de nós...mas então encontramos com ela...seu nome era Qora, ela liderava um destacamento do Exército Sintético e ela nos contou do Curandeiro e da Citadela de Valhalla. - Os olhos passaram dos raios pálidos de luz para o chão. - Desde então estamos viajando...encontramos muita gente e passamos muita coisa juntos, mas agora estamos perto, logo encontraremos com ele...logo…
O Observador se ergueu abruptamente, sua cabeça quase batia no teto do Posto de Observação e, sem explicar, saiu. A parte de fora da tenda revelava a inconfortável visão da Placa, uniformemente desértica por quase todo o lado a não ser no horizonte distante onde se erguiam algumas construções de cidades tão inalcançáveis que pareciam apenas miragens causadas pela solidão vinda dos anos que estava por ali. Próxima a entrada da tenda, haviam umas poucas caixas que há anos atrás conheceram algum conteúdo de relevância mas agora ostentavam apenas uma coisa. Ao lado delas, existia outra tenda de menor tamanho e complexidade que abrigava Dresden, dormindo. O Observador pegou algo de dentro da caixa, voltou para o Posto e mostrou para Era.
- O que é isso? - Ela perguntou, parecendo ter tornado ao seu estado naturalmente otimista apesar de reservado.
- Dizem que se chamava Terra...era a morada dos Homens Originais. De onde veio o propósito do meu povo…
- Propósito do seu povo?
- Os nossos Anciões dizem que foram os Homens Originais que incumbiram os Observadores de documentar tudo o que ocorre na SuperCidade. Foram eles que criaram a SuperCidade e todos nós.
‘ Ele removeu a imagem de perto de Era e mirou na palma da mão um pequeno panfleto digital com a imagem do planeta azulado com algumas nuvens na atmosfera e uma descrição brevíssima no rodapé.
“A Terra é um planeta azul majoritariamente composto por água localizado no Sistema Solar, que conta com uma abundante fauna e flora naturais do planeta riquíssimas em espécimes distintas e é considerada o berço da humanidade.”
- Será que isso poderia ser um motivo? - Perguntou o Observador.
-  Acho que sim...você deseja visitar esse lugar?
O Observador mirou o visor de seu telescópio, nada mais que um enorme espaço escuro onde ele colocava o rosto sob um painel de controle usado para mover a estrutura da forma como bem entendesse de onde emergiam vários fios e cabos grossos entrelaçados por detrás e sob os quatro monitores e do teclado velho que, estrategicamente posto em um canto do Posto de Observação, não transformava todo o ambiente pesaroso em algo caoticamente mal organizado ao passo que a estrutura remendada controlada remotamente conseguia mover-se em um círculo perfeito ao redor do Posto. No momento mirava o Leste, para a Citadela de Valhalla.     
- Gostaria de observar algo vivo.
- Como assim?
- Isso - O Observador abriu os braços chamando atenção para o ambiente em volta - não sei...não sei se realmente está vivo...é tudo cinza...cinza e escuro. Tudo que eu observei esse tempo todo - ele mirou as mãos igualmente cinzentas - era tudo morto...mas isso aqui, está vivo e é de lá que vem os Homens Originais...de lá que mandaram o propósito do porquê estou aqui, foi de lá que veio...que veio tudo que está morto hoje. - Encerrou sua fala evitando o olhar de Era e desanimado.
- No meu vilarejo existiam casas de cores que não existem por aqui...
O Observador fitou-a longamente confuso, e um tanto curioso, pela fala.
- Sabe...eu sei que você pensa ser muito mais esperto que eu, sei que pensa que eu Dres somos formas de vida inferiores...estamos viajando há muitos anos à fio e várias vezes estivemos no mesmo ponto em que você está agora...mesmo juntos estávamos sozinhos contra coisas invisíveis muito mais horrorosas do que o Titã, muito mais assustadoras que os Sintéticos ou a Guarda de Proteção...e ainda assim nós nos mantivemos firmes, sempre andando...bom, eu não. - ela abriu um sorriso amarelo ao erguer o que havia restado dos braços e pernas - sempre seguimos em frente...sempre atrás do Curandeiro.
- Fale-me mais do Curandeiro… - Ele disse depois de um breve momento em silêncio.
O rosto dela pareceu se abrir e brilhava como uma estrela.
- Qora nos contou que ele é responsável pela saúde do governador de Valhalla...acho que o nome dele é Sr. Superior... mas que o Curandeiro também trata de enfermos da cidade...eu não sei o que são enfermos mas ela disse que nós somos e que nós podemos nos curar com ele por alguma terapia gênica ou biogenética que ele faz. Ela não nos disse os detalhes exatos de como funciona, mas explicou que teríamos que ir até o Templo do Deus de Carne Vermelha e lá seríamos recebidos por ele.
- Você sabe alguma coisa palpável desse suposto Curandeiro?
- Sei que ele existe...sei disso, tenho a certeza absoluta disso porque senão… - a fala dela ganhou o poderoso e ainda sutil ornamento da dúvida que fez com que o brilho em seu rosto diminuísse, os olhos baixassem e a voz perdesse parcialmente a intensidade - senão tudo teria sido em vão.
- E quanto a Dresden? Ele sabe disso também?
- Tão intensamente quanto eu. Foi Dres que me manteve firme nessa jornada, sem ele não teria chegado tão longe. Sem ele não teria sobrevivido e sem o Curandeiro não poderia ser curada...
O Observador tornou a fitar o chão e em seguida se moveu a passos lentos sem uma direção exata apenas imerso em confusão.
- Não consigo compreender, não consigo...simplesmente...compreender.
- Quantas vezes você viajou? - Ela perguntou.
- Apenas uma, da Torre até aqui, vim escoltado em uma caravana de comerciantes que não conversavam conosco.
- Há quanto tempo?
- Cento e cinquenta e seis anos atrás.
- Sabe...uma vez antes de chegarmos a Placa encontramos com um Guarda de Proteção...acredito que se chamava Onum...naquele momento haviam mais ou menos dois anos que não conversávamos entre nós. Eu e Dres tínhamos certeza absoluta de que o que Qora havia nos dito eram só mentiras, simples maldade por maldade, mas ninguém mencionava isso, escolhemos simplesmente não falar nada...foi ele quem renovou nossas esperanças, eu lembro até hoje que ele disse “não é porque vemos apenas uma parte que o todo esteja condicionado” - ela abriu um sorriso singelo sem mostrar os dentes - seu povo pode ter bilhares de dados sobre a SuperCidade mas certamente não entende uma coisa.
O Observador lançou sobre ela um olhar indagador.
- Vocês não entendem a SuperCidade. Não sabem o que vivo ou morto sem ser pelas suas ideias, imaginam que apenas aquilo que olham condiz com tudo que existe. Eu venho de muito longe e ainda vou para muito mais distante...eu vim de um lugar onde as luzes brilhavam intensamente, as cores azuis, marrons e verdes pintavam tudo que eu conhecia e eu vi coisas terríveis onde o medo era a regra e a tristeza a forma de viver mas também conheci e experimento todos os dias a esperança...não pense que porque você me considera menos inteligente eu realmente seja em tudo...eu entendo muito bem de uma coisa e isso é a esperança.
- Observadores não levam em conta dados sem provas comprobatórias minimamente plausíveis. - Disse.
- E ainda assim me perguntou se uma imagem de algo que você nunca observou seja um motivo para existir. - Ela retrucou.
Ele ficou quieto encarando-a, existia há mais de 200 anos e apenas uma vez havia cogitado a idéia de abandonar os preceitos dogmáticos ensinados na Torre de Observação e isso fora quando, por acaso, se deparara com o folheto digital do planeta chamado Terra cujas menções nos trilhões de dados salvos na Biblioteca Viva são raríssimos e pouco satisfatórios. Ainda assim, há mais de cem anos convivia com a figura do planeta azulado e cheio de cores inimagináveis em sua mente. Desde que chegara a Placa sonhava com o dia que veria aquele lugar, que observaria e tomaria nota de seus detalhes com o maior afinco e satisfação possíveis, seria o dia que retornaria triunfalmente as leis da Observação. A cena imaginária que construía-se a sua mente era suficiente para adulterar completamente os tons infelizes de seu existir e subverter a musculatura de seu rosto a ponto de deformá-la em um sorriso irremediavelmente agradável.
Imerso em sua própria mente onde um baile desenfreado e furioso de dogmas e perguntas batalhavam arduamente ele perguntou - Você...você acha que é possível encontrar?
- E porque não seria?
- Não existem...não existem dados da localização da Terra mais…
- Bom...a SuperCidade é muito grande...talvez apenas esteja escondida em algum lugar...
O Observador se sentou, mas agora mirava o teto de seu Posto enquanto Era olhava-o.
A figura de Dresden adentrou o Posto espreguiçando-se e atraindo a atenção de ambos.
- O que estão fazendo? - Ele perguntou.
- Conversando. - Disse Era.
- Sobre?
- Esperança.- Disse o Observador com um sorriso em seu rosto.
FIM.
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Atualizado em: Qua 1 Set 2021

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