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Ícaro

UM SONHO

Era a quarta mensagem da manhã:
“Amor, diz que você está dobrando a esquina...”, ele digitou, finalizando a afobação com um milhão de “diz, diz, diz”.
Eu acabara de acordar o carro. Liberei uma demorada gargalhada o suficiente para abafar os tenores do motor. E olha que eu já havia ligado pouco antes das dez, confirmando que o pegaria no portão da casa materna dentro de, no máximo, uns oito minutos!
Eu mal finalizara a manobra para encostar a picape e uma fluorescente mochila voadora estatelou-se contra o vidro traseiro, repousando bem atrás do banco do Ofegato.
Meu beijo? Esquece. O garoto elétrico não concatenava seus sentidos, devido ao estado de suprema euforia a nublar seus pensamentos.
“Tudo pronto?”, provoquei, segurando nova gargalhada.
“Sim. Estou pronto. Vamos. Já estou em cólicas. Cadê o CD?”, destrambelhou meu principiante, enquanto caçava o The Best of no interior do porta-luvas cheio de correspondências profissionais e outros badulaques inclassificáveis.
* * *
Nosso destino?
Pedra Rosada. É claro!
De acordo com minha programação, na manhã seguinte Pedro finalmente realizaria seu mais fervoroso sonho: voar de asa-delta.
A rápida viagem foi deliciosa, embalada ao som do Duran Duran.
Entre paradas e preguiças, chegamos aos céus e matos pouco depois do meio-dia.
Sem pestanejar, montamos acampamento num ponto remoto, longe das vindouras badalações, bem aos pés da descomunal rocha pra lá de impressionante.
Marinheiros de terceira viagem, quando enfim terminamos nossos preparativos o sol já havia se escondido entre nuvens psicodélicas.
O Vento Sul bolinava nossos cabelos, produzindo penteados criativos, exuberantes, divertidos. O frio no alto da montanha proporcionava uma sensação convidativa de profundo aconchego.
Apaixonados, vibrando alegrias e um incrível bem-estar, passamos o resto da tarde lubrificando nossos egos em sucos variados, beliscando deliciosas porcarias gordurosas e venerando a natureza enquanto zanzávamos nos arredores do compacto castelo de lona e alumínio.
A trilha sonora do fim de tarde? Lighthouse Family.
Perfeito!
* * *
No décimo segundo da misteriosa madrugada, ambos embrulhados num providencial cobertor ancestral a aquecer peles e pelos e sexos e expectativas, observávamos as estrelas a bailar no manto escuro. Éramos anjos inquietos recostados numa pedra arenosa a produzir cócegas em nossas peles eriçadas.
A gente se divertia ao tentar descobrir os nomes das constelações, dos planetas, dos universos grandiosos que pontilhavam nossa imaginação. Histórias e recordações eram declamadas entre beijos e contentamentos a coroar nosso amor juvenil e perfeito, onde tudo era belo e (eu tenho certeza!) seria eterno.
Brincando com as canecas de chá – preto eu, verde ele –, provoquei meu namorado sobre o “batismo” vindouro:
“Acho que o George não vem. Sei lá. Pressinto uma chuvarada a despencar lá pelas seis...”, joguei ao vento.
Ganhei um olhar fulminante e um dolorido beliscão como resposta.
Havia semanas que Pedro se preparava para curtir seu primeiro voo. A grande oportunidade surgiu durante um bate-papo informal, quando descobri que George – um fiel cliente da minha lojinha de sapatos artesanais – era detentor de séculos em experiência na arte de pairar nos céus.
Meu amigo se ofereceu para realizar a vontade do meu amorzinho, traçando roteiros, expondo regras e rabiscando datas nas três agendas.
Começo a rir ao relembrar o primeiro encontro dos dois. Pedro quase provocou um enfarte em George, de tanto lhe bombardear com perguntas e dúvidas e teorias a respeito da magia por trás do navegar no firmamento etéreo.
 
Ufa! Chegou o fim de semana tão cobiçado. O presente ideal para comemorar o nosso primeiro ano de um equilibrado relacionamento cor de rosas douradas.
“Você quer dormir agora ou prefere quatro horas de sexo selvagem?”, intimei meu Ansioso.
Eu tentava retirar sua parte da coberta, puxando o frangote a fim de provocar seu desequilíbrio em direção ao meu colo afogueado.
Entre dezenas de beijos e provocantes apertos, acabei forçando meu Delicioso a projetar o corpo para o interior do ninho sensual. Escapávamos assim das primeiras rajadas de um alvoroçado vento barítono.
“Prefiro ficar acordado, fazendo amor com você até o sol raiar, para depois saltar daquela pedra logo na primeira hora produtiva da manhã e gritar ao mundo o quanto eu te amo”, sussurrou Pedro no ouvido calafrio do seu homem.
“Então... vamos logo, guri! O desejo de te grudar em conchas não tem fim, só recomeços. Temos que aproveitar muito bem os minutos restantes, porque daqui a pouco abre um novo dia, chega o teu piloto e aí acabou a nossa farra!”, eu ronronei, entre beijos e mordidas provocantes na nuca alva e sedosa do meu delicioso garoto quase alado.
Nos aposentos reais, lacramos nossas retinas e moldamos nossos corpos no trançado de uma fartura de beijos enfeitiçados a prenunciar o reinício dos prazeres da carne e da fusão dos espíritos bem afinados.
“Um ano juntos”, eu suspirei, no quarto intervalo.
“Uma eternidade nos aguarda”, ele respondeu, beijando a ponta do meu nariz-rudolph.
Após o sexo, fizemos amor. Depois do amor, enrolamos nossos pelos suados num acolhimento protetor. Dormimos no colo do Sonho dos Justos, embalados pelos timbres sinfônicos do ar cortante e das estrelas cadentes.
Por volta das cinco e meia, abri a segunda porta para permitir a entrada de um ar mais fresco que deveria se fundir com o calor emanado da nossa gloriosa e santa luxúria. Esticando os músculos do lado de fora, abateu-me um descompassado arrepio enquanto eu dedicava alguns segundos a apreciar a textura das lascas chamuscadas que crepitavam na quase extinta fogueira responsável por aquecer e iluminar sensações que jamais seriam apagadas.
Ressabiado, senti que algo pareceu se agachar por detrás de uma densa folhagem próxima à barraca, ao lado da minha Montana.
Já acostumado com as peraltices do ar em rodopios, resolvi não dedicar maior atenção ao Nada.
Sonolento, porém ainda não saciado, voltei para nossa toca e despertei Pedro com um beijo bem no centro do seu peito liso, amornado, quase feminino.
Assim iniciamos preliminares para o décimo acasalamento, enquanto curtíamos o degradê oferecido pelos primeiros raios de sol ao som baixinho da melhor fase do Culture Club.
Em trajes camuflados, Massa Branca surgiu por detrás da terceira araucária onde havíamos ancorado o nosso castelo de vinil.
Rugindo impropérios, segurando um objeto metálico na mão esquerda, ele assombrou duas almas que só queriam curtir aquele momento mágico sem o mínimo propósito de ofender ninguém.
De repente, os frames de um filme D queimaram minhas retinas vidradas: Barraca de “porta” aberta. Machos à meia-luz. Vulto acompanhando o longa-metragem de um amor que ele fazia questão de não compreender. Animal ensandecido toma coragem. Aproveita a distração e liberdade dos amantes. Ele dá o bote, acompanhado da Morte.
Oh, céus! A coisa toda ocorreu em impossíveis trinta segundos!
Varapau, fora de todas as órbitas, empurrou-me para um lado, e em nome de um deus que não podia ser Deus, chutou com violência meu Pedrinho para o outro canto.
“Homem que dá o cu merece morrer!”, o covarde havia escolhido o alvo mais fraco.
Afirmando em gritos guturais que o nosso amor era obra das trevas e que ele não ia permitir a continuidade daquela pouca-vergonha na sua sagrada montanha, Lunático passou a cantarolar frases soltas de um livro apenas histórico.
Petrificado, eu não conseguia definir se tudo era real ou bizarro, ainda mais ao notar que o psicopata estava com a braguilha escancarada e um sexo minúsculo gotejava frustrações recém-punhetadas.
Oh, Providência. Como fui me atentar a esse maldito detalhe?
Eu, que era muito mais encorpado do que meu filhote, saltei com tremenda dificuldade e me atraquei com Histérico, tentando, de todas as maneiras, retirar o pedaço de ferro enferrujado que o maníaco segurava em uma das mãos que vertia intolerância em nome de uma divindade colérica que definitivamente não era o meu Deus que ensinou o Amor aos homens.
Tapando o rosto e as partes íntimas do seu corpinho acuado, Pedro gritava em falso soprano, reduzido a tatu-bola num canto da barraca, atordoado por não compreender o que realmente estava acontecendo.
Meu amor destilava legítimo pânico ao presenciar minha luta contra o animal alienado. Por instinto, Pedro agarrou as pernas do homenzarrão por trás, imaginando desequilibrar a mão assassina que procurava aniquilar a sua razão de viver.
Bastou um único giro. A sorte num golpe perfeito.
Diante de uma explícita exposição quadro a quadro, testemunhei o som do sangue a escorrer do alto da cabeça de Pedro, que imediatamente partira além-planícies, deixando o corpo nu, vazio e leve, planar surdo até beijar a grama baixa.
Meu bramido indicando o iminente fim da batalha alcançou as estrelas. A fúria cega tomou posse do meu ser varrido ao confirmar meu companheiro tão adorado desfalecido sobre o chão orvalhado.
Com a força ampliada em mil, aproveitando o surto de remorso e covardia que se apossou do monstro paralisado ao reconhecer a gravidade do seu ato, derrubei meu adversário paranoico, socando-lhe todas as partes do corpanzil retrancado.
Desferi golpes e arranhadas e mordidas furiosas até que a barra de ferro ensopada de vinho púbere desatou daquela mão translúcida e sebosa, fazendo com que o troglodita, choroso e rogando um falso perdão não merecido, se encarcerasse em posição fetal, tentando proteger o rosto adunco e sardento das minhas pancadas possessas.
Os faróis do carro de George ampliaram a gravidade da cena dantesca. Urrando em desespero grau doze, cerrei os olhos diante da claridade inesperada a evidenciar ainda mais aquela tomada digna de Dario Argento.
Enquanto George destroçava a porta do Renaut e corria, estonteado, para salvar seu amigo em apuros, bastou uma fração de segundo para que a fera se desvencilhasse do meu ódio e chispasse cambaleante para o oculto da mata agora maléfica, onde naquele instante de confusões era impossível seguir rastros.
Guardo na memória filetes da sua gargalhada nefasta. Orgulho pelo dever bem cumprido... em nome de deus?
Certamente conhecedor de todas as trilhas, o assassino Dois Metros desapareceu, carregando todas as provas.
Devastado, sentindo a fragmentação dos meus ossos, amparei o corpo gélido do meu piá luminescente acima da grama fofa, acinzentada, fora do foco preciso e da temperatura ideal.
Entre delírios visuais e sonoros, notei que boa parte das suas asas radiantes jazia para fora da barraca, e uma perturbadora poça carminada apagava de vez os delicados traços daquele rosto outrora todo ansiedade, esperança e sorrisos.
Minha última lembrança daquele inferno foi ver meu amigo George transtornado, não aceitando a gravidade do episódio, infiltrando-se mata adentro para caçar a Besta, enquanto eu vociferava para o meu Deus Verdadeiro, questionando Sua autoridade vezes sem fim:
“Por quê? Por quê? Por quê?”
 
A REALIDADE
1998.
Um ano rasgado em tristezas.
O inquérito permanecia negligenciado, esquecido, apagado.
Por pura inércia, a polícia despreparada insistia em nos afirmar que não encontrara nenhuma pista do assassino de Pedro.
Na delegacia, retratos falados descartados. Eles priorizaram as fofocas zombeteiras sobre a “farra” dos viados.
Meu HOMEM faria vinte e um.
Corpo de quinze. Cabeça de trinta e dois!
* * *
Mesmo sem rumos definidos, com o apoio de pessoas especiais eu havia encontrado energia mínima para voltar ao ponto exato onde só pretendíamos celebrar em harmonia o nosso primeiro ano de união estável.
Como doía sonhar com tudo aquilo que não aconteceu.
A comemoração seria dupla, já que Pedro colocaria em prática um desejo tão simples, mas de grande importância para aquela que deveria ser o começo de todas as suas realizações.
Como não debulhar em lágrimas ao confirmar uma existência esfarpada de maneira tão desumana?
No centro da inabalável Pedra Rosada, onde a vista privilegiada do pequeno vilarejo que recebia o nome da montanha dos homens-pássaros era turvada pela saudade absurda; eu, Dona Virna, George e sua esposa Samanta, depositamos flores e acendemos velas em memória do filho-amigo-amado.
Após breve instante de silêncio, respeito e contemplação da força inspiradora do Criador no seio daquela natureza exuberante, George me abraçou, cochichando algo em meu ouvido direito, pedindo para que eu observasse o céu que gritava um azul acolhedor.
Encantados, todos acompanharam uma delicada nuvem em forma de asas-querubim mesclar-se aos poucos com outra maior, que lembrava em seu traçado divertido um floco de algodão em curvas de coração.
“Veja, meu amigo. Ali está o Pedrinho realizando seu grande sonho. Ele conseguiu voar, finalmente. E sem a minha ajuda, esse moleque…”, disse George, tentando abafar sua própria emoção, enquanto era amparado pela mulher.
“Ele permanecerá planando, todo serelepe, bem próximo de nós, orientando nossos caminhos, fazendo com que possamos encontrar, não sei como, um jeito de seguirmos em frente e superarmos nosso traum…”, ele continuou, entre soluços e lágrimas beirando o incontrolável.
Samanta beijou-me no alto da farta cabeleira ruiva.
Eu não sei o que aconteceria comigo se não houvesse o apoio incondicional daquele casal maravilhoso.
A compacta nuvem angelical se fundiu com o Grande Coração, transformando-se num “U” simetricamente perfeito que lembrava um largo sorriso travesso.
“Ele está realizado!”, confirmei, rindo das gaiatices do meu pequeno.
“Sinto que meu Pedro está muito feliz e vai voar por aí até bater na periferia dos seios de Deus”, completei, retirando os óculos escuros, enxugando os olhos marejados, doloridos, entreabertos.
Dona Virna, minha sogra, amparou-me como um novo filho tão desejado. Em sonora oração, aquela mãe destruída expeliu a plenos pulmões o cântico que ficou entalado por um ano inteiro em seu espírito carcomido:
“Meu filho, perdoa o teu agressor. Ele não usufruía de vivenciada estrutura para compreender a força do Amor que hoje não ostenta nenhuma vergonha em confirmar o Seu nome. Infelizmente, teu assassino é fraco; apenas um ignorante amestrado que usa a máscara do Divino para impetrar as alucinações da Intolerância. Esqueça o rancor. Guarde na tua memória apenas os instantes mágicos que você e o teu primeiro amor viveram juntos. Leve para a eternidade a beleza daquilo que vocês experimentaram em profunda harmonia. Oh, meu menino, sinto um orgulho imenso por ter sido testemunha tão presente na linda magia que uniu você e o Alberto. Recorde, para sempre, toda a magnitude daquilo que vocês tiveram o privilégio de compartilhar, pelo tempo exato que foi concedido ao casal orgulhosamente ideal.”
Em prantos, renascido, tomado pelo bálsamo do hino de real louvor entoado pela sábia e conformada senhora, acolhi minha segunda mãe num abraço repleto de consideração, respeito e carinho:
“Pedro, eu te amo. Continue sonhando comigo, pois sempre estarei contigo nas tuas noites desbravadoidas. Agora vá, meu Ícaro. Vá curtir o teu sonho! Fique tranquilo, pois nós sabemos que a cera não será liquefeita. Voe para os braços do Amor Origem de Tudo que, por acaso, é Deus, o Verdadeiro”, implorei, sorrindo, na rouquidão de uma segunda prece aplaudida por todos.
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Atualizado em: Qua 19 Abr 2023

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