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Herança ancestral

Já estava quase anoitecendo, um vento gelado parecia cortar sua pele e até aquele momento, ela não acreditara no que havia acontecido nesses três dias. Tudo parecia tão surreal, inacreditável. Se contasse para alguém... Se tivesse alguém para contar, provavelmente a chamariam de louca.  O que não seria condenável, pois ela mesma não aceitava o que tinha acontecido.
Sentada naquele banco de praça, completamente atordoada, sem disposição para se levantar, ela permanecia estática, olhando a sua volta sem se prender a nada. Absorta em seus pensamentos ... Estranhos pensamentos. 
Meio que trazida pelo vento, tão sutil quanto uma brisa, a senhora pequena de olhos brilhantes, senta-se ao seu lado. Em silêncio por um longo tempo, olhando o infinito, parecia estar apenas querendo sentir o frio gelando sua face.  
- Está ficando muito frio e logo vai escurecer, talvez, você queira tomar um café quentinho – Disse a velha senhora.
- Não, obrigada . – Respondeu a moça e se levantou em seguida.
- Não tenha pressa minha jovem. Sonhos às vezes podem significar muitas coisas.
- Boa noite, senhora.
Ignorando o tom ríspido da garota, a senhora insiste
- Se não quer falar sobre os sonhos agora, falaremos outro dia.
Amina seguiu seu caminho com passos firmes sem olhar para traz.
Quem seria aquela mulher estranha? Só de pensar nela sua alma gelava e não era por causa do frio da noite. Contrariando seu desejo, virou-se e olhou na direção do banco da praça e a mulher ainda estava lá, sentada a olhar para o infinito. Parecia uma estátua sendo açoitada pelo vento frio. 
A jovem balançou a cabeça  para espantar os pensamentos.
- Pára! Isso é loucura e tudo não passou de coincidência. Aquela mulher é apenas uma velha solitária que desejava puxar conversa em um dia frio.
As palavras eram proferidas pelos lábios, mas o cérebro insistia em martelar as palavras da velha. Decidiu esquecer o assunto e ir logo para casa, pois estava se formando uma tremenda tempestade. Um  relâmpago clareou todo o caminho, sendo seguindo por estrondoso trovão. Amina andou mais rápido a fim de chegar em casa antes da chuva.
Parecia que a tempestade só estava esperando ela chegar para desabar. Ao entrar no pequeno apartamento, as lembranças vieram a tona. A solidão. Aquele seria mais um fim de semana interminável e enfadonho.
Jogou-se no sofá e ficou pensando na sua família e nas histórias de seus ancestrais contadas por seu avô Kilu. Eram fantásticas, cheias de aventuras, deuses, guerreiros, sortilégios e magia. 
Amina levantou-se do sofá e decidiu ler um livro, mas não conseguia se concentrar.
- Mas que droga! Não consigo parar de pensar naquela mulher esquisita.
A chuva insistentemente batia nos vidros da janela, fazendo um som repetitivo, como se fosse um mantra irritante, lembrando os tambores da terra de seu avô em dias de ritual. Os trovões ecoavam pelo pequeno apartamento que fedia a mofo por causa das infiltrações.
Entre um relâmpago e outro, seus olhos se dirigiam para aquela velha boneca negra, largada num canto, era um presente de sua tia, quando completara treze anos.  Dava para ver uma acusação velada naqueles olhos castanhos. Sentiu um arrepio ao se lembrar do sonho que a perseguia todas as noites.
Jogou-se na poltrona rasgada, que também fedia. Parecia que este cheiro maldito estava impregnado em todo lugar.
- E essa chuva que não pára! - Pensou aborrecida.
Decidiu sair e caminhar um pouco, para colocar os pensamentos em ordem.  Vestiu uma capa, calçou as botas já surradas, ignorando o maldito céu que desabava. Antes de sair, se dirigiu até a janela para dar uma espiada. Mais um trovão só que dessa vez acompanhado de gritos. Olhou pela vidraça em direção ao beco escuro que fica logo em frente, e viu que os gritos vinham dali. Alguns moleques estavam batendo na “senhorita” que contrariando os avisos da natureza, saiu para “trabalhar” naquela noite.
Parecia que no céu havia um caos absurdo e todos os anjos gritavam ao mesmo tempo.  Desistiu de sair.  Irritada, jogou a velha capa no chão, arrancou as botas e as deixou largadas no tapete puído. Percebeu que estava com fome, quando o estômago começou a doer.  Foi até a geladeira procurar comida que ainda não estaria estragada. Em vão, tudo que encontrou foi água e um resto de pizza velha, que não estava nada atraente.
-  Melhor mesmo, seria tentar dormir, o que não estava sendo fácil nesses últimos dias.
Lá fora, os gritos da prostituta a incomodavam. Tinha que fazer alguma coisa, senão não seria mais uma noite insone. Levantou-se, jogando a coberta para longe. Abriu a janela e sem pensar no que estava fazendo, e foi para fora. Preocupou-se apenas em vestir a velha capa e calçar suas botas.
Chegando na entrada do beco, totalmente encharcada e tremendo de frio, notou que se tratavam apenas de três jovens. Não teria maiores problemas em detê-los e logo poderia voltar para sua solidão. Apanhou um pedaço de madeira no chão e foi em direção dos rapazes com passos vigorosos, decididos e uma expressão irritada no rosto.
- Hei, pessoal!  Vamos acabar logo com isso. Eu estou toda molhada, aborrecida e com fome. Sem falar que quero dormir. Portanto, deixe a moça ir embora e não teremos problemas. - Sua voz denotava tédio. Afinal, eram somente guris que deviam estar em casa e não nas ruas cometendo delitos.
Os rapazes ainda segurando a “moça” pelo braço, não estavam armados, olharam fixo para aquela jovem de capa molhada e pareciam não acreditar no que ouviam.
- Você tá doida ou quê? Quem você pensa que é?
- Sou apenas uma garota que está há muitos dias sem dormir, que teve um dia péssimo. – Deu um suspiro, ignorando o tom de ameaça dos rapazes. E com uma voz estranhamente calma disse:
- Ora de encerrar o expediente guris. Já disse, solta a moça.
Os garotos se entreolharam sem acreditar muito no que estava acontecendo naquele beco e um deles partiu para desferir um golpe na intrusa, que se desviou com muita rapidez e destreza. Ela lutava muito bem, desde criança que pratica artes marciais. Enquanto se defendia, já derrubava o pobre garoto que não teve nem chance de reagir. Foi lançado nas latas de lixo sem nenhum esforço.
Os outros garotos atônitos e sem entender o que estava acontecendo, partiram para cima da jovem. No entanto, com a mesma facilidade, derrubou os dois e os lançou longe. Machucados e com o ego ferido, fugiram correndo, ainda olhando para trás, tentando saber quem seria aquela garota estranha, que no meio da noite, debaixo de uma chuva horrível, se mete em uma briga por causa de uma prostituta.
No beco, a “moça” ainda caída, massageando o braço machucado,  olhava fixo para sua heroína, sem falar uma palavra.
A desconhecida de capa, apenas olhou para aquela figura suja e cinicamente disse: - Vai ficar aí me olhando? Vai para casa mulher. Não sei se você percebeu, mas está chovendo horrores.
Deu as costas saindo, não esperando resposta da outra. Sumiu na escuridão da noite e em meio às sombras procurou seu abrigo.
Os olhos da prostituta não desviavam da figura que se afastava. Levantou-se como se nada tivesse acontecido, arrumou seus cabelos, sua roupa rasgada e em pé, parada, esperou pela visita.
De um dos lados escuros do beco, uma figura conhecida se aproxima. Protegida por um guarda-chuva aborda a prostituta, estendendo para ela uma caixa pequena.
- Aqui está, você fez um ótimo trabalho. Ela não se machucou não é?
- Não, não se machucou. Ela é muito habilidosa. Mas muito mal humorada.
A figura emite um som rouco que parecia ser um sorriso.
- Ela   muito temperamental, mas possui um grande coração.
- Pode ser, senhora.
- Vamos embora, nosso trabalho acabou por aqui. Agora é só esperar.
Chegando em seu apartamento, Amina manteve o mesmo ritual de antes, tirou a capa, as botas, enrolou uma toalha nos longos cabelos encaracolados, tentando secá-los antes que pegasse um resfriado, apesar de nunca ter ficado doente em sua vida.  
Lembrou-se da luta de momentos antes e lamentou pela violência absurda, concluindo que esse seu dia estava longe de ter sido normal. Muitas coisas consideradas não normais aconteciam ao longo de sua existência, mas melhor não pensar nisso agora. O melhor era finalmente dormir. A noite seria longa e povoada de sonhos. Deitou-se enrolada no cobertor quentinho, ouvindo os sons da noite que foram ficando cada vez mais distantes.  E após várias tentativas de relaxar, cai em sono profundo.
Aos poucos, imagens familiares e angustiantes começam a povoar sua mente. Levando-a para uma terra estranha em um tempo desconhecido.
******** Era noite e não chovia torrencialmente daquele jeito, há pelo menos três anos, o que não é comum, pois a principal característica dessa região é a intensa quantidade de chuva tropical. A água que vem do céu é considerada como vida e todos nas aldeias a recebem com alegria, festejando sua chegada.
Porém, aquela tempestade estava deixando a todos muito apreensivos, era como se os deuses quisessem falar algo, alertarem.  Deviam ficar preparados. Naquela noite, Gaia estava totalmente em atividade, sua tensão era perceptível.
Após tantos acontecimentos desastrosos e desgraças naquele lugar, até a chuva, tão esperada e festejada por todos, causava pânico.
Do lado de fora da pequena cabana de taipa, rostos apreensivos.  O entra e sai do Sacerdote causava angústia em Kiluanji, chefe da tribo. A vida se manifestava mais uma vez e era esperado o momento do nascimento de mais uma criança. Seu filho Agaja, não saia de perto de sua esposa que dolorosamente se prepara para o nascimento do seu bebê. Do lado de fora era possível ouvir os gritos e gemidos de Mirina. O sacerdote sabia, estava pressentindo que alguma coisa não estava indo bem.  Já se passara muito tempo e a criança já devia ter nascido.
Repentinamente, como mágica, a tempestade se dissipa dando lugar a uma imensa lua prateada adornada por um círculo vermelho. Um vento quente assopra em meio as árvores e mato, movendo folhas e causando arrepios.
Mau presságio, os membros da tribo sussurram entre si, assustados. Segundo a lenda, quando a lua sangra, Gaia quer oferenda.
De dentro da cabana, ouve-se finalmente o choro de uma criança.
Agaja sai, com seu rosto transtornado pela dor e molhado pelas lágrimas, trazendo consigo uma linda menina e a coloca nos braços do avô, o velho chefe Kiluanji. O chefe da tribo ao segurar a criança chora em silêncio num misto de alegria e tristeza. Aquela não era uma menina comum. Ela tem um destino de guerras e conquistas, é a esperança daquele povo.
O velho ergue a criança e a apresenta à lua e depois ao povo que aguardava por seu nascimento. Todos erguem os braços em direção ao bebê, saldando a pequena em sinal de respeito e afeto. No meio da floresta ouve-se o som do vento assoprando por entre as árvores e os
pássaros noturnos emitem seu cantar, também em saudação à pequenina.
Logo em seguida, Agaja entra novamente na cabana, para render última homenagem de amor a sua amada esposa que não resistiu ao parto difícil. As anciãs não conseguiram estancar a hemorragia que insistia em regar o solo com o sangue fresco e quente de Mirina.  
Enquanto isso, Gaia, sedenta, sorvia cada gota do líquido tão precioso, que era derramado e levara a vida da doce Mirina. Mas ela em sua divindade e sabedoria, sabia que seria cobrada pela pequena que acabara de nascer e quando isso acontecesse, estaria pronta para o momento de reivindicação.
Gaia teria que ser tão generosa quanto fora a oferenda involuntária na fatalidade da morte de Mirina, que tinha sido ceifada tão cedo, tão jovem. O preço fora muito alto.
********
No pequeno apartamento, Amina vira de um lado para outro, em sua cama. As imagens cada vez mais fortes, como se fossem lembranças, reais e assustadoras mudavam de um lugar para outro, totalmente desconexas. Seu corpo arde em febre e envolta na sua angústia, chora amargamente uma dor que desconhece, molhando seu travesseiro. Por mais que tente, não consegue acordar daquele pesadelo e as imagens continuam a castigá-la dolorosamente.
...
Todos na aldeia se vestiram com roupas sujas de terra e se enfeitaram com flores para a cerimônia de entrega do corpo de Mirina de volta à terra. Todos estavam tristes e pesarosos sobre o destino da pequena que acabara de nascer e perdera sua mãe.
Após o cerimonial de entrega do corpo de Mirina, o velho Kiluanji e seu filho Agaja decidiram junto ao conselho dos anciãos sobre o destino da menina que deveria ser preparada e educada nos moldes da tribo, mas tinha que também conhecer a educação do continente.
******
E na angustiante realidade, as imagens se perpetuam infinitamente, invadindo e roubando a paz de Amina que num misto de desespero soluça, sem acordar, sem poder fugir de sua agonia. Chora um choro de criança que perde seu colo, seu seio, seu amor mais puro e profundo. Chora por sua mãe.
Abruptamente acorda. Sua respiração pesada não a impede de continuar chorando, abraçada ao travesseiro, seu fiel amigo. Pensou em seu avô. O velho curandeiro. É claro! Aquelas histórias todas que ele contava, tinham que ter alguma relação com seus sonhos. Mas como descobrir?  Quem era aquela criança afinal?
*******
Um trovão muito mais forte fez com que Amina acordasse de sobressalto dos seus devaneios, ainda envolvida pelas imagens do sonho. Aos poucos sua respiração vai voltando ao normal. Assustada com a intensidade das imagens levantou-se e foi até a geladeira, tomar um pouco de água. O que seria aquilo tudo? O que significava?  Quem era ou o que era ela afinal? Uma aberração ou apenas estava impressionada pelos sonhos?
A chuva continuava torrencial, alagando ruas, arrastando lixo sem trégua. Amina saiu da cama e encostou sua testa na velha janela tentando assimilar tudo o que vivera nessas últimas vinte quatro horas. Um novo relâmpago invade o pequeno espaço e num lampejo os olhos da velha boneca se encontram com os dela, ainda inquiridores. Ela não conseguiu mais pregar os olhos. Sentada abraçada ao travesseiro, viu o dia amanhecer. Com um gosto horrível de sangue na boca, levantou.
A chuva que na noite anterior lavara toda a cidade havia se dissipado, deixando pelas ruas lixo espalhado. No céu um pálido sol ameaçava sair por entre as nuvens, transparecendo um lampejo de dia calmo.
Caminhar pela cidade era sempre uma ótima idéia para aliviar tensões e Amina gostava de fazer isso. Depois daquela noite tenebrosa, nada melhor do que um passeio. Foi em direção a uma lanchonete e pediu um café bem forte. Não gostava de comer nada pela manhã, ao acordar. Resolveu ir até a biblioteca da cidade e procurou livros sobre interpretações de sonhos, buscou informações em vários sites de pesquisa, mas não encontrou nada que pudesse fazê-la entender o que estava acontecendo. Pensou em procurar ajuda médica especializada, mas ficara com vergonha. O que diria? Ela não saberia descrever o que sonhara. Mas tinha que acabar com isso, já estava pirando.
No fim da tarde, intuitivamente foi andando em direção à praça do dia anterior. Como era esperado, a velha e estranha senhora, estava sentada no mesmo banco a esperar. Amina se aproxima e senta-se em silêncio. Ficam assim por alguns minutos, esperando.
A mulher apenas entrega um pequeno embrulho e ao se levantar diz: - As respostas que deseja, estão em casa. Volte para casa. Seu tempo chegou, é hora de amadurecer e se tornar uma mulher Amina. A infância acabou e muitos dependem das suas decisões. Volte para casa e deixe que o seu destino se cumpra. Não há mais muito que aprender por aqui. Sua família precisa de você.
- O que a senhora quer dizer? Devo voltar para o meio do mato? Lamento mas não tenho a intenção de sair da cidade e me enterrar numa vila de místicos.
- A decisão é sua.  Não tenho mais nada a fazer aqui. – fala a mulher.
- Espere! Quem é a senhora? – pergunta Amina.
- Alguém que precisa acertar contas com a vida. Até outro dia. – A velha caminha devagar e vai embora.
Amina ficou sentada só por muito tempo, refletindo nas palavras da senhora. Abriu o embrulho e viu que se tratava de uma pequena pedra vermelha, presa por um fio de ouro. Nada exótico nem estranho. Apenas uma pedra vermelha que não significou nada, mas mesmo assim ela o colocou no pescoço.
De volta ao apartamento pensou que talvez devesse fazer uma visita ao avô, afinal fazia tempo que não o via e estava mesmo de férias da faculdade, não haveria nenhum problema. Amanhã pegaria o primeiro avião.
********
Ao chegar, procurou algum caiçara que pudesse levá-la até a vila onde seu avô morava. Não era um lugar visitado e poucas pessoas se interessavam em procurá-los, a não ser para tratar de alguma enfermidade. Seu avô era um curandeiro respeitado. Aprendera tudo com seu pai, herança de família. Naquele lugar, longe das cidades a alquimia e os feitiços eram as formas mais utilizadas e comuns para tratar doenças e males.
Ela já era esperada e seu velho avô a recebeu com largo sorriso, como sempre. Não fez menção ao fato dela ter ficado tanto tempo longe. Ele sabia que quando fosse a hora ela voltaria.
Amina sentia que havia algum mistério no ar. Todos estavam se preparando para uma festa que haveria naquela noite, mas ela não sabia do se tratava, apenas se deixou levar pelas tradições.
Ao cair da tarde, ela se preparava para a festa, adornando-se com flores e roupas coloridas, como o costume. Fora deixada sobre a mesinha chá de ervas aromáticas e doces. Quando os primeiros sons de tambores ecoaram, Amina já havia tomado todo o chá e preparava para se dirigir até o local da festa, quando algumas mulheres entraram e a conduziram até o pátio. Estranhamente, ela se deixou conduzir em direção ao som dos tambores. A atmosfera tornara-se densa.
No céu, as estrelas adornam o manto escuro da noite. Há uma tensão no ar. Não se ouve os sons tão comuns da floresta. O vento suave, em reverência ao grande Oloru que observa atentamente, no refúgio da sua divindade, não se atreve a mover uma folha sequer. Tudo está preparado.
Os aldeões se agrupam em círculo, respeitando as tradições ancestrais. As crianças sentadas no chão, ao lado de suas mães, aguardam ansiosas pelo ritual. Foram quatro longos séculos de espera. Finalmente a descendente direta de Nizinga, estava pronta. Tochas e fogueiras iluminam o pátio preparado para o ritual de iniciação.
Os tambores começam a soar em ritmo lento e forte, cadenciado, marca a aproximação do sacerdote, acompanhado das anciãs. Os homens, devidamente enfeitados, dispõem no pátio, sobre montões de terra, formando um grande círculo, com muito cuidado e reverencia os cofres de barro queimado, urnas sagradas contendo os ossos dos “principais” e mais antigos da tribo.
O som dos tambores se intensifica e a cadência se torna mais rápida e agressiva. Tocadores e dançarinos festejam e honram a memória dos guerreiros falecidos. Seus corpos brilham a luz da lua e do fogo, criando um atmosfera mágica e intensa.
A música pára ao sinal do mestre e todos os olhos se dirigem para a figura alta e magra que se aproxima. Se curvam, em respeito ao Ntomo Nsi, que carrega o mfunga e o ngontche ( instrumentos sacerdotais de magia), para evocar os espíritos dos ancestrais. O sacerdote percorre todo o terreiro e senta-se no chão, ao lado de um dos cofres sagrados. Ergue sua mão esquerda, convida o Apelegis (sacerdote de condução) a entrar com Amina. Novamente os tambores retomam a marcação. 
Amina se aproxima timidamente e olha nos olhos de cada uma daquelas pessoas - Olhos curiosos, ansiosos. Sua respiração está cada vez mais difícil e o coração parece que vai explodir. Estaria preparada para o que viria a seguir? As mulheres gritam e rodeiam-na, conduzindo-a para o centro do círculo dos cofres sagrados e despem-na, untando seu corpo com óleo aromatizado feito de ervas. Elas molham sua cabeça com a Maji e a fazem bebê-la – água sagrada com o poder de tornar invulnerável quem se banhar dela. Ntomo Nsi se levanta e vai ao encontro da escolhida. É iniciado o ritual da guerreira.
O feiticeiro profere palavras inteligíveis, guturais e sons que se assemelham a ganidos. Ergue novamente o ngontche e todos ouvem a natureza responder imponentemente. Trovões e relâmpagos se misturam ao som do vento. Os ancestrais estão à escuta, observando... A espera...
A cabeça de Amina gira como um caleidoscópio, a ponto de perder os sentidos.  Os tambores, os cheiros, os gritos... Tudo vai ficando distante... Os sons, cada vez mais longe. Entra em transe. Seu corpo começa a se mover em ritmo lento e sensual. Seus braços parecem serpentes sinuosas e a pélvis balança no ritmo dos tambores... Seu corpo, não sente a aproximação de Ntomo Nsi, que toca sua testa, proferindo as palavras sacerdotais de iniciação. Seu corpo reage em convulsões. Cada molécula de sua carne está em total transformação, suas células lutam se adaptando, moldando. Suas entranhas queimam, o sangue corre muito rápido. Abre os braços e os ergue para receber... O feiticeiro se afasta.
Deixa-a sozinha no círculo, a mercê dos ancestrais...
Silêncio...
Nas entranhas da terra, Gaia sabe que este é o momento.
É a hora da reivindicação. Oloru, em sua posição divina, não interfere, mas autoriza os deuses a se manifestarem e enquanto isso, apenas aguarda o desfecho...
A terra começa a tremer. Gritos assustados ecoam pela noite. Mas diante do terror, ninguém se atreve a sair. Estáticos, em êxtase, toda a tribo assiste hipnotizada por toda a beleza daquele momento.
No círculo dos ossos sagrados, a terra se ilumina, criando uma cortina de luz intensa. Uma grande aliança iluminada. Amina é engolida pela luz de Gaia.
Todos estão com os olhos fixos na jovem que misteriosamente é erguida e em seu corpo reluzia uma armadura dourada e vermelha, as cores dos deuses ancestrais da guerra, que a recebem como sua protegida. Em sua mão um anel da cor do fogo, inquebrável como alianças feitas com sangue. Gaia finalmente pagava uma dívida antiga... Acabara de estabelecer um pacto de fogo e sangue com aquela jovem, cuja mãe a alimentara em sua sede sanguinária. Ela devia isso a ela.
A jovem Amina, descendente direta da grande guerreira amazona e rainha Africana Nizinga, havia finalmente tomado posse do seu legado.
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Atualizado em: Seg 20 Ago 2018

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