- LGBTS
- Postado em
Azul
Três da minha noite.
Permaneço introspectivo no abraço do único luxo material que valorizo em meu santuário: uma poltrona em vívido couro vermelho, fabuloso presente ofertado pela minha mãe, assim que completei dezoito.
Mantenho a liturgia regada em silêncio etílico, observando meu amante a viajar em sonhos límpidos, enquanto beberico a quinta Budweiser em conta-gotas.
Reposiciono seu corpo leve sobre meu colo felpudo. Beijo os fios dourados no alto da sua mente despreocupada.
Numa oração desfigurada, jogo alegrias saciadas no ar.
Não dá para evitar a presença de duas lágrimas fugidias.
* * *
Pelo menos o discurso de abordagem fugiu do trivial.
O estranho não me pediu dinheiro, tampouco veio com a velha máxima sufocante:
“Eu poderia estar robâno, matâno, gastâno com tóchico, blá, blá, blá”.
Ele apenas sentou-se ao meu lado no ponto de ônibus que liga Sul e Norte.
Constrangido, dizia ao léu que sentia fome. Foi o que imaginei ouvir.
Só então diminui o som, pedi licença ao Martin Gore, tirei um dos fones e resolvi prestar atenção naquela criatura errante.
“Tenho fome”, ele repetiu. Seu semblante remetia a um transe forçado.
Notei traços de sinceridade nas palavras sussurradas. Fui obrigado a confirmar que o sujeito realmente precisava ingerir alguma coisa sólida.
Macaco velho que sou, resolvi lançar o Grande Teste, retirando minha única nota de cinquenta da carteira. Perplexo no íntimo, eu mesmo não acreditei no meu sagrado ato mecânico, sem demonstrar um pingo de receio em ser assaltado.
“Aqui está. Preciso de vinte. Use o resto como você quiser”, me exaltei, ausente, entregando a nota ao moribundo.
“Você tem... deixe-me ver... nove minutos para trazer o meu troco”, exigi, espiando a hora na tela do meu idolatrado iPhone quitado após mil e duzentas prestações.
Com as mãos encardidas, em formato de concha, Barba Desgrenhada acarinhou o dinheiro com apropriada desconfiança, talvez não acreditando no seu dia de sorte. Trêmulo, enfiou a nota num dos bolsos da blusa vermelha de moletom, saindo apressado para se esbaldar no seu vício.
Os nove minutos voaram. Meu ônibus chegou. Peguei a condução.
Acomodei minha frustração na cozinha, como de costume.
Enfiei os fones até o âmago dos meus ouvidos, tratei de caçar Orbital e tentei esquecer a cagada que eu havia feito.
Acho que perdi cinquenta lovs.
* * *
Oito da matina. Lá estava eu, largado, seguindo minha rotina infame.
Santa Sexta-feira. Ufa!
Premiado com meio expediente, eu ensaiava a ideia de assistir algum filme em cartaz, no final da tarde.
Adele bajulava meu princípio vital, quando fui sacudido por um branquelo trajando um conjunto de tecido bambo não estranho, emanando um cheiro de rua também conhecido.
“Eu não tenho dinheiro”, rosnei inquieto, ríspido e puto por ter sido incomodado durante minha meditação popínica.
“Aqui está o seu dinheiro”, bramiu Varapau, num barítono impressionante.
Demorou alguns segundos para que eu arrumasse os acontecimentos na minha cachola sonolenta.
Sim, é verdade. Era ele!
O tal cara para quem eu havia adiantado uma grana há dois dias e que eu jurava de dedinhos cruzados que jamais reaveria meu suado dinheirinho.
Fiquei beterraba, sem graça, sem ação!
O airoso Branco, livre daquela barbona assustadora, chacoalhou as notas no ar, ambos em triunfo. Logo a seguir, ele depositou sobre minhas mãos ressabiadas duas folhas de dez e uma de cinco. Eu não sabia como agir. Apanhei as tiras amarrotadas de valor infiel e enfiei tudo no bolso de trás do meu uniforme apertado.
Ele pediu licença, esparramando seu esqueleto próximo ao meu assombro. Jogou sobre minha panguice uma bem-vinda gargalhada repleta de dentes bem alinhados, recobertos de um branco improvável, onde a perfeição física só não era absoluta por causa da ausência de algumas pérolas mais ao fundo; detalhe que não ofuscava o tesão daquele apoteótico sorriso de linhagem adolescente.
“Com a quantia que você me liberou, pude tomar um banho decente, fazer a barba e comprar coisas para comer durante uma semana inteira!”, confidenciou-me o rapaz, todo serelepe.
Um gato sem botas havia devorado minha língua.
Eu continuava me sentindo um albino pimentão estrábico, desorientado, com imensa vergonha por ter julgado uma pessoa sem ao menos proporcionar a mim-eu-mesmo a oportunidade de conhecê-la o mínimo do mínimo aceitável.
“Seu ônibus está chegando”, o mendigato alertou, apontando para o coletivo amarelo que se aproximava do terceiro ponto.
Subi petrificado, onde apenas um “muito obrigado” tosco vagava ao redor dos meus ouvidos toscos parte II, agora plugados no Curt Smith.
Oh, lágrimas. Oh, medo. Oh, incompreensão!
Continuei embosteado em remorso durante o médio trajeto.
Beliscando meu traseiro, remexi as notas no interior do bolso esquerdo, jurando que entregaria ao rapaz o restante do dinheiro numa vindoura oportunidade.
Mas, espere um momento: como ele sabia qual era a minha linha?
* * *
Na minha visão, um domingo nebuloso era um convite para um aprazível passeio a pé pela ilha. Com a ausência do Rei a alfinetar minha careca, que alívio andar pelas ruas sem boné e sem um quilo de protetor solar a abrilhantar meu caótico aeroporto nacional de mosquitos dengosos.
Depositei minha carência num banco de pedra próximo ao parquinho localizado bem na entrada do Parque da Paz, onde Crianças barulhentas e Responsáveis temerosos digladiavam suas personalidades entre gangorras, escorregadores e balanças multicoloridas carregadas de estampas floridas.
Gosto de apreciar pais bobocas e capetinhas ingênuos. Diante da algazarra, recordo que em tempo algum tive um pai presente e jamais fui um garoto insuportável.
A verdade é que eu não gozei do que era rotulada “uma infância ideal”.
Pulemos tal parte, senão começo a invocar saudades da minha mãe.
Longe de traumas, a visão de famílias comercial-de-margarina até que me conforta.
Ah, o meu sonho secreto? Merecer o direito de constituir uma harmoniosa parceria com um companheiro sensível e me tornar o segundo pai maravilhoso para um pitico alheio a fomentar mil alegrias em nossa existência.
Comprei um picolé de limão de um velhinho muito simpático. Retornei minhas pernadas pela trilha que corta a compacta floresta, caminhando sem um paradeiro definido.
Quando resolvi mudar a seleção de músicas, deixando Alanis de lado e partindo para Grace Jones, levei um baita choque – de palpável alegria e denso espanto – ao notar Mancha Vermelha cruzar meu castanho olhar incrédulo.
Bendito moletom judiado!
Ele foi materializado do Nada, sentou num toco de árvore transformado em banco rústico e abriu um saco de papel amarfanhado, retirando gorduras e uma garrafinha contendo uma bebida carmim, que eu apostei ser um vinho de penúltima qualidade.
Na minha cabeça-preconceito, mendigos se embriagam para fugir do desprezo dos Certinhos e para amenizar as dores de uma escolha errante, além de abater o frio em seus ossos durante as madrugadas infinitas.
Aproximei minha ansiedade de mansinho, tentando em vão disfarçar a histeria inconsciente pelo reencontro.
“Oi”, murmurei, louco de vontade de abraçá-lo pelas costas.
“Oi. Que bom te ver. Sente-se. Quer uma coxinha?”
O mesmo sorriso, o mesmo jeito de moleque, aquele par de joias azuis mais lindo do...
Meu deus, que olhar era aquele?
Como num efeito-róliude, uma fresta de luz nívea abriu caminho entre nuvens carregadas num degradê chumbo e âmbar, chapando de vez aquele rosto sobrenatural.
Era como se o povo lá de cima me enviasse um sinal do tipo: “ôôô seu paquiderme, acorda, o sulista vale qualquer investimento!”.
Eu estava jubiloso, encantado, esperançoso!
Procurei outro toco para acomodar minha ansiedade.
Agradeci a educada oferta, mas como não permito que nada de carne invada meu interior (pelo menos no que se refere ao alimento), preferi só apreciar Transparente degustar sua refeição gordurenta.
“Gastei meus últimos tostões. Veja!”, Azul apontou para o interior do saco pardo, onde encarei meia dúzia de minúsculos salgados variados, de atributos questionáveis.
“Você acredita que aqui está investido o restante daquele seu dinheiro? Muito, muito, muito obrigado. Você foi um assassino eficaz. Matou minhas fomes!”
Voltei a travestir o Pimentão Vermelho, transfigurado em vergonhas.
Havia tantas desculpas para declarar. Eu matutava um jeito delicado de granjear aquela amizade, procurando não transparecer minha ignorância ao lidar com uma situação megainusitada para mim.
“Olha, vou ser di... direto”, eu gaguejei, tentando medir palavras.
“Eu achei que você ia pegar meu dinheiro e se foder no veneno. Mas, pelo visto, você não curte droga, não é mesmo? Talvez um vinhozinho...”, disparei meu absurdo julgamento, afundando em gafes e mais gafes, ladeado pelo cretino Preconceito.
“Restos de uma Fanta... Uva”, ele afirmou com uma tranquilidade insuportável, me oferecendo o conteúdo da garrafa sem rótulo.
“Eu não ingiro nada de álcool”, Azul destilou sarcasmo, rindo e se divertindo, só para me diminuir mais um pouquinho.
Se o chão não fosse tão teso, eu juro que ia cavar um buraco e enfiar minha cabeça a onze palmos abaixo dos nossos pés. Meu lastimável comportamento foi além do aceitável. Agi como um bacharel em Idiotice!
“Está quente, quase sem gás. Quer um pouco? Assim você elimina todas as suspeitas”, chocalhou o pobretão diante do meu décimo deslize.
Perante aquele azul infinito emoldurado num rosto brutalizado pelo tempo, porém agraciado pela enorme vontade de viver, aceitei o frasco, sorvendo um ligeiro gole do refrigerante aquentado, um verdadeiro purgante divino bem apropriado para a ocasião.
“Não quer mesmo uma coxinha? Talvez uma salsicha empanada?”, provocou Azul, quase enfiando um salgado oleoso na minha fuça, inflamando meu olfato, se divertindo com minha cara “de fresca” a exalar um nojo autêntico, dramático, hilário.
“Prazer. Sid”, eu disse, ansioso para não perder o diálogo.
“Prazer...”, ele respondeu, limpando a mão esquerda no tecido rugoso que cobria pernas tentadoras. Apertou minha contorcida mão direita num equilíbrio perfeito entre virilidade e sensibilidade.
Fiquei longo tempo a contemplar meu Cavaleiro Errático durante seu banquete. Mesmo faminto, ele demonstrava modos civilizados ao devorar sua refeição.
Aceitei que ele não era um Selvagem, um drogadito expurgado da sociedade, vagando no limbo da indiferença, no submundo da ignorância.
“Conte-me sua história, por favor...”, pedi, com ternura.
“Não há muito para contar”, pigarreou meu Lorde, limpando os lábios rosados com um resto de guardanapo de papel, modificando o semblante de Barriga Cheia para Maior Abandonado.
“Estou com trinta. Perdi meu pai e minha mãe aos vinte e dois. O casal regressava de uma partida de bingo realizada na casa de amigos, quando foram liquidados por balas perdidas presenteadas por policiais numa injusta perseguição a bandidos que, no final, não eram marginais porra nenhuma, na zona sul daquela merda de Cidade Cinzenta.
“Viver com meu irmão estava fora de cogitação. Deixei a casa para ele e a vagabunda da mulher dele. Sumi do meu emprego. Picotei meus documentos. Doei minhas Ellus, meus Casios e todos os meus pares de Converse. Também queimei todas as fotos. Liquidei o passado. Escolhi Lovland, a terra dos Solitários. Ganhei as ruas de areia. Passo bom tempo a ler jornais e revistas de ontem, caminhar sem metas e mendigar comida. É a realidade que escolhi pra mim”, metralhou Azul, jogando garganta abaixo o resto da Fanta sabor Cagante.
Fiquei pasmo diante de tanta sinceridade e praticidade. Não havia mais nada a temer, julgar, questionar. Corria em minhas veias o impulso de tomá-lo em meus braços, implorar o seu amor, desejando fundir e foder meu corpo com o dele ali mesmo, no meio do verde, atrás dos decanos tocos marrons abençoados pelo céu carregado em anis e cinza.
“E a sua história?”, desafiou Azul, roçando de leve nas minhas coxas, brincando com os dedos sobre meus pelos marrons, acordando-me do transe, despertando com sua púbere atitude um calor imediato a se apossar do meu corpo careta-carente.
“Também órfão de pai e mãe. Desencarnados com diferença de poucos anos. Câncer. Uma tradição na nossa família. Sou filho único. Ainda moro na casa deixada pelos meus pais. Nunca curti meus estudos. Sempre achei escola um porre, um ambiente muito desestimulante. Preferi ser educado pela Vida. Trabalho como repositor de mercadorias numa das lojinhas do velho Kneip, lá do outro lado da ilha. Estou solteiro já nem sei mais por quanto tempo. Sou gay. Levo uma vida patética, certinha, sem novidades. Sou um conformado. Acho que é só isso...”, relutei, ocultando a vontade de expor mais detalhes soníferos da minha insossa existência.
“Vamos dar uma volta?”, disse Azul buscando minha mão; seu ato brioso a elevar meu corpo suando em bicas glaciais.
“Espero que você não sinta vergonha de desfilar ao lado de um mendigo profissional”, desafiou o Príncipe.
“Foda-se o Mundo!”, repliquei de peito aberto, envolto por um gritinho descolado.
Conquistei Amizade. É o primeiro passo.
* * *
Há lugares belíssimos a explorar no pedaço de mata nativa que sobrara em Lovland, mesmo debaixo de um domingo doido que ainda prometia despencar sobre nossas cabeças. Nem o céu quase sem cor, cantando tempestade, nem raros olhares de reprovação direcionados ao casal excêntrico que desfilava nas frondosas trilhas verdejantes... nada era capaz de amainar o orgulhoso sorriso colorido a poc-poc-quear em nossos semblantes rejuvenescidos.
Papeávamos sobre futilidades. Discutíamos os mais variados assuntos. Brigávamos por bobagens, onde caras feias eram desmanchadas de imediato no meio de abraços fraternais, deliciosos, restauradores.
Nem o carregado cheiro ácido que emanava daquele velho moletom colorado dispunha de força suficiente para me afastar das investidas do Magnífico.
Era perceptível que Azul estava adorando a presença de alguém que o aceitou e encarou a disposição de trocar experiências e somar alegrias outrora perdidas.
Quando indaguei sobre onde ele morava ou passava as noites, meu novo amigo respondeu que seu grande barato era pesquisar locais abandonados ainda não reivindicados pelos Droganildos.
Não refleti duas vezes. O homem capaz de eliminar sua identidade social fora convidado a passar aquela noite na minha casa.
Nada temi. Mantive consciência dos possíveis riscos que eu corria, caso Azul estivesse mentindo.
Invoquei meu mantra: “Cada coito com a sua lucidez”.
Joguei a moeda para o alto. Escolhi “Cara”. Quando virei o metal imaginário nas costas da minha mão sonhadora, fui agraciado com a sorte de um semblante a iluminar meu futuro.
* * *
Na antiga residência há dois banheiros.
Enquanto Azul se lavava no andar de baixo, eu me preparava na suíte presidencial.
Temeroso por ter enfiado um desconhecido dentro de casa, meu banho foi mais ligeiro do que o usual. Após enxugar minha inquietação pela metade, vesti um ancestral agasalho confortável e desci a fim de preparar algo substancioso para o nosso jantar.
Deixei algumas roupas limpas à disposição de Azul. Que bálsamo ouvir sua voz em falsete a imitar Tina Turner, enquanto arrematava sua íntima purificação.
* * *
A visão de um anjo asseado, barbeado, luminescente, trajando minha velha bermuda cáqui e a adorada Hering branca de outras guerras, desnorteou todos os meus sentidos.
Parei de temperar o molho de tomates. Fiquei embasbacado ao ver Azul secando os cabelos com as pontas dos dedos finos e tonteado ao apreciar aquela beleza bucólica emoldurada pelo batente que separava a Cozinha da Copa.
Ele delineava o volume e o caimento das madeixas douradas que ardiam em luz própria, manipuladas por mãos rústicas, as unhas de pontas esmigalhadas, todo conjunto sendo movimentado por braços esbranquiçados cobertos por uma densa camada de pelos fulvos; fios que também abrilhantavam pernas afiladas, porém robustas e magicamente torneadas, apoiadas sobre pés largos e sensuais, apesar dos calcanhares dilacerados pelas agruras de um voluntário caminho sem voltas.
“Santo banho”, ele disse, procurando um lugar para relaxar.
“Santo deus!”, respondi, não querendo acreditar que um sapo era capaz de virar um príncipe mais do que encantado. E sem o derradeiro beijo!
“O que temos para comer?”, Azul cantarolou, esfregando as mãos rosáceas nas coxas peludas por cima do tecido de brim, enquanto aprumava sua virilidade sobre um banquinho de madeira.
“Eeeuuuu!”, respondi de supetão, chumbado com aquela visão-caravaggio.
“Quero dizer... eu... tô... fazendo macarrão!”
* * *
A serenidade do nosso jantar foi abençoada pela Senhora Magia, onde suas asas purpurínicas vertiam uma brisa besuntada em sândalo e afáveis expectativas.
Ensinei um tímido Azul a apreciar o vinho dispendioso que eu levei um tempão para pagar. Durante o teatro de Baco, eu quis acreditar que fui agraciado com um momento sublime que me permitia ostentar aquela garrafa australiana.
A noite era – com toda, toda, toda certeza! – uma ocasião acima do extraordinário.
Ocasião. Amo essa palavra.
Oh, sou um Bocó Ziemann!
* * *
Azul fez questão de me ajudar com a louça após o jantar.
“Eu lavo. Você seca. E guarda!”, ele ordenou, sempre desfilando seu perolado sorriso incompleto, hipnótico, encantador.
Que eu estava de quatro por ele? Era mais do que evidente!
Pouco me afetava se dentro de cinco minutos, num ato mecânico, eu engolisse aquele báculo anônimo ou cavalgasse no seu colo sulista feito uma ungida vaca profana, imaginando que ele gozasse bem rápido e logo em seguida me desse um terrível “valeu... a gente se vê” cortante.
Havia fragmentos de generoso magnetismo no ar.
Nossos anjos de guarda até que resolveram dar uma bela forcinha: uma chuva torrencial agasalhou Lovland. Escolhemos o tapete da sala para jogar nossos corpos empanturrados de massa e vinho e assim apreciar, de olhos bem fechados, a Oitava Sinfonia das Gotas Errantes. Anjo dele e anjo meu deram um jeito de foder gostoso num dos esconderijos da centenária morada.
Eu e Azul meditávamos no tantra enquanto curtíamos o rouco som do Vento, os agudos da Chuva e os tenores do Universo. A trilha sonora ideal para o nosso prazer.
“Você quer?”, ele ciciou, buscando meu traseiro num aconchego desesperado.
“Eu preciso”, suspirei, virando meu corpo em chamas para o encaixe convidativo.
* * *
“Quando te procurei naquela manhã, uma parte de mim só idealizava encontrar sua compaixão, arrumando uns trocados para que eu pudesse realmente comer algo”, segredou Azul, entre beijos e afagos suados.
“E quando você fez o teste, dando-me aquela quantia, corri para trocar o dinheiro, pois queria lhe trazer o combinado o mais rápido possível, antes que você pegasse sua condução.”
Meu Carinhoso tentava explicar a questão: como você sabia qual era o meu ônibus, porém eu não o deixava explanar mais nada, porque meu interesse era focado somente no enroscar das nossas línguas exaltadas.
“Ao retornar para o ponto, você havia embarcado e não me viu acenar com as notas na mão”, riu Azul, recordando a cena folhetim.
“Todo esbaforido, eu quase cometi um velhocídio ao perguntar para um vovozinho que linha era aquela que acabara de partir. Ele imaginou que eu fosse assaltá-lo, ao perceber as cédulas amarrotadas bem sufocadas nas laterais da minha mão imunda!”, gargalhou o loiro, sôfrego, destilando certo pesar pela pessoa que ele havia se tornado perante a tal da Sociedade.
Abracei Rapazola com energia e nossas varas voltaram a se raspar, ganhando tentadora rigidez, numa onda de provocações arrebatadoras.
“Sou grato ao que você fez por mim. Nunca imaginei que tudo rolasse do jeito que rolou. O dinheiro. A confiança. O teste...”, ele riu.
“É incrível. Eu estou aqui porque senti desejo por você desde o primeiro segundo após o terceiro olhar não correspondido. Eu não podia desistir. Coberto em dúvidas e temores, eu mantive a consciência de que as chances de você ir pra cama comigo eram mais do que remotas, devido ao meu estad...”, balbuciou Azul, envergonhado pela audaciosa atitude tomada para chegar até minha pessoa.
Eu não queria mais explicações. Preferia um monólogo na forma de beijos suaves e selvagens mordidas na minha nuca.
Foi assim que descobri que meu Nobre já havia me sondado no mesmo bat-ponto, no regular bat-horário, na tocante bambee melancolia.
Azul penou para encontrar um jeito de não ser escorraçado por mim. Ele confessou que ficou radiante quando tivemos a ventura do reencontro no Parque da Paz, certamente por obra e graça dos nossos anjinhos peraltas.
Sua sorte havia mudado. A minha também!
* * *
No segundo ato, fizemos um amor bonançoso ao sabor do vento, da chuva e da Natalie Imbruglia. Selávamos a união de espíritos isentos de pressa, roteiros e obrigações de qualquer espécie. Azul me roubou todos os beijos e me presenteou com as mais voluptuosas lambidas no meu pescoço, rabo, cacete, vãos dos dedos dos pés e das mãos.
Tudo nessa ordem. Tudo fora da Ordem.
Inconsciente, insistindo com meus exames medíocres, tentei forçar meu Senhor a alancear-me sem nenhuma proteção artificial. O pedido foi negado de imediato.
Adorei a responsabilidade e o senso do Correto. Suspendi em definitivo minhas inseguranças sem um pingo de cabimento. Azul havia me dado provas suficientes do seu caráter. Confiança. É o segundo estágio.
* * *
Santo Fogo Supremo.
Meu rabo sibilava de tanta alegria. Havia séculos que uma vara mágica tão inquietante não premiava maravilhas na gruta do meu paraíso.
Dei, dei, dei feito um tresvariado.
Meu Azul, garanhão de primeira grandeza, parecia ter guardado toda sua energia ao nosso fantástico encontro premeditado nas estrelas.
Comi, comi, comi feito um brucutu acéfalo.
Meu Azul, alquimista sensual, soube metamorfosear a frágil libélula que eu costumava assumir numa segunda personalidade íntima.
Sua paciente sabedoria em conduzir meu sexo ao Novo expôs a atividade vulcânica que jamais imaginei dominar no centro das minhas coxas.
Eu não era mais virgem no Ativo.
Sinfonia das águas, corpos-carpetes riscados sobre o chão de tacos, sexo magistral, fodas divinas, anjos e homens se consumindo a valer.
Tudo isso bem marinado na mística melodia de Matt Alber, urso sideral.
O sincronismo da nossa dança contemporânea durante o entrelace dos nossos corpos e espíritos afinados fez com que nos entregássemos à satisfação dos nossos desígnios.
Precisávamos um do outro.
Naquela hora, naquele lugar, naquela situação.
* * *
Acordamos um tanto descadeirados.
Era antemanhã. Acho que sonhei que um astro pouco disposto pincelava o firmamento em azul e amarelo através dos seus primeiros tentáculos avermelhados.
Deixei meu Campeão dormir mais um pouco. Ele merecia o sagrado repouso.
Tomei um banho e desci para a cozinha, já em trajes de labuta.
Coloquei água para esquentar, enquanto preparava a mesa para um agradável e substancial café da manhã.
Santa Cher encantava na estação de rádio local, bramindo seu pop delicioso a chacoalhar (mais?) minhas cadeiras.
Nada melhor do que abrir o dia acreditando no Amor.
Azul surgiu como uma visão linear de um quadro de Pollock. No corpo esguio, a inseparável e fedida blusa de moletom acompanhava os trapos antigos.
Espantando, sem querer aceitar o inevitável, convidei Inquieto a tomar pelo menos um pouco de café. Seguramos a mesma caneca e encaramos nossos destinos. Olhos cansados inseridos em olhares envergonhados.
“Eu preciso regressar ao meu mundo. A rua. Aquilo que eu escolhi. Não peço que você me compreenda. Mas, por favor, deixe a porta aberta, caso um dia eu decida voltar.”
Encarei meu Amante no fundo das suas contas cristalinas, procurando encontrar motivos concretos para toda renúncia.
Numa cerimônia de improviso, sorvemos o negro líquido afogueado, um gole depois do outro, sem dar trela ao Tempo. Mareados, uma vez ele, outra vez eu, beijávamos a caneca de ágata.
O calor emanado não emitia traços incômodos que poderiam ferir nossos lábios. Um efeito que não se comparava à quentura que invadia nossas almas ferreteadas com mais uma separação.
Meu olhar castanho, arroxeado, sempre atento, não desviava um milésimo de segundo sequer daquele olhar cerúleo.
“Mereço o último beijo?”, perguntei, em lábios difusos.
“Agora não”, Azul retrucou, provocador. Captei seu instinto malandro.
Cachorro beliscou meus lábios entre seus dentes, descendo sua boca na direção dos meus mamilos rígidos, congelados no inferno pagão. Mordeu em boa demora os faróis sob minha camiseta em frangalhos.
Azul continuou sua trajetória, molhando meu umbigo, abrindo minha calça, abocanhando meu Cadete preparado para a penúltima batalha.
Ele me chupou em desespero, preocupado apenas com o meu deleite. Engolindo, lambendo, mordendo, sugando, beijando meu cajado, meu Varão me proporcionava algo que eu não sabia ser possível degustar em tamanho privilégio.
Morte ao Bocó. Agora eu era o Macho, o Dominador, o Fodão. Que delícia!
Não deu outra. Esporrei um caudaloso riacho translúcido no febril rosto escarlate do meu Azul ofegante.
Ele não demonstrou preocupação em limpar-se. Levantou-se da posição submissa, buscando minha boca seca, meus lábios rachados, minha língua demente que precisava sentir sua lança superior mais uma vez.
Meu sabor misturado com seu gosto, tudo mesclado na delicadeza e na selvageria de um beijo viril, único, inesquecível.
“Eu preciso ir. Tente entender.”
“Sim. Eu compreendo. Pelo menos eu acho que consigo aceitar. Pode ir. Você sabe todos os caminhos. Estou confuso. Tenho que me recompor. Preciso ficar sozinho alguns minutos, antes de sair para trabalhar.”
* * *
Quando não me encontro comigo mesmo, torno-me radical. Mudo minha rotina em novecentos graus quando perco alguém. Evito a todo custo encontrar fantasmas do meu passado: pessoas que marcaram minha existência de forma negativa ou incompreendida.
Com relação a Azul não foi diferente.
Pedi transferência ao Sr. Kneip. Fui mandando para a quarta filial que ficava no sentido oposto ao trajeto que eu fazia todos os dias, nos últimos trocentos anos.
Bem pra lá da ponte, eu amargava meu vazio repleto de inerências nos arredores da Cidade Rançosa.
Até meus horários consegui modificar. Nos fins de semana, nada mais de passeios pelo Parque da Paz. Resolvi andar de bicicleta em regiões que Mendigo certamente não teria acesso. Não cruzei mais com Azul e seu moletom acerejado nas beiradas da minha ilha paradisíaca.
* * *
Vinte oito de outubro. Dia de levar flores.
O sábado premiava minha calvície parcial com um verão inclemente. De boné e óculos escuros, fedendo uma nova versão de filtro solar “sem cheiro”, cumpri minhas obrigações familiares, depositando um frugal arranjo de flores brancas sobre o túmulo dos meus pais.
Quando terminei as orações e contive o choro de saudades da minha mãe, o roteiro imutável consistia em voltar para casa e afogar minhas lamúrias e solidão na companhia certeira de uma oitava garrafa de Budweiser.
Minha bicicleta parecia rodar com aros de chumbo, onde cada pedalada estropiava em demasia meu corpo sonolento, isento de vidas.
Abrir o portão de ferro (bem) fodido foi um parto. Encarei o mesmo sacrifício quando tentei destravar a porta de maciça madeira sem leis.
Não adianta. Sempre que visito meus pais, eu preciso embriagar a alma para suportar as amarras do Vazio.
A bike repicou lá fora, esquartejada no gramado. Despenquei no sofá, sem arquitetar hora exata para ascender minha ruína, nem querer me atinar para o Nada.
Chorei. Bebi. Gritei. Bebi. Xinguei. Bebi.
Apaguei.
* * *
Não. Aquilo não era uma alucinação.
Azul estava em pé, escorado no batente, encarando com formidável doçura o resto patético de mim-eu-mesmo desaprumado no sofá, fedendo a álcool e desonra.
“Você deixou a porta aberta”, Azul reiterou nossa fé.
Eu já nem sabia mais qual era a porta que ele se referia.
“Eu preciso recomeçar”, ele disse, eu disse, nós dissemos.
Desistimos das palavras. Concordamos com um oportuno abraço.
A perfeição da nossa nova dança contemporânea durante o entrelace dos nossos corpos e espíritos apaixonados fez com que nos entregássemos à satisfação plena dos nossos desígnios.
Precisávamos um do outro.
Naquela hora, naquele lugar, naquela situação.
De uma vez por todas!
Atualizado em: Qua 19 Abr 2023