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Violina
Terça-feira é dia de caminhada. Cumpro o ritual dos meditativos passos arrastados há sete anos. Mesmo um pouco indisposto, permaneci fiel à minha rotina naquela incomum manhã infernal, amuado na Cidade das Cinzas. Do meu apartamento até o Grande Parque não levo mais do que cinco minutos.
Após os exercícios de alongamento, uma corrida leve na amplidão daquele verde sem fim e a inevitável troca de olhares com outros corredores bem comestíveis, busquei um lugar à sombra para descansar meu desnivelado corpo aveludado.
O sol das dez já demarcava a pele de duas senhorinhas que caminhavam e debatiam, em voz lírica, algumas liberdades sensuais praticadas por um grupo colorido de casais pelúnicos que descansava embaixo de um decano ipê-amarelo, florido nesta época do ano.
Do desproporcional rádio de um dos rapazes, clássicos do Prefab Sprout eram pincelados sobre o gramado. Que agradável sentir a nostalgia estampada em seus rostos salpicados de alegrias passageiras.
No mesmo grupo, afastado em centímetros privados, um esguio jovem descolorido imitava os trejeitos de Madonna em “Vogue”, dublando na imaginação a canção que escapava dos seus fones de ouvido.
Alguns cadetes que realizavam suas corridinhas matinais reduziam o ritmo de modo a apreciar o espetáculo proporcionado pelo estonteante moreno.
Beleza estética e dom artístico conviviam em harmonia naquele micromundo. Eu apreciava a tolerância dos seres que se divertiam com a arte exposta num pedaço de paraíso.
* * *
Resolvi caminhar um pouco em volta do lago. Havia um complexo chafariz bem no centro do parque. Os jatos de água carregavam deliciosas lembranças da infância, quando meu pai costumava marchar ao meu lado naquele mesmo local.
Ali costumávamos passar horas conversando sobre os assuntos da atual existência. Gotículas trazidas pelo vento umedeciam faces coradas, purificando o nosso amor. Amor de pai e filho. Amizade entre companheiros leais e verdadeiros.
Hoje eu não sentia o ar em gracioso movimento. Pequenas gotas formaram-se ao redor dos meus olhos bêbados. Espantei as lágrimas da eterna saudade e tratei de apressar o passo para chegar ao meu segundo local preferido no Verde Público.
A paineira ainda proporcionava sombra abundante. Sentei-me no gramado e recostei meus ossos no caule gasto da velha amiga, onde passei a observar algumas crianças e seus papais brincarem na beira do lago.
Em outro ângulo, pude invejar adolescentes namorando sob as bênçãos do céu deslumbrante. A maioria certamente havia cabulado as aulas de modo a desfrutar as delícias de um prazer inocente.
Primeiros beijos, primeiros toques, primeiro “eu te amo”.
“Como é ingênua e bela essa fase da nossa existência”, meditei.
O calor do Horário de Verão impunha sua presença marcante. Foi um choque quando meu olhar sonolento encontrou um alienígena escarrapachado a poucos metros de onde eu estava.
As pernas sem cor definida, cobertas de pelos ralos, meio acastanhados, destoavam da bermuda e do blusão de tecido escuro que não combinavam em nada com a temperatura elevada.
Um capuz e óculos espelhados – nada discretos – completavam o paramento. O reluzente par de Adidas calçava pés miúdos, encobertos por branquíssimas meias da mesma marca.
Minha sensação de desconforto aumentou exponencialmente ao presenciar aquela cena galáctica. O rapaz encarava o pacífico lago, ora descia a cabeça até o queixo quase a tocar o peito rechonchudo, quando sentia a presença de algum estranho a atravessar sua periferia não demarcada.
Presenciei seu desconforto durante dez tortuosos minutos. Não resisti.
Meu coração implorava: “Vá conversar com o sujeito, porra!”.
Eu dei o primeiro passo.
“Tudo bem com você?”, perguntei ao Alienígena, sentando-me suavemente ao seu lado, temendo que ele volitasse em disparada.
Não houve resposta. Somente o som de um choro contido emanava daqueles músculos retesados, corpo meio fofinho, carregado de culpas e excessos.
“Moa. É o meu nome”, estendi a mão direita para um possível cumprimento.
“Qual é a sua graça?”, perguntei com sincera curiosidade.
Um choro caipira aumentou sua potência, impedindo que palavras saíssem da boca tímida do desconjuntado fofuxo.
Recolhi minha mão. Ficamos por alguns instantes sem trocar nenhuma sílaba.
Observávamos as águas serenas do lago esmeralda. Uma brisa começou a acariciar nossas dúvidas. Sentíamos o frescor da esperança que vinha embalado nos braços dum vento entorpecido.
“Wallace... com dois ‘L’”, o sujeito decidiu abrir a boca.
“Você quer realmente conversar comigo?”, as palavras traíam um tom infantil, desesperadas por atenção.
“Você não está derretendo debaixo dessa blusa horrenda?”, minha sinceridade fez surgir um tímido sorriso naquele rosto contrariado, coberto por um fino cavanhaque muito bem aparado.
“Ela me custou uma fortuna. Foi a primeira coisa que eu encontrei ao abrir minha mala”, sua timidez era comovente.
“Eu estou hospedado num hotel aqui perto”, Wallace enxugou as lágrimas, apontando para o Leste.
Ele continuava a não olhar diretamente para mim, mantendo-se confuso e surpreso em se abrir para um total estranho.
Eu não consigo travar um diálogo com ninguém que, no momento do papo, permaneça de óculos escuros. Preciso sentir a pessoa por inteiro, através do seu olhar.
Pedi delicadamente para que Wallace-com-dois-Eles retirasse seu escudo. Ele relutou por alguns instantes. Notei seu receio e um tremendo incômodo para se revelar ao desconhecido.
Wallace não era um “Wallace qualquer”. Sim, eu sabia que aquele nome era falso – ou melhor... verdadeiro? –, além de não combinar com seu disfarce, diga-se de passagem.
Confirmei sua artística identidade quando a proteção espelhada que cobria seu olhar mareado foi finalmente removida.
Mantive a discrição. Não houve nenhuma reação de minha parte que pudesse demonstrar minha surpresa possivelmente histérica.
“Assim está bem melhor. E aí, qual o motivo de tanto sofrimento?”, toquei de leve em seu braço-camarão, enquanto ele arregaçava a manga e guardava os óculos num dos bolsos da blusa importada de Plutão.
“Agora tire esse capuz, quero ver seu rosto por inteiro”, minhas palavras surtiram o efeito de uma ordem.
Wallace sentiu-se novamente receoso em abandonar sua máscara. Porém, obedeceu ao meu pedido sem maiores comentários.
O capuz veio abaixo ao mesmo tempo em que a cabeça desceu como uma avestruz assustada, pronta para ser enterrada no gramado flexível.
“Você quer responder minha pergunta?”, tentei ser o mais complacente possível, pois qualquer movimento em falso poderia assustá-lo e o faria correr para o quarto impessoal.
“Pode confiar em mim”, disse-lhe, enquanto acariciava com fraternal carinho sua mão esquerda que transpirava litros de desânimo. Trêmula, gélida, obscura.
Wallace percebeu que minha atitude era sincera. Voltamos a apreciar a mansidão do lago.
O artista levou um baita susto com um grupo de garotas que passou bem longe de onde estávamos. Percebi que a sinfonia galhofa das adolescentes o deixava nervoso.
Agora eu compreendia o motivo de tanta camuflagem.
“Fique tranquilo, ‘Wall’. Elas já foram embora e ninguém percebeu quem é você”, minha mão permanecia segurando a sua, na intenção de protegê-lo do mundo real.
“Então... você sabe quem eu sou? Ah, é claro que sabe!”, um misto de decepção, alegria e medo corroíam sua afirmação.
“Você não vai me usar? Não vai querer algo de mim, né?”, a postura infantil voltava a assumir sua frágil personalidade.
Eu não disse nada, pois meu olhar confirmava meu caráter: o Sr. Sertanejo podia contar com minha discrição.
Wallace respirou fundo, confiando no meu afago de irmão.
Uma nuvem cobriu-nos por inteiro, juntando-se à sombra da amiga paineira. Ao longe víamos o chafariz sendo desligado pelos circuitos automáticos que controlavam o gracioso movimento das águas.
Agora não havia ninguém por perto, todos espantados pelo sol errante. Wallace contou-me sua história, entre soluços e lágrimas perfurantes:
“Meu produtor me abandonou no último final de semana. Agora... em definitivo. Estávamos juntos há tanto, tanto tempo! Sabe, graças a ele hoje sou o que sou. É claro que devo muito ao meu irm... parceiro musical, sem o qual eu jamais teria chegado ao patamar artístico e financeiro em que me encontro atualmente.
“Por causa do meu trabalho, fui praticamente obrigado a liquidar meus sentimentos. Até um filho eu tive que providenciar! Não sou o único, você sabe. Aquele apresentador que eu me recuso a dizer o nome – eu o odeio! – fez filho para manter a ilusão de suas fãs em relação à sua masculinidade. Meu Deus, como as mulheres adoram permanecer tão idiotas?
“Sou rico. Sou famoso. Eu e minha família temos tudo o que alguém pode desejar nessa vida. Só que a fama me esgota. Não sei mais o que é curtir um único minuto de liberdade. Nem sei como posso confiar a minha vida a você agora. Sinto-me tão confuso!”
Wallace, por instinto de sobrevivência, colocou novamente o capuz ao pressentir outro grupo de pessoas passarem apressadas a um milhão de passos de onde repousávamos.
Ninguém dava atenção para a nossa presença naquele parque.
Os corredores e caminhantes tinham seus próprios temores e neuras cravadas em suas mentes embaladas ao som de seus emepetrês. A imensidão e o verde funcionavam como uma discreta e necessária válvula de escape.
Minhas mãos voltaram a tocar as mãos do Celebee. Eu não estava nem aí para o que ele era profissionalmente. A minha preocupação era com a pessoa por trás do mito.
Para mim, a vida era tão simples de ser vivida. Minha homossexualidade, aceita e resolvida desde os treze anos, jamais me dera trabalho algum.
Era triste constatar que carinhas como Wallace viviam em uma redoma de vidro cercada por monitores a lançar-lhes imagens difusas patrocinadas por um mundo tão opressor.
Quando se vibra como se deve (e se tem o apoio necessário de seres com a mesma afinidade), como é fácil se assumir sem carregar culpa alguma e encontrar maneiras práticas de viver a homossexualidade e os sentimentos sem ter que dar satisfações a ninguém.
Agora eu era capaz de compreender a mensagem atrás de algumas de suas canções de sucesso. Devo confessar que até gosto de música sertaneja popular.
Wallace confirmou minhas suspeitas:
“A terceira música do nosso mais recente álbum foi composta pelo meu irmão – como todas as outras centenas, afinal –, baseada na minha história vivida com meu ex”, a emoção da perda recente provocou nova enxurrada de lágrimas gosmentas.
“Meu irmão só trocou o personagem masculino por um feminino... você sabe... aquela coisa melosa de sempre... é o que vende discos nessa merda de país”, ele desabafava, entre soluços empapados, de diminuta sonoridade.
“É tão chato constatar que ficamos ricos e famosos compondo músicas ‘dor-de-corno’ para a massa ignorante. Música popular? Talvez, mas sempre enaltecendo as agruras de um povo que não tem acesso a uma boa educação, saúde, entre tantas outras coisas”, o olhar se perdia no azul fulgurante.
“Sabe, Moa, eu acho minha arte tão hipócrita! Essa coisa de Baile e Cerveja e Pegação e Traição. O povo se gruda a qualquer coisa que amenize seu sofrimento. Nosso produto serve para camuflar as dificuldades da existência alheia. Ilusão que vende ilusão, nada mais.”
Mudando o lado do carinho, agora era Wallace que segurava firmemente a minha mão direita, como que a implorar que eu não fugisse dali e o abandonasse no meio do seu desabafo pessoal de uma filosofia requentada.
“Apesar de não ser um fã fervoroso do estilo, confesso que não acho as músicas tão ruins assim como você afirma. Pelo menos as antigas eram carregadas de fantástica poesia. Tudo bem que as letras atuais falam sempre do ‘amor de corno’, mas as melodias ainda são muito boas. Elas grudam na cachola da gente!”, a última frase foi dita com certo cinismo, porém, sem maldade.
“Tenho até um dos seus discos. Deve ser o álbum de... 1999?”, tentei remediar minha extrema sinceridade.
Ignorando meu comentário, Wallace inspirou o ar viçoso oferecido pela terça-feira de onze horas abafantes. Ele desandou a trinar como se estivesse num palanque. Respeitei seu desabafo vazio:
“Tenho vontade de jogar minha fama para o alto. Ir ao Fausto e, ao vivo, dizer tudo o que eu guardo aqui ó, bem no fundo do meu coração. Revelar para nossos milhares de fãs que lutem pelos seus sentimentos e seus sonhos. Dizem que sou mesquinho, avarento, e sei-lá-mais-o-que, mas carrego o desejo de usar minha fortuna em fundações que ajudem a educar o povo. Eu quero, eu preciso fazer tanta coisa. Mas falta-me a coragem e apoio. Sinto a necessidade de um amigo, um companheiro honesto e não aproveitador a me dirigir e caminhar do meu lado.”
As mãos golpearam o ar. O rostinho goiano bem corado ao dizer que sentia a falta de um verdadeiro amigo emocionou-me.
“Se você permitir, Wallace, eu gostaria de ao menos tentar ser seu amigo”, desloquei com delicadeza o seu capuz, enquanto sussurrava meu honesto anseio.
Trocamos olhares demorados.
Um desejo nasceu e o beijo poderia ser oficializado. Um beijo de amor fraterno.
De carências adormecidas de ambos os lados.
Mas o ato não ocorreu. Fora sufocado pelo bom senso. O lugar onde estávamos não nos permitia tamanha ousadia. Não por mim, mas por ele. Nunca se sabe quando um “paparrato” está de plantão atrás de uma moita qualquer, pronto para chantagear a vida privada de uma celebridade.
Senti que deveria protegê-lo. Recuei. Olhei para o lago. Não sei o motivo, mas lembrei de Diana, a princesa.
“Moa, o que você faz da vida?”, a voz rouca de Wallace despertou-me do torpor.
“Agora sou escritor”, eu disse, entre sorrisos.
“Digo ‘agora’, pois já fiz de tudo nessa existência... tudo sempre ligado ao universo da arte e da cultura”.
“Você escreve... romances?”, sua curiosidade infantil aliado ao seu rechonchudo rosto de moleque carente me induzia ao desejo de abraçá-lo durante horas e horas.
“Escrevo de tudo um pouco. Minha especialidade são os contos”, expliquei-lhe pausadamente.
“Meus textos são bem aceitos junto ao público gay e demais simpatizantes. Meu décimo conto mostra um amor diferente e um tantico polêmico, vivido entre pai e filho”, a empolgação pelo meu trabalho encheu-me de orgulho.
“Romance gay! Polêmico! Uau, que bacana! Adoro!!!”, a criança crescida queria saber mais.
“Prometa que vai autografar um exemplar especialmente para mim. Quero ler tudo que você lançar”, a ansiedade em ser apenas um simples tiete o fazia confundir o raciocínio.
“Sinto-me aliviado por ter encontrado alguém como você”, continuou Wallace, renovado por finalmente conseguir desabafar seu carma.
“Sei lá, mas você inspira confiança, me faz acreditar no bicho-homem. Humm, preciso fazer algo que é muito, muito difícil para mim... mas sinto que posso realmente confiar em você. Meu Deus, que loucura! Foda-se. Podemos trocar nossos números de telefone?”
Era a primeira vez que eu mantinha um contato direto com uma estrela nacional. Não dava para negar a “tentação” de possuir o número pessoal daquele artista famoso que escancarava seu coração e sua intimidade a um pelúnico Zé Ruela em ascensão.
Anotamos os números em nossos Nokias. Ele soltou uma gostosa gargalhada ao notar que eu havia digitado “FOFO” na minha agenda.
“Eu sempre quis ser um ‘fofo’ amado...”, ele sussurrou a si mesmo.
Novamente paramentado, com o capuz a cobrir-lhe a cabeça e os óculos espantosos a taparem boa parte do rosto febril, meu novo amigo – que mais parecia um besouro cibernético teleguiado –, levantou o corpo maciço, sacudindo a grama que havia grudado no seu belo traseiro.
“Eu preciso ir embora. Tenho uma passagem de som agora à tarde.”
Wallace estendeu sua mão. Segurei as pontas de dedos bem tratados, delicados e macios. De um salto mambembe, consegui me aprumar.
Em pé, nossos rostos quase colados, o cheiro de machos e o contato de peles despertas na libido inebriaram o desejo não mais oculto.
Foi inevitável um rápido “selinho”, seguido de um patético abraço.
Seu cavanhaque tocou de leve meu pescoço. Dois calafrios percorreram meu perispírito. Eu confirmei que nossas cartas estavam marcadas há muito tempo.
Eu queria fazer amor com aquele cantor.
“Acho melhor sairmos em separado”, eu disse a ele, frio, onde o instinto protetor voltava a tomar conta de mim-eu-mesmo.
“Posso lhe fazer um convite?”, novamente o rostinho meigo de fios ralos dominava minhas atenções.
Respondi com um sorriso.
Wallace tirou do bolso da bermuda um punhado de papéis um tanto pisoteados. Alisou-os com delicadeza. Separou quatro pedaços e presenteou-me as tiras em seguida. Aninhadas em minhas mãos-pedreiras, percebi que eram ingressos.
“Vamos iniciar nossa nova turnê nacional. Eu gostaria muito que você fosse assistir ao primeiro show. É estreia... você sabe. Eu queria sentir sua presença. Quem sabe eu te capto na plateia?”
Antes que eu pudesse agradecer aquele gesto, Wallace continuou, fechando minha mão em concha; os passaportes guardados na altura dos nossos corações:
“Se eu te encontrar no meio das histéricas, prometo que farei uma surpresa para você. Confie em mim.”
Não saíram palavras da minha boca, apenas frases carinhosas emanadas pelo meu coração aos pulos.
Wallace, com seu jeito infantil, conquistara meu respeito. Um tanto apreensivo e abobado, prometi com um movimento de cabeça que eu estaria no evento na – confirmei a data impressa – quinta-feira à noite.
Um social abraço foi trocado. Tapinhas nas costas largas de ambos. O Segunda Voz seguiu seu caminho, aparentemente um pouco mais leve.
Permaneci travado, apreciando os passos rebolativos do artista compacto.
Ele misturou-se à massa adiante. Ninguém reconheceu a personalidade que minutos atrás chorava sua existência em meus ombros parrudos.
Segui meu destino na direção oposta. Voltei para o vácuo do meu apertamento.
* * *
As Enlouquecidas dominavam todos os espaços possíveis do Olympia. Não sei como consegui passar são e salvo no meio daquela multidão de fêmeas selvagens.
Se foi sorte ou algo já programado, eu só me recordo que um troglodita bem-apessoado me posicionou em um local pra lá de privilegiado. Mesmo assim, calculei que seria impossível deixar a casa de espetáculos antes do término daquele evento tão aguardado.
Uma hora inteira de esperas e angústias. Finalmente as luzes se apagaram. Feixes coloridos inundaram o palco. A festa ia começar.
Após uma hora de show, entre tapas e beijos e gritos e faniquitos – quase entrei em paranoia com o ruído insuportável produzido pelas loucas – meu querido Wallace que não era “Wallace” (ou era?) surgiu no palco sozinho, sentando bem ao centro, munido apenas de um violão clássico.
A dupla já havia tocado a maioria dos seus sucessos e também algumas músicas do novo álbum. Fiquei impressionado comigo mesmo por saber praticamente todas as letras de cor.
O irmão de Wallace – a incrível primeira voz! – havia se retirado do palco para uma possível nova troca de roupas e alguns merecidos minutos de descanso.
Wall aprumou-se em seu banquinho de madeira:
“Essa aqui é a minha mulher. Minha doce Violina”, sussurrou o cantor agora feito menino, enquanto dedilhava algumas notas conferindo a afinação do seu instrumento tão amado, fazendo pose, criando charme.
“Ela me acompanha desde que eu era assim, ó!”, Wall posicionou a mão na altura dos mamilos, atiçando ainda mais o delírio incontrolável das moçoilas atarantadas.
Todo teatral, com uma das mãos tapando o alto das sobrancelhas e os olhos semicerrados como se estivesse à procura de alguém no meio daquela multidão trezentos e vinte por cento feminina, ele aproximou a boca delicada, quase a beijar o microfone:
“A próxima canção fala sobre perdas e danos”, a voz sensual amplificada centenas de vezes fez calar as milhares de fãs durante meio segundo.
“Fala sobre a superação da dor de uma separação”, excitadas, algumas não conseguiam conter os trinados supersônicos.
“Fala do recomeço... a mensagem real é que jamais devemos... o medo sentir... de recomeçar…”, notei que a frase fora truncada, já que a emoção de Wallace poderia traí-lo a qualquer momento.
Ele se encontrava fora do seu limite.
Só eu sabia a realidade!
“Devemos lutar pelos nossos sonhos. Pela nossa felicidade. Pelo nosso direito de amar quem quisermos…”, os gritos aumentaram sensivelmente.
O menino-homem de dois “eles” encontrou-me no seio do público, do lado esquerdo do palco.
“Dedico essa canção para um... uma pessoa... muito especial”, uma espectral linha tênue unia o nosso olhar.
“Um ser de luz que me mostrou que tudo é possível quando há confiança e amiz...”, mais uma vez as palavras morreram na boca diminuta, nervosas e errôneas.
O importante (para ele) é que a mensagem principal foi transmitida ao seu público.
“Sei que minha Violina não vai sentir ciúmes... mas essa música é especialmente pra você... Mo... ana!”
Ele olhou para um céu imaginário ao proferir a última frase. Eu olhei para um fundo infinito onde meu desejo maior era enterrar minha cabeça no meio das coxas do segurança brucutu que estava fincado bem à minha frente.
Felizmente, todas as mulheres presentes no recinto chamavam-se “Moana”, tal era a algazarra provocada pela revelação do sensual cantor.
As cordas do violão foram acarinhadas. Uma harpista surgiu iluminada em raios dourados no canto direito do palco, acompanhando a doce melodia composta nos estranhos anos 1990.
O trio feminino juntou-se à voz rouca de Wallace. E teclados e percussão e luzes azuis e verdes transformavam aquela declaração poetizada num fotograma de um sonho antigo.
Música para a massa consumista do nosso país. Música que naquele momento era a mais pura evocação da arte nacional. Música popular, talvez, mas nada disso importa, pois o que vale é a linda emoção do entretenimento profissional.
Aquela música era minha. Aquela poesia era para vibrar o meu coração!
* * *
Em meu cubículo, já na alta madrugada, deitado nu sobre o chão da sala, a mão direita ensandecida movimentando meu sexo para cima e para baixo; eu relembrava as melodias grudentas e cafonas que permaneceriam gravadas em minha alma.
Eternizada num pedaço de plástico negro. No bendito álbum de 1999.
* * *
2006. Setembro.
O telefone berrou, ensandecido.
Fiquei surpreso e pasmo ao reconhecer o número “fofo”.
Um “estou no hotel X, andar Y, quarto Z” ecoou, sussurrado, atrevido, a lamber meu ouvido esquerdo.
“Tenho apenas uma noite livre. Preciso viver a liberdade passageira envolto no teu corpo, com você novamente dentro de mim...”, disse Wallace, chorando.
“Vem, meu moreno... peludo... gostoso. Vem me amar!”, ouvi Segunda Voz bêbado, a exigir meus carinhos.
“Vem me ajudar a assumir de vez quem eu sou!”, ele implorou.
Algo me dizia que ele estava nu, se tocando.
Eu o amaria com todo ardor da luxúria.
Parti ao seu encontro.
Sem deixar...
... vestígios?
Atualizado em: Qua 12 Abr 2023