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A Des-Crente

D. Celeste era uma mulher muito pacata. Um dia ficou viúva, sem filhos, e então parece que incorporou o nome com que seus pais a batizaram, e passou a buscar avidamente as coisas celestiais.

No começo sua procura esbarrou na falta de tempo dos sacerdotes da igreja em que se criara. Ou melhor, eles logo encheram o saco com as perguntas que a senhora lhes fazia, parecia uma criança na fase do por quê. Então inventavam desculpas e escapavam da perguntação.

Moradora duma cidade pequena, sem muito o que fazer (naqueles tempos não havia a televisão, poupando-nos da trabalhosa tarefa de pensar), sua cabeça parecia um rodamoinho de tantas questões. Por que Deus fez a raiz da planta crescer pra baixo? Por que o ovo não foi criado redondinho? Por que Noé salvou a muriçoca?

Cada instante, cada coisa que via, eram novas caraminholas a borbulhar no seu solitário cérebro. Foi um dia em que, passeando atormentada por questões tão vitais, finalmente escutou alguém pregando "...e Jesus vai responder a todas as suas perguntas!"

Celeste foi atraída por aquela frase como a abelha para o mel. Quando deu por si estava diante dum galpão ermo onde diminuta platéia escutava um homem de paletó. Ao ver a chegada de mais uma ouvinte, ele aumentou os gritos e dizia, para encanto da recém-chegada: "Deus tem sempre uma porta aberta para todos nós, aleluia!" - e Celeste já estava respondendo no coro: "Aleluia, aleluia!"

Em pouco tempo estava lendo a Bíblia a todo instante. Não parava de ter dúvidas, mas lia, lia, lia mesmo sem entender as palavras mais difíceis. Descobriu que era preciso dividir o pouco que tinha com a igreja, ou seja, com o pastor. Em algum tempo havia transferido ao bom homem, que dizia realizar obras com aqueles recursos, considerável parte da herança do marido. Como as obras não apareciam ela, um dia, com vergonha, ousou perguntar ao pastor onde estava todo o dinheiro e bens que recebera. No dia seguinte ele não foi pregar, e nem no outro e nem em dia algum.

Celeste não se abalou com a fuga do charlatão. Muito pelo contrário: sabia que Deus estava provando-a, e aquilo certamente era um chamado. Mandou cartas para várias denominações, até que uma respondeu: estava interessada na proposta da boa mulher de fundar ali um templo da Igreja do Quadrado Sagrado das Escrituras Universais. Para tanto podia ela mesma ir cuidando de arregimentar fiéis, até que um pastor fosse transferido para lá.

Foram meses de espera, Celeste agora no púlpito do mesmo galpão abandonado outrora, doutrinava a mesma diminuta platéia.  Era um paraíso, embora suas preleções versavam muito mais sobre o que ela não sabia, do que propriamente responder algo. Mas repetia sempre: "Jesus vai nos responder a todas as dúvidas, aleluia!".

O pastor prometido não apareceu, mas antes surgiu um pregador sugerindo que ali funcionasse a Igreja do Sagrado Quadrado Universal das Escrituras, e ela concordou. Entretanto o novo condutor não estava disposto a dividir seu púlpito, e logo as divergências surgiram, cresceram, fazendo com que Celeste acusasse o homem de impostor. Resultado: foi expulsa, e teve de procurar outro local para dar vazão aos anseios sempre crescentes.

Foi por essa época que encontramo-la na casa dum amigo, distribuindo panfletos. Chegou até onde estávamos, e disse: "Irmãos, Jesus é o único meio de responder às nossas perguntas", entregou o folheto, e saiu, garantindo: "Só por Jesus nos salvamos".

Alguns anos depois, morreu. Havia passado por nada menos que quinze igrejas diferentes. Um recorde, e então quando esperou chegar ao paraíso, ouviu apenas uma voz que lhe dizia ser, como na parábola de Lázaro mendigo, o Pai Abraão. Sem acreditar naquilo, por não condizer com a sua firme crença na ressurreição em dia certo, não respondeu. Mas o tal Abraão continuou: "Celeste, minha filha, você fez tantas perguntas, e se esqueceu de perguntar o essencial... Veja, tudo o que Cristo disse foi para amar os semelhantes! Até o samaritano, que nem cristão era, foi salvo!"

Ao escutar tal blasfêmia, Celeste-alma revoltou-se. Gritou coisas como: "Não tentarás o Senhor teu Deus!" e equivalentes. Mas a voz, vendo não encontrar eco naquele coração, afastou-se, dizendo: "Acorde, minha filha, desse vosso jeito, nem Jesus foi Cristão!".
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Atualizado em: Sex 17 Abr 2009

Comentários  

#2 tania_martins 17-08-2010 18:15
Parabéns,garoto! Beijos.
#1 tania_martins 17-08-2010 18:15
Parabéns,garoto! Beijos.

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