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Quentinha

Logo pela manhã, o aroma das especiarias riscava as paredes do meu quarto claustrofóbico e das minhas narinas arrombadas. Impossível manter meus sentidos indiferentes ao “Belo”; a tal da fornecedora de Quentinhas que havia sido inaugurada na última semana.
Lá pelas onze, já era intenso o movimento de Motobofes a abastecer toneladas de alumínios arredondados e fumegantes sobre suas Cegês, cortando a cidade de cabos e rabos a seguir, levando comida decente aos famintos de plantão.
* * *
No segundo mês, mais precisamente no quinto dia, os Céus me presentearam com uma visão linda do inferno na Terra.
Da minha porta eternamente emperrada, tive a chance de dar de fuças com o dono do estabelecimento caseiro.
Atrapalhei-me todo com o molho de chaves, os livros que eu tinha que devolver na biblioteca, o pacote de cigarros que eu ia presentear minha mãe e o iPhone com tendências suicidas que ameaçava se estatelar na ardósia deflorada.
Separados por mínima distância, o sincronismo dos nossos atos (ele se preparava para abrir o Fiesta) fez com que eu ganhasse um olhar de “oi” bem convidativo.
Retribui a sorte com meu sorriso mais idiota.
Recomposto, lá fui eu trocar um viril cumprimento, desfilando na calçada, todo rebolante, a fim de chamar (ainda mais) a atenção do meu vizinho estonteante.
Gsuis, que mão pesada!
Ele carregava uma caixa com várias Quentinhas e uma Coca do tipo um milhão de litros.
Sem conseguir disfarçar, meu olhar era magnetizado até um belo saco acompanhado de uma tora dorminhoca, abrigados nos confins de um brim surrado, apertado, convidativo.
“Parabéns pelo empreendimento. Pelo visto, suas quentinhas andam fazendo um baita sucesso nas redondezas”, eu disse no automático, impossibilitado de raciocinar, todo abobalhado.
“Obrigado. A crise me fez criativo. Aproveitei a paixão em fazer boa comida caseira e meti a cara na massa, logo depois que perdi meu emprego. Acho que dei sorte. Tudo está caminhando muito bem. Os clientes estão curtindo e as vendas… só aumentando!”, ele respondeu em orgulho brilhoso, alfinetando meus poros com aquele sorriso-cafuçu a liquefazer meus ossos, cérebro e últimas pregas.
Papeamos por quase três minutos, agindo como se fôssemos ancestrais conhecidos.
Ao aquietar o alarme e destravar o carro, Belo me ofereceu uma carona, já que meu destino ficava no seu caminho.
Sem pestanejar, joguei um afetado “Oh! Muito obrigado!” bem timbrado para o meu anfitrião, ao mesmo tempo em que agradecia a todos os santos (em pensamentos nada divinos) pelo merecimento tardio.
Rodamos e rodopiamos em silêncio, que só foi quebrado com uma observação carinhosa:
“Você vai primeiro passar na casa da sua mãe, certo?”
“Sim, preciso deixar os malditos cigarros pra velhinha, senão ela surta!”
Rimos com gosto.
“Será que ela já almoçou?”, disse Belo, destacando um semblante de honesta preocupação.
“Acredito que ainda não. Mamãe não segue um horário específico pra se alimentar. Sinceramente, acho que ela belisca o dia todo!”, confirmei o óbvio, suspirando em falsete, enquanto apreciava bundas solares e bicicletas coloridas do outro lado da Avenida Nove de Julho.
Assim que chegamos à Rua Prudente, Belo antecipou mais um ato carinhoso:
“Para agradecer a boa companhia, pegue aquela sacolinha ali atrás, do seu lado esquerdo, e entregue as quentinhas pra sua mãe… e pra você, claro!”, ele disse, esbanjando uma ordem sensual que não podia ser contrariada.
“Faço questão que você experimente meu tempero!”, Belo continuou, abrindo mais um daqueles sorrisos, como se eu fosse capaz de esboçar qualquer tipo de impedimento.
Despedimos euforias com um desajeitado aperto de mãos. O Fiesta rasgou a rua arborizada. Eu fiquei plantado diante do portão enferrujado da casa materna, atontalhado por causa das delícias ocorridas, agradecido pelo presente perfumado, imaginando o que eu faria para provocar um novo encontro.
* * *
Imprevistos do tempo. Agendas não balanceadas.
Levou um século até que eu conseguisse esbarrar com o Brutus Belo novamente.
Foi num sábado que a magia aconteceu, debaixo de um sol “duas horas” insuportável. Da sacada do meu quarto, passei a ouvir certa algazarra do lado de lá. Curioso e levemente excitado, dei uma espiadela no pátio do vizinho.
Caravaggio aprontara mais uma.
Oh, Céus. Que obra de boas artes!
Três rapazes e um urso se divertiam em águas e espuma e cerveja, tentando limpar e dar brilho no que julguei ser uma espécie de fogãozão industrial.
Encoberto atrás de uma linda jiboia pra lá de verdejante, passei fantásticos vinte minutos a me esbaldar diante das maravilhas daquela cena medieval, surreal, punhetal. Todos em bermudas plásticas, sem camisas, suados e marinados ao som dos Mamonas Assassinas.
Hilário e excitante. Divertido e inesquecível.
Suspiros!
Quando me belisquei e percebi que tudo aquilo era – definitivamente! – real, confirmei a ausência dos garotos, que já haviam partido “de véio”, certamente tropeçando nas alegrias etílicas, loucos para torrar o vale certeiro, num sábado que ainda prometia ácidas fagulhas de prazer.
Botei uma camiseta velha, corri para encontrar o par de chinelos desbotados, besuntei meu pescoço com um Biografia básico e tomei coragem para fazer uma visita ao meu tesudo embriagado.
Dois “dim-dom”. Uma porta aberta com vagar.
O mesmo sorriso caipira a iluminar minhas expectativas.
“Fala aê, carinha. Até que enfim nos encontramos. Entra aê, mermão!”
Como dizia Boy George… “a única diferença entre um hétero e um gay são oito latas de cerveja.”
Mas nós estávamos errados… dessa vez!
“Vamos lá pro fundo tomar uma. Acabei de dar um belo trato na cozinha. Olhe, está tudo um diamante!”, disse Belo, envaidecido pelo resultado da sua labuta.
Mudo, travado, encantado, segui meu Mestre e Senhor, hipnotizado com o carpete castanho que invadia costas e braços e ombros e peitos e universos paralelos.
Mais uma vez, degustamos fantásticos vinte ou trinta minutos de um bate-papo leve, recheado de sarcasmo, risadas sem fim e muita liberdade trocada entre nossos devaneios.
“Olha Rê”, interrompeu Belo, criando uma fuça séria, incompatível com o clima, logo após abrirmos outra Skol.
“Posso fazer uma observação, cê não vai ficar chateado?”, completou, abrindo um leve sorriso filho-de-uma-égua-leiteira.
“Pode falar, sem rodeios”, eu o intimei, nada convincente, tremendo do cu à cabeça.
“Percebi que você não consegue disfarçar certo desejo por mim. Cara, na boa, deu pra sacar que você é gay. Eu AMO os gays, apesar de não ser um, infelizmente. Mas, e aí, você está me querendo?”
“Sim, você está certo. Sou gay assumido e não tenho problema algum com isso”, eu tagarelei meio arrogante, numa defensiva desnecessária.
“Não nego que você é atraente. Na verdade, no que se refere ao físico, o que me deixa pirado num cara é a quantidade de pelos. E, por Nossa Senhora Verão da Vulva não Depilada, eu nunca, nunca mesmo, tive a chance de curtir uma montanha de músculos e mink igual a você. Ficar a trinta centímetros desse seu peito e não poder tocá-lo é realmente uma tortura pra mim-eu-mesmo”, soltei toda a verdade, entre ladygagos e pigarros e vergonhas colossais.
Brutus Belo manteve um semblante sério, até mesmo assustador, por angustiantes noventa segundos. De repente, a montanha pitanga se pôs em pé, suando em bicas, abrindo os braços feito aquele redentor carioca.
“Vem cá!”, foi a ordem carinhosa.
“Oi?”, eu quase gritei, abismado.
“Vem cá e para de frescura. Se você quer me tocar, eu autorizo seu carinho. Vem cá e me abraça, carinha. Vem!”
Não encontrei forças para sair do lugar. Foi preciso aquele guindaste pelúnico me arrancar das amarras do Torpor numa única fisgada.
Meu deus, que tapete era aquele. E o cheiro então? E a suavidade, textura, abundância!
“Hoje, o que você precisa não é de um caralho ou bunda ou sei lá o que você curte com um macho. Agora, o que você necessita é de carinho e silêncio. Assim como eu.”, ronronou meu Tudo de Bom.
Adentramos o quinto andar da oitava dimensão. Nossos anjos de guarda invadiram o Spotify e escolheram Adele. Enroscamos, num aperto sensual, nossos pelos e químicas. Dedos macios e dedos chamuscados riscavam peitos, rostos e costas. Nossos sexos dormiam a sono solto. Não precisávamos das demências da Luxúria.
Santa Compreensão e São Carinho abençoavam nosso enlace. O tempo travou no Tempo. Euzinho e meu Belo inspirávamos cumplicidade e respeito.
* * *
Desde aquele sábado… viramos amigos inseparáveis, confidentes intrincados, companheiros afinados no respeito ao luxo da Diversidade.
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Atualizado em: Qua 12 Abr 2023

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