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Filomena, uma boneca de pano

Era o primeiro domingo de setembro. Um mês que até hoje considero mágico.
Ela invadiu o nosso quarto bem no meio de uma manhã tediosa.
Suas pernas brancas, raquíticas além da conta, e seus braços compridos e molengas implorando um abraço, eram desproporcionais em relação ao corpo rechonchudo, colorido, dotado de uma maciez a evocar bons sonhos.
Minha irmã desamparou de imediato o presente feito pela avó com tanto zelo.
Quando a humilde velhinha entregou-lhe o pobre embrulho amarfanhado, deixando à mostra um pedacinho do brinquedo delicado, a espevitada disse aos berros que “aquilo” tinha cara de monstro e não de boneca igual a que ela venerava diante da tevê.
Filomena, a desprezada, permaneceu boa meia hora esquecida, atirada para debaixo da minha cama, tentando maquiar sua tristeza atrás de um sorriso vermelho de lábios costurados.
Já que eu não tinha brinquedos reais, muito menos amigos imaginários, sequestrei a Filomena com muito gosto.
Nas horas vagas, logo que eu chegava da escola ou um pouco antes de dormir – quando eu costumava ficar um tempão no banheiro descobrindo os prazeres de tocar no meu peepo que há poucos dias tinha refletido um estranho sinal de vida, empinando e se espichando todo garboso –, a boneca de pano participava das brincadeiras ocultas no meu terceiro mundo.
Nossa Mãe de Deus. Lembro-me de como a gente tagarelava!
Que alegria encontrar boa companhia compreensiva, ajudando-me a entender a nuance dos novos mistérios.
Eu passava séculos atemporais conversando sobre tudo o que eu ia descobrindo no decorrer das minhas vidinhas de fantasia. Meus segredos e sonhos eram confiados a minha fiel amiga de sorriso boboca, monalístico.
Um dos momentos mais excitantes do dia era quando invadíamos sorrateiramente o quarto da vovó. A gente se divertia pra valer fuçando no interior do enorme guarda-roupa, escolhendo peças bizarras para decorar nossos espíritos ingênuos. Eu adorava criar combinações esdrúxulas de tecidos, texturas e cores. A coitada da Filomena acabava sufocada debaixo de camadas de calcinhas que mais pareciam cortinas e de vestidos pobrezinhos que vertiam naftalina ao serem manuseados.
Quantas e quantas vezes eu não produzia Filomena, minha irmã e a mim-eu-mesmo, e juntos desfilávamos pelo nosso quarto ao som distante de um disco The Best of do Odair José que meus avós costumavam ouvir todo santo dia, enfurnados na sala friorenta, assim que meu avô acabava de assistir ao Jornal Nacional.
* * *
Aprendi a lavar roupas devido a um acontecimento desesperador. Numa tarde a despencar lágrimas e granizo, eu brincava com Filomena de “fazer maquiagem” e não me dei conta de que batom e rímel e sombras paleolíticas não saíam com facilidade daquela fuça de saco de estopa.
Foi com muito sacrifício, litros de água e quase uma pedra inteira de sabão que consegui remover metade dos estragos na pele sépia da minha cobaia de tecido gasto.
Confirmei que ser maquiador, no futuro, não estava traçado em meu destino.
* * *
Eu e Filomena éramos felizes à nossa maneira bobiça, até o dia em que meu avô descobriu nossa alegria ingênua, quando o menino tímido e sua boneca submissa brincavam “de fazer aniversário”, tranquilos e faceiros debaixo da sombra de uma amoreira. Fui surpreendido com aquele olhar hematoma no mesmo tom das berinjelas que o velho costumava colher atrás da casa.
Vertendo por todos os poros uma mistura horrenda de cachaça barata e fumo-de-corda, meu avô, aos mugidos barítonos, investiu suas erodidas mãos rochosas contra meu corpo mirrado, estapeando minhas nádegas em formação, esticando com violência as minhas orelhas miúdas, que acabaram tomando proporções monstruosas na minha imaginação, devido à dor lancinante que eu sentia e jamais me esqueci.
Filomena foi arrancada das minhas mãozinhas suadas em gelo seco e num relance vi bracinhos e pernas varetas sendo destroçados. As entranhas de algodão foram levadas pelo vento. Sua alminha ganhava o direito de repousar no paraíso das Virgens de Pano lá no céu. Seu vestidinho de remendos de chita flutuou por míseros segundos até que restos impassíveis ricochetearam no chão de terra vermelha.
“Seu filho de uma infeliz. Homem não brinca com boneca! Isso é coisa de anormal, de gente doente, pecadora!”, bradou o desumano, gritando e arrastando o que restava do meu assombro pelos cômodos abafados, escada acima, jogando-me em seguida sobre a desconjuntada cama de casal, enquanto rodeava sua centenária cinta de couro no pulso esquerdo e retalhava minha pele inocente, sensível e transparente com golpes fortíssimos aprendidos com o casal Ignorância e Preconceito.
Meu sangue foi espargido no infinito. Minhas lágrimas ionizadas de dúvidas no pecado foram sugadas para o centro de um vazio incompreensível. Filomena, ou o que restava do seu corpo esquartejado, salpicado sobre a terra, ainda sorria seu riso triste e indignado ao sentir à distância os vincos traçados nas pernas outrora alvas do seu amiguinho agora enclausurado, inválido, esquecido.
Minha avó, coitada, jamais teve coragem de encarar o marido. Ela permaneceu em transe, com o rosário na mão, amuada no canto do seu surrado sofá de couro, o único móvel de qualidade naquela casa, ganhado da filha Júlia num sorteio de bingo realizado na Praça da Matriz.
Dona Clotilda chorava e rezava, relembrando a filha e o genro, no que deveria ter sido uma noite de festas juninas e acabou se tornando um inferno de Dante quando explodiu o botijão de gás de uma das barracas que vendia quitutes, eliminando a existência da minha mãe e do meu pai num décimo de segundo.
* * *
Reginaldo, meu avô, me deixou trancado por dois dias inteiros num quartinho feito de bambu, ao lado da fossa, sem me oferecer água, tampouco comida, acreditando que essa “lição” espantaria a “coisa ruim” que havia se apossado do seu neto que acabara de completar nove anos e sete meses.
Naquela casa, segundo o patrão, homem tinha que ser Homem. Os anormais deveriam ser punidos com veemência, pouco importando o laço de sangue que pudesse uni-los de uma forma ou de outra.
Enfim, carcomido pela Dor e iluminado pelo Crescer, compreendi porque tio Rômulo, “aquele bicha”, havia sido expulso do seio da família há tanto tempo.
Aceitar outro transviado era inadmissível para o “senhor” Reginaldo.
Ele sempre repetia durante as reuniões familiares – após ter engolido a oitava dose de cachaça caseira –, que sentia tremendo orgulho em ter espancado seu irmão mais novo quase até a morte, para ver se o sujeito deixava de quebrar a munheca, esticar o dedinho e ruminar em falsete.
* * *
Aos vinte e nove anos, fui considerado um verdadeiro fenômeno no disputado mercado da moda em São Paulo. Minhas criações embelezam corpos esculturais de um número seleto de celebridades brasileiras e europeias.
Eu e meu companheiro, Rodrigo, vinte anos, um designer de joias em franca ascensão, vivemos confortavelmente em um loft descolado num dos bairros mais charmosos da capital paulista.
Durante quase quatro anos, dediquei boa parte do meu tempo para cuidar do meu avô moribundo, desde que descobrimos que ele havia se ajuntado com a AIDS durante relações mantidas com rapazes, sem proteção, ao frequentar um pulgueiro de péssima reputação em Jundiaí, a terra da uva, localizada no interior do estado.
Você não imagina o choque: Descobrimos que no final dos anos 1980, meu avô costumava largar a mulher e os netos em casa durante as tardes de todos os sábados, após a lida em suas terras. Ele fazia a barba, tomava uma ducha de Avanço e colocava o jeans mais apertado que havia em seu guarda-roupa, na esperança de impressionar seus jovens amantes durante as pegações enrustidas no lúgubre ambiente de escape.
E minha avó pensando que ele ia negociar pepinos, tomates, alfaces, etc!
Foi entre revoltas que desvendei qual era a razão dele ter espancado e expulsado o irmão de casa. Rômulo também costumava frequentar aquele lugar, só que em dias e horários diferentes, sendo que o destino havia cruzado a trilha dos dois numa determinada ocasião, quando Rômulo captou o flagrante num dos quartinhos da sauna: o irmão homofóbico sendo enrabado por um jovem soldado e ao mesmo tempo sendo chupado por um conhecido da família, o “seu” Dimas, dono da quitanda onde meu avô costumava vender boa parte das suas hortaliças.
* * *
Durante o enterro do infeliz, realizado numa quinta-feira chuvosa da última semana de um outubro esquecível, eu e meu marido cumprimos o ritual de despedida sem demonstrar emoções ao corpo deformado que era depositado no fundo de um abismo. Enquanto o banal caixão era baixado na cova, minha irmã e meus sobrinhos jogavam algumas pétalas de rosas brancas que caíam contrariadas sobre a madeira envernizada, criando desenhos difusos naquela textura marrom, de brilho reduzindo, expirando pobreza.
Antes de cobrir o velho homem com camadas de esquecimento, retirei do bolso do casaco um pequeno embrulho feito de seda. Com respeito, repousei o conteúdo na cova, que quicou sobre o tampo de madeira e escorregou até parar bem em cima do coração do meu avô. Filomena, a boneca de pano reformada, trajando um deslumbrante vestido vinho produzido a partir de um raro tecido importado da Grécia, e adornada com um colar e brincos de cristais de ínfimo valor, provenientes de um vilarejo nos confins da Lituânia, agora ia fazer companhia ao coitado, alegrando-o com seu sorriso vermelho de lábios costurados, que o velho e minha irmã sempre julgaram sem graças.
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Atualizado em: Qua 12 Abr 2023

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