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Delicadas
Era a quinta vez naquela semana que o deturpado espectro tumultuava minha compaixão. Impossível não notar aquele Maduro sentado no mesmo lado direito do sétimo banco de ardósia, na mesma praça, sempre nas mesmas horas.
Eu continuava sem reação concreta ao encarar sua aura desfocada ali, ausente, bem ao lado da floricultura.
Em mais um dia de rápidas observações, pude confirmar que o distinto moribundo trajava a mesma camisa xadrez em tons e linhas que variavam entre o marrom, o vinho e o branco. Sobre a camisa de flanela havia um pulôver ancestral, de fino caimento, confeccionado em lã, num cinza puxando mais para um chumbo nobre, entristecido. A calça mesclava o negro original do veludo com aleatórias manchas esbranquiçadas bem demarcadas na altura dos joelhos, indicando a lástima vivida em dias de lamúria e solidão; seu dono vagando por caminhos ignorados, deixando-se raspar em qualquer pedaço de asfalto ácido enquanto a carne tentava, em vão, repousar sua decadência nas esféricas madrugadas infinitas.
A pele enrugada nas dobras daquele corpo inerte denunciava que seu proprietário não vivera uma existência benfazeja. O detalhe da carne morta gritava com o contraste emanado pela vivacidade das marcas esculpidas no rosto férreo do “sem identidade”. Faces violetas talhadas à navalha, onde linhas retas e rígidas sustentavam sonhadores olhares cristalinos, moldados em duas gotas da mais pura alexandrita; olhos que certamente haviam visto de tudo no Mundo Egoísta, presenciado cenas marcantes em fogo e álcool.
Para quem tivesse um cisco de sensibilidade a captar a essência de uma sutil realidade, era palpável o absurdo das imagens desalentadoras que os últimos instantes de sua caminhada foram capazes de revelar ao meu espírito sempre alerta.
Aquela figura até passaria despercebida, fundindo-se com a paisagem local sempre caótica, no para lá e para cá de todo mundo correndo para alcançar todo mundo que não quer ser atingido por todo mundo. Mas, ao menos para mim, era impossível Ausente não ser notado.
Estávamos em pleno verão loveano! Suas mãos enluvadas por grossas tiras de couro que um dia fizeram parte de um delicado par de luvas argentinas. Seus trajes dissonantes em flanela e veludo. O conjunto denunciava que algo não estava a correr no trilho ideal.
No seu silêncio involuntário, aquele senhor gritava por socorro e implorava ajuda amiga para que qualquer coisa que ainda restava de humano dentro de si fosse resgatada – a todo custo – das garras de uma demência premeditada.
Era o quinto dia, a quinta tarde. E foram cinco os minutos decisivos que impingiram a devida coragem para eu abordar aquele estranho numa sexta-feira, após o encerramento do meu expediente, quando eu nutria certeza de que cruzaria com a figura enigmática sentada no mesmo lado direito do banco de ardósia, na mesma praça açucarada, talvez em horários indefinidos ao cair da noite, ali, impassível, bem ao lado da floricultura, distante quarenta e nove passos do meu sagrado local de trabalho.
* * *
Entre uma tesourada e outra, dediquei boa parte do dia quebrando a cabeça para resolver as artimanhas da contabilidade pendente do meu pequeno estabelecimento comercial: ainda o embrião do que seria, muito em breve, um grande salão de beleza só para homens.
Há dois anos, oito meses e três dias tenho me dedicado com afinco na arte e na trabalheira hercúlea de dar forma, volume, brilho, cor, vitalidade, saúde e beleza aos fios rebeldes e maltratados dos pescadores macholísticos da ilha.
Meu salão é o único lugar em Lovland onde qualquer Pinto Tímido da Silva ama se entregar aos cuidados de um homossexual bem resolvido sem demonstrar nenhum traço de receio ou preconceito. O sucesso tem sido conquistado com muita labuta, paciência e, acima de tudo, respeito e carinho pelos meus outrora desconfiados clientes.
É engraçado imaginar as caras e bocas que todos faziam no começo ao sentar pela primeira vez na minha cadeira giratória de ferro cromado e couro macio.
Vermelho. Sempre vermelhos!
E, de repente, serem “tocados” por um macho magricela de traços femíneos, um tantico afetado entre risos sinceros e tiradas sarcásticas; e sentir seus pelos salpicados, aparados e muitas vezes embebidos em aromáticos cremes rejuvenescedores que proporcionavam maravimilagres naqueles fios tortuosos que eles chamavam de “cabelos” ou “barbas”.
Com o passar do tempo, principalmente quando havia algum baile ou qualquer outro evento de cunho social na ilha, os machos mais jovens corriam para o “salão do Andreas”, loucos para ficar com o visual tinindo de “lindos”, ampliando uma enormidade as suas chances com as garotas, na esperança de praticar seus necessários amassos fáceis, de escape, imbuídos na ilusão de um amor que não era o Amor.
Cada cliente que frequentava meu salão não ganhava apenas um corte ou um trato “manêro” na pelugem rústica. O que faz minha fama – além de realmente deixar meus homens mais palatáveis a um valor honesto – são os conselhos amorosos e as dicas quase sempre infalíveis torpedeadas por mim-eu-mesmo, ensinando a arte óbvia de como se conquistar com carinho e respeito essa ou aquela guria do momento.
Afinal, em Lovland era corriqueira e presente a crença de que todo gay carrega duas almas em uma: o feminino e o masculino arraigados dentro de si, o que nos proporciona o dom do conhecimento supremo sobre todos os mistérios da mulher.
Somente quem optou em ser homem-mulher-humano é capaz de conhecer em profundidade todas as nuances da alma hermafrodita. Esse é o privilégio de uma conquista galgada entre inúmeras passagens por essa terra coroada de oportunidades fantásticas de suave evolução.
Na intimidade, no meu clube do Bola Magra onde Lindinhas não entram nem para dar “bom dia” (mentirinha!), eu me divirto à beça com meus comentários e acertos encarados pela ala masculina como “sobrenaturais”!
Perdi a conta de quantos e quantos casais se uniram na ilha por obra e graça das minhas valiosas dicas sentimentais. Esse lado “casamendoido” já existia muito antes de eu me firmar como um bom profissional cabeleireiro.
Eles me idolatram.
Elas me adoram.
Todos me respeitam.
Simples assim!
O mundo sabe, na teoria, o que deve ser feito. Porém, são poucos os Corajosos a realizar o que deve ser concluído a contento.
A vida é uma sucessão de fragmentos de obviedades. É pena constatar que muitos se acomodam nas barbas da Dona Mediocridade e se escondem atrás da Senhorita Ignorância, alimentando um medo descomunal em encarar a opulência da Felicidade, essa garota cigana, dourada e faceira, sem rumo, nem prumo.
Sexta-feira costuma ser um dia cheio e muito corrido. Mas como não era época de pagamentos públicos, nem estávamos no auge da temporada e não haveria nenhum significativo evento festeiro naquele fim de semana específico, senti alívio ao finalizar meu último corte pouco antes das seis.
Fechei o salão, conferi o movimento na praça e corri até a floricultura dos Petry. Precisava me inebriar com a essência das Coloridas e das Verdejantes.
Eu almejava alguns minutos de meditação e serenidade enquanto desfilasse entre as cores, texturas e alegrias das inúmeras espécies florais da grande casa de vidro e madeira do outro lado da agitada Rua Riemann.
“Oi Leo. Já fechando?”, perguntei, esbaforido, três minutos antes do encerramento de tudo.
“Oh, sim, Andreas lindinho. Hoje não quero ficar até sete, oito. Preciso voltar logo para casa. É noite de novena. Minha mãe pediu para eu preparar algo bem gorduroso para receber as carolas, você sabe”, disse o rapaz cabelo de cenoura, entre um sorriso furtivo e um olhar perscrutador derramado diante de um grande vaso carregado de crisântemos.
“Você deseja algo em especial? Humm, deixe-me ver... talvez queira que eu lhe prepare um extravagante arranjo em tons cítricos… para comemorar a vigésima data do seu aniversário de, digamos, ‘menina solitária’?”, continuou Leo, sempre prestativo, gentil e fofo.
“Quantos séculos sem dar uma mesmo?”, cacarejou meu sensível e discreto amigo.
“Engraçadinho. Na verdade, Senhorita Petry, preciso de uma única informação”, eu revidei, enquanto caçava Futuro com meu olhar atento além das grandes vidraças, buscando entrever o Maior Abandonado.
“Você por acaso reparou num senhor todo enfiado em roupas de frio, que permaneceu durante essa semana calorenta por horas e horas sentado, sozinho, ali na praça?”, emendei a frase num falsete meio afoito e comprometedor demais pro meu gosto.
Leo caminhava e conferia o fechamento de cada janela, tudo no piloto automático, quando, de repente, começou a rir do meu súbito interesse no Desconhecido.
“Não vá me dizer que você quer dar pro velhote!”, gargalhou Leo, simulando trejeitos eróticos que fizeram corar o cristo crucificado no quadro requebrado ao lado do Caixa.
“Não é isso, seu tonto!”, vociferei, encarando o absurdo com bom humor.
“E não se esqueça, caralho... que eu sou bam-BEE-combustível, queridinha!”, retruquei, estalando os dedos e batendo cabelos, rindo da minha baboseira.
“Você sabe que Lovland é um ovo. Todo mundo conhece todo mundo. Mas eu nunca reparei nesse sujeito antes. Só fiquei encafifado em vê-lo durante todos esses dias por ali, indo e vindo sem nunca chegar, carregando esse ar de profunda tristeza e abandono a lhe massagear os ombros. Sei lá, me deu vontade de ser prestativo, de fazer algo... não sei”, revelei minhas reais intenções com sinceridade.
“Hã-hã. Eu compreendo, Sra. Andreas Calcutá. Bom, o coitado ficou a tarde inteira sentado bem ali”, afirmou Leo, com desdém, apontando na direção do centro da praça.
“Pelo que eu pude perceber – não que eu seja curiosa! –, ele passou um montão de tempo de cabeça baixa, lendo um livro que parecia ser uma bíblia sabe-se lá qual versão agora inventada pelo homem”, ele riu, meio sem graça, arisco para reiniciar mais um debate inútil sobre Religião versus Verdade.
Respondi apenas um “hum-hum” pela óbvia dica concedida.
Rodopiei durante alguns segundos defronte o imponente balcão em granito. Na base do uni-duni-tê, após um tempo absurdo e delirante, eu acabei escolhendo um gracioso vasinho de lata pintado de verde-mar, onde brotando do seu interior havia uma fartura de minúsculas flores multicor luminosas, aromatizadas num perfume olimpo.
Não querendo dar o braço a torcer pela minha total ignorância botânica, fiz um ar arrogante do tipo que conhecia em profundidade minha recente aquisição, estampando um falso e patético semblante de “entendido” perante meu amigo apressado, que na mesma hora me cumprimentou pelo meu bom gosto apurado.
“Parabéns. Bela escolha, meu caro Andreas. É para você?”, questionou meu amigo florista, embebido em sarcasmo, mesmo sabendo a resposta.
“Na verdade… não. Digamos que seja um presente, espertinha! Vamos ver se essa sua obra de arte natural é capaz de transformar uma dor medonha num bonito sorriso”, adiantei-me na confirmação da suspeita do meu amigo mais do que antenado sobre minha sintonia de amor fraternal.
“Jeovaogum eterno, ela vai D-A-R para um Sem-Tudo!”, gritou Petry, diante das minhas garras volverineanas prontas a degolar um incauto pescocinho d’angola.
“Está certo. Acho que ele vai gostar. Admito: seu gesto fará bem ao pobre velhusco”, disse Leo, embalando em celofane e arrematando em fitas azuis e douradas o meu bonito presente.
“Se eu tivesse coragem de abordar assim um estranho, como você está prestes a fazer... nossa, pra falar a verdade... eu invejo sua atitude, Migaaa!”
“Hoje eu só quero que o dia termine bem...”, cantarolei, vagamente emocionado, pois algo deliciosamente desconfortável crescia em mim e uma voz interior como que me empurrava, coiceando-me, incentivando meu humilde ato de solidariedade.
“Quanto lhe devo?”, perguntei a Leo, que ajeitava com maestria laços e firulas cintilantes, dando os últimos retoques que resultaram num magnífico mimo montado com sincero carinho e extraordinária competência.
“Não é nada. Pode levar. Deixe-me contribuir com um pedacinho perfumado e colorido da sua lasca de esperança. Espero que a possível história vindoura tenha ao menos um breve toque de felicidade”, comentou Leo, arroxeado de vergonha, não acreditando no que acabara de proferir em sereno e bom tom, bem na minha frente!
Ao sair da casa de vidro, precisei disfarçar as lágrimas de apreensão e minha cara apalermada pelo que eu estava prestes a realizar. Eu não queria chegar perto do sujeito como se estivesse retornando de um enterro.
Caminhando a passos ridículos de tão curtos, quase que arrastando minhas longas pernas brancas e bambas demais, eu procurava um jeito de compreender minhas atitudes e o que me conduzia ao encontro não programado.
Havia um medo insano se apossando do espaço entre meu mamilo esquerdo e meu coração vacilado. O receio de ser esculachado em praça pública travava ainda mais o meu andar vacilante. Que alívio constatar que não havia quase ninguém transitando por ali, naquela hora.
A famosa Praça da Paz, localizada bem no centro de Lovland, é constituída pelos seguintes elementos cênicos: ao meio, uma imponente escultura do conquistador da ilha (feito realizado em 1938), Peter Schwarz; uma série de bancos em ardósia ao redor do homem de bronze, formando uma meia-lua respeitosa sobre um piso de tijolos rústicos em tons acobreados; uma linha natural de coqueiros, pinheiros e araucárias fincados pelo Criador num arranjo sublime, estranho e, para muitos, inconcebível, emanando uma beleza que até hoje encanta e encuca os passantes, onde o conjunto de árvores frondosas traça majestoso caminho que conduz os transeuntes a uma trilha que desbrava uma excitante mata fechada que, por sua vez, desemboca na mais bela praia da ilha: Gobsun.
Fora de mim-eu-mesmo, eu aguardei o Novo durante uns treze minutos.
* * *
Ele surgiu por detrás da banca de jornal do Sr. Schwabe. Sentou-se no oitavo banco, sozinho, onde uma requentada versão de um olhar consternado parecia buscar o alívio excelso ao contemplar por um período infinito a fachada da igreja de São Crabedean, padroeiro de Lovland.
A poucos metros do velho homem, apenas um casal de adolescentes trocava selinhos de um amor ficante, inútil, passageiro. Logo mais adiante, do nosso lado esquerdo, havia algumas crianças disputando uma acirrada partida de bolinhas de gude num provisório descampado de terra, cena que me turvou o olhar riscado em lágrimas pendentes, recordando-me uma infância feliz, porém solitária. Eu adorava jogar bolas de gude. Era a única chance que eu tinha de ser alguém no meio da molecada.
De onde eu estava, inspirei o ar tépido da noite desnuda, firmei o passo e aprumei a postura, seguindo confiante a trilha do meu destino, usando como proteção bem diante do peito a tal latinha florida que poderia me salvar de mim-eu-mesmo. Ou não.
“Oi. Ocupado?”, perguntei, querendo morrer e ser sugado para o centro da terra imediatamente após proferir tamanha bobagem.
“Oi”, disse o velho, com a voz empastada.
“Toma. É... pra... você!”, despejei de bate-pronto o meu pacote sobre o moribundo, numa atitude ansiosa, amadora, tosca.
Eu não sabia como agir e não tinha ideia do que fazer a seguir.
“Flores... p... ra mim? Quanta gentileza!”, ele gaguejou, abalado por causa do meu fofo ato destrambelhado.
“Posso me sentar ao seu lado?”, questionei, um pouco mais seguro, tentando me concentrar em cada passo, em cada palavra.
“Claro”, ele respondeu, enquanto acariciava, confuso e excitado, as fitas azuis e douradas do magnífico arranjo.
Ficamos em silêncio por desajeitados trinta e sete segundos.
O embaraço foi cortado por um:
“Muito obrigado pelas flores. São lindas. Posso abrir o arranjo para sentir melhor o aroma das pequeninas?”, perguntou Ansioso, estampando no semblante um ar quase infantil.
“Ah, sim. Claro. Por favor, faça isso!”, respondi, buscando confiança em algum lugar obscuro do meu interior abismado.
“Meu nome é Kauer. Johann Kauer”, murmurou Tímido, afoito em desatarraxar os laços que Leo havia moldado com tanto esmero.
Abobalhado, o coitado se divertia à beça, como a desembrulhar o primeiro presente dum oitavo Natal.
Assim que liberei meu currículo básico, fiquei ali, por um tempo dilatado demais, apenas contemplando a cena, honestamente feliz por vislumbrar um traço de euforia que pespontava naqueles lábios e olhos outrora amorfos.
“Que perfume. Puxa. Que perfume!”, sussurrou Kauer para si mesmo, agora radiante, segurando o arranjo com uma das mãos, enquanto com a outra limpava a palma rugosa na velha calça de veludo, buscando meu cumprimento logo em seguida.
“Muito obrigado. Muito obrigado... mesmo... pelo presente. Puxa, que flores são essas?”, Kauer me questionou, onde seus olhos límpidos imploravam uma resposta certeira.
“Não carrego a mínima ideia”, respondi, meu olhar buscando um tijolo solto sobre o piso, para que eu pudesse arrancá-lo e enterrar minha cabeça aloirada debaixo da areia compactada.
Kauer simulou um ar sério, decepcionado, que perdurou por alguns segundos. Sua máscara despencou logo em seguida, promovendo cores suaves a um rosto luminoso, espocando uma gargalhada afável.
Permanecemos bons instantes a nos aquecermos em risos revigorantes, onde o gelo – aleluia! – também fora derretido por completo, dando passagem ao princípio de uma conversa reveladora.
“Por favor, eu preciso saber qual é a sua história”, perguntei a Kauer, com um ar sério, porém embebido em carinho e compreensão.
Assustado, Johann Kauer, o velho, inspirou um pouco mais do perfume das suas delicadas anônimas, talvez buscando forças para revelar de uma vez por todas o que deveria ser despejado numa só tacada, aliviando assim, em definitivo, sua alma pesada e contida.
O mortiço confiou em mim:
“Foram dezoito anos de um relacionamento de sonhos. Sabe, daqueles que só dão certo em folhetim de quinta ou num romance tipo ‘Z’ reprisado pelo Canal 5 na madrugada. Ludwig, Lud, estampou seu vigor na minha existência numa tarde comum, em que eu investia umas economias na compra do meu primeiro carro, um VW.
“E lá estava o rapaz. Novinho e novato. Prestativo. Simpático. Quase um vendedor profissional. Levei quarenta minutos para me decidir sobre a compra, apalermando numa concessionária no centro da Cidade Cinzenta. Logo após assinar o cheque, quando enfim pude sentir demorado calor e reparar na textura da mão do vendedor tão amável, percebi que estava apaixonado. Perdidamente apaixonado.
“Nervoso e atrapalhado, pedi para que Lud providenciasse o envio do veículo à minha residência aqui na ilha. É claro que ele mesmo tratou de levar meu carro ao seu destino final, dois dias após o fechamento da compra e documentos em ordem. Um café, dois cigarros, muitos sorrisos, diversos cumprimentos, um leve agradecimento e, enfim, desatei minha coragem… ao fazer um pedido formal de namoro… que foi aceito sem nenhum questionamento!
“Aos quarenta e dois, após nove anos de solidão, foi me envolvendo com um garoto de vinte que tive a chance de encontrar o Amor. Vivi essa amizade em harmonia, em toda sua glória, como num sonho perfeito que só acabou com a passagem do meu amado... para o mundo... real... lá em cima!”, continuou Kauer, engolindo seu desespero com dificuldade, visivelmente abalado por se abrir sem ressalvas a um boquiaberto estranho estrábico.
Impressionado com o relato assim, na lata, cuspido sem rodeios, num ato mecânico tomei o velho homem em meus braços, cobrindo seu rosto suado com minhas mãos de princesa. Retirei de sua testa os quebradiços cabelos prateados, que pareciam querer se desmanchar entre meus dedos bem hidratados.
Uma brisa cheirando pipoca, dançando noite adentro, envolvia nossos corpos, transportando nossos espíritos incompletos como por encanto até um ponto além da dor, acima do insuportável.
“No decorrer da nossa felicidade, mesmo sob protestos do meu amado, durante anos fui passando aos poucos todos os meus bens em nome de Lud. Imaginava assim garantir sua segurança, seu conforto, seu futuro quando eu viesse a partir, seguindo a lógica da Natureza.
“Mas, ironia maldita das ironias, meu Lud, trinta e oito anos, partiu correndo… antes de mim. Um cruzamento. Um sinal vermelho desrespeitado. Lud chapado pela primeira vez na vida, em decorrência de um sonho quase realizado: adotarmos uma menina. Um vislumbre que parecia se concretizar após milênios de lutas contra a burrocracia e o preconceito. Bastava apenas uma última canetada do Grande Homem da Lei e nossos anseios finalmente encerrariam seus expedientes. Lud estava eufórico. Ele sabia que conseguiríamos. Esperançoso, não cabendo em si e louco de vontade de estar em casa, onde comemoraríamos a nossa penúltima vitória.
“Mas ele bebeu. Ele entornou todas as ‘Budweiser’ ainda na Cidade Cinzenta. Feliz, feliz, feliz. Iniciou a comemoração com os colegas de trabalho. Do bar, ele me ligou, radiante. Embebido na ignorância (eu sabia que ele estava alterado, mas não tinha noção de quanto isso o afetara no ato de dirigir), apenas pedi para que ele retornasse o mais breve possível para o nosso lar. E ele voltou, rápido demais. Passou a ponte. Virou à esquerda. Esqueceu que havia um cruzamento, que havia um semáforo, que havia um sinal vermelho. Ele passou, ele ignorou o básico, o essencial. Ele passou... reto... e o nosso VW foi massacrado por uma caminhonete que dilacerou o lado do motorista. Meu motorista. Meu homem. Meu Lud. Morto!”
Johann Kauer, a dor encarnada, em seu relato calcinante acabara de fixar no seu vulto mais cem anos de sofrimento através daquela ferida escancarada.
Ele chorava, seu corpo tremia, os vincos da depressão se pronunciavam, profundos, gritantes, enquanto ele relatava sua tragédia. Eu engolia o pranto, pois precisava demonstrar uma força que eu não possuía.
Um fragmento daquele filme passou pela minha mente conturbada. Eu e Petry havíamos lido no jornal local todos os detalhes do cretino acidente. A notícia ainda rendia horas e horas de papos furados nas mesas de bar. Quem era o culpado? Quem era o inocente? Conjunturas que não trariam Lud de volta.
“Sabe, Andreas. Eu e Lud éramos muito caseiros, discretos, raramente vistos juntos por aí, entende?”, disse Kauer, lendo meus pensamentos.
“Nossa vida social sempre fora vivida além da ponte, na Cidade Cinzenta. Meu mundo fora devastado pela ausência física de Lud em minha existência. Mas o pior viria a cavalo, literalmente. Lothar, o irmão mais velho de Lud – que, por sinal, me odiava desde sempre – apareceu em minha casa poucos dias após o fim de tudo. Ele veio acompanhado de um homem com ar severo, que cheirava a encrenca. Vinte minutos de conversa, nada de café, mas envoltos em quilos de nuvens cuspidas por cigarros malditos, meu destino fora traçado, selado, sepultado.
“Perante um calhamaço de papéis infames, o Urubu despejou sobre mim tudo aquilo que eu não mais tinha direito de nada. Assim mesmo, falando desse jeito. Nada era meu. Nada me pertencia. Tudo era de Lud. E seu esperto irmão Carniça de merda afirmara que ‘as coisa’ agora pertenciam a ele e sua esposa.
“Trinta dias. Era o prazo. Nada deveria ser retirado, a não ser alguns poucos pertences que realmente podiam ser considerados meus... tudo desovado no interior de uma mochila. O tempo passou. Ganhei as areias. Afundei meus restos no asfalto.”
Fiquei atônito diante dos fatos absurdos. Johann Kauer tinha direitos. Nada podia ser resolvido assim, pá-pum-bola! O ódio galopava ascendente. Minha vontade era de pular no pescoço de Lothar e seu advogado do diabo, gastando minhas unhas manicuradas a dilacerar suas carnes pútridas.
“Eu sei o que você está pensando. Mas, por favor, não se preocupe. Eu não quero enfrentar nenhuma batalha contra o irmão de Lud. Ele fez de tudo para arruinar meu casamento, sem sucesso. Agora, sem meu eterno meninão, nada para mim carrega bom sentido. Não há forças, muito menos qualquer indício de disposição para nadar contra a ganância de homens selvagens, desonestos, homofóbicos. Desde então, uma vez expulso e excomungado, o que faço é caminhar pelas nossas praias, mantendo o orgulho de vestir minhas roupas gastas; roupas que um dia usei para sair e comprar um carro... e acabei com um robusto veículo na mão e um sensível homem maravilhoso na minha cama... durante dezoito inebriantes séculos encantadores.”
Um tempo fora do Tempo.
Kauer inspirava o perfume das Delicadas. Seu olhar permanecia vidrado nos vitrais da Grande Igreja que emanava sua piedade bem à nossa frente.
“Sabe, meu rapaz, Lud e eu sonhávamos em casar aqui, em São Crabedean. Já imaginou se isso fosse possível? Ainda mais em Lovland? O mundo seria tão diferente...”
“Uma vitória que um dia vai se concretizar, eu acredito! Mas, claro, não no seio da atual Igreja”, afirmei, resoluto.
“Sinceramente, a Igreja nada importa. A fé que carregamos dentro de nós mesmos é o que vale. Se eu tenho a oportunidade de ser abençoado pelo Criador, sem necessitar de nenhum intermediário, para que me preocupar com aqueles que juram acreditar que são seus subordinados diretos?”, continuei, buscando em mim-eu-mesmo um sorriso sarcástico bem propício para a ocasião.
“Benta, Benta, Santa Bentaaaa!”, cantarolamos em uníssono. Gargalhávamos feito lunáticos diante da nossa sincronia de pensamentos, ironizando qualquer um que se julga acima do Universo Colorido.
Universo esse que sustenta os alicerces da Igreja que ele, um dia, presidiu.
Afinal, a base da Igreja é feliz! Se não fosse a nossa arte, a Igreja jamais encantaria suas ovelhas. O Vaticano é uma comunidade de homos enrustidos e infelizes.
Eu não queria deixar Johann abandonado em praça pública. Um homem frágil, cheirando a salitre, “asarrô” e demências, definhando a olhos vistos bem diante do meu olhar estupefato, procurando abandonar sua vida terrena em prol de uma morte obscena.
“Não, definitivamente... não!”, eu gritei, quase histérico.
“Eu, Andreas Bast, não vou permitir que você se entregue assim. Não mesmo!”, vociferei.
Johann Kauer, o cansado, nem um pouco espantado diante do meu show das vinte horas, apenas sorveu mais e mais do néctar das Delicadas, ignorando minha bambeesteria.
“Certo ou errado, quem decide o nosso destino somos nós mesmos”, afirmou Kauer, enquanto espreguiçava os músculos flácidos pelo desânimo.
“Você, meu Andreas, teve a nobre atitude de dar atenção a um decrépito que almejava apenas isso: ser ouvido por alguém. Nessa hora, hora e meia… treze minutos… não sei como, você aqueceu minha coragem e pude expurgar aquilo que me corrói o espírito. Suas Delicadas, seu presente tão sensível, foram um bálsamo final a acalentar por alguns instantes a minha macilenta depressão”, sussurrou a voz da experiência.
“Eu não vou deixar você morrer, nem desistir, seu babão idiota”, eu disse, sem me preocupar com a enxurrada que descia pelos meus olhos esbugalhados. Eu tremia diante do que eu pressentia acontecer.
“Fique tranquilo, Andreas. Eu não vou me matar. Não posso aniquilar o que já não carrega mais vidas!”, afirmou Kauer, acariciando minhas mãos hesitantes.
“Por favor, deixe-me ficar aqui sozinho. Deixe-me contemplar um pouco mais esses vitrais tão lindos... o Cordeiro de Deus... cabritinho tão meigo!”
Não pude deixar de desferir uma última gargalhada pelo comentário afetado daquele homem lesado.
“É assim que eu quero imortalizar a lembrança. Deixe-me na companhia das Delicadas, do meu presente, das minhas cores. Permita-me fechar os olhos e guardar nas minhas retinas o timbre do seu sorriso tão gostoso, que me fez tão bem...”, sussurrou, mais uma vez, o velho homem acabado.
“Enten... di o rec... cado”, eu fragmentei, soluçando, tentando retomar as rédeas do meu autocontrole.
“Pelo menos feliz fico em saber que bem minhas Delicadas fizeram a você!”, conclui a frase que imaginei de um jeito e pronunciei de outro.
* * *
Cinco, seis, sete dias se passaram após aquela noite.
Lembro-me que a despedida foi algo um tanto formal demais pro meu gosto. Trocamos um breve aperto de mãos e um longo abraço. Não resisti, claro, e tasquei um beijo no meu teimoso desvanecido. Um beijo seco num rosto que parecia recoberto por escamas, onde o princípio de uma atrevida barba espessa tomava forma em velocidades, a fim de apagar ou atenuar as marcas de aflição de um homem que havia se esquecido de viver, desligado o plugue, cortado o cordão universal.
Naquela rotineira semana de trabalho, foram poucas as ocasiões em que torpedeei meus clientes com frases de apoio à suas conquistas em seus sonhos de encontros com suas afoitas princesas desencantadas. Eu só pensava e refletia e temia não ter dado o máximo de mim-eu-mesmo para apaziguar o sofrimento daquela alma abandonada que vagou incógnita pela Praça da Paz: a via sacra em que eu cruzava todos os dias o seu majestoso território.
Eu meditava, por vezes cabisbaixo, tentando disfarçar minha angústia à procura daquele corpo de carnes flácidas que liberava no ar uma mistura de decadência besuntada em restos de perfume importado.
Não havia resquícios da sua passagem pela minha existência.
Que sandice presenteá-lo com um punhado de Delicadas coloridas.
Flores chinfrins para um homem chinfrim!
Baah! Deixa pra lá. Fiz a minha parte.
Consolei por alguns instantes um coração aflito.
Fim de caso. Bolas para frente e rabo, empinado, para trás!
* * *
Petry me ligou, atarantado, pedindo pelamordedeus para que eu fosse até sua floricultura na hora do meu almoço tardio.
Eu sabia que era o aniversário de sua mãe. Imaginei Leo subindo pelas paredes em seu famoso surto histérico durante os preparativos da festa surpresa (nada oculta) que ele daria para a velha maluca, logo após o expediente.
“Ai, Migaaa... que bom que você veio. Que correria! Você sabe, não é mesmo?”, disse Leo, hiperativo, dando apreensivos retoques num elaborado arranjo de flores brancas, onde suas hastes bailavam na base de um tubo de vidro vaporoso.
Notei algo parecido com gel azulado sendo enfurnado tubo adentro, onde conchinhas e pedrinhas e firulinhas adornavam seu interior. Toda aquela pantomima petrystica dava forma, cor e graça a mais uma produção extraordinária, de tão simples e bela e desejável, tudo ao mesmo tempo.
Ainda enjoado por ter lanchado tão rápido, aguardei com paciência o final do espetáculo criativo.
“Toma. Leve isso lá pro seu salão. Minha... mãe... não pode ver o presente antes da hora”, disse Leo, de um jeito esquisito, me despachando sem piedade e sem maiores explicações.
No curto trajeto de volta ao meu santuário, eu me consumia de curiosidade para saber o motivo que levaria uma dondoca dona de floricultura querer ganhar um arranjo florido do filho herdeiro de uma floricultura!
“Ô gente estranha”, pensei alto, rindo das minhas teorias conspiratórias.
* * *
Sete e quinze. Havia passado da hora de fechar o salão.
Eu, sentado diante do tubo de vidro cheio de conchinhas paleolíticas e faceiras flores argentadas rindo da minha fuça desfigurada, aguardava as próximas instruções do meu espevitado amigo bambeestico.
O telefone tocou vinte e dois minutos depois. Atendi com certo desconforto, pois não via a hora de despachar aquele ebó florido e voltar logo para o aconchego da minha pequena, arrumadinha e confortante casinha de (uma) boneca.
Eu sonhava com minha banheira e meu jacaré de borracha, antes de encarar o grande evento.
“E aí, Dona Virgem. Já abriu o cartão?”, chilreou, debaixo de um riso tosco, meu florista gliterizado.
“Você cheirou pólen demais, Petry”, eu retruquei, um pouco sonolento.
“Você acha que eu teria coragem de fuçar em algo que pertence à sua mãe? Esqueceu como é a fera?”, esbravejei, olhando fixo para um arranjo fluorescente que continuava a gargalhar da minha canseira lavada.
“É que eu queria saber sua opinião sobre… a… mensagem… isso, a mensagem que escrevi pra ela, cacete!”
“Espere um segundo, vou pegar a porra do cartão, lindinho. Ah, primeiro vou mijar. Depois eu leio e te ligo em seguida!”
Ignorando minha bexiga, apenas estiquei um pouco o braço para alcançar o dispendioso envelope cor creme, onde o relevo do seu conteúdo interior me fez tremer um bocado, antes mesmo de ler a quarta palavra escrita numa impecável caligrafia:
“Andreas, meu amigo, como é possível um pequeno gesto ser capaz de mudar toda a trajetória de uma quase perdida existência? Numa noite de solidão e franco desespero, fui agraciado com o perfume e o colorido irradiante das minhas/suas Delicadas. Quando eu imaginava não ser mais digno de carinhos e atenção, um belo exemplar de Estranho sentou-se ao meu lado e, sem nada exigir, apenas ofereceu a um pobre coitado alguns minutos de fraternidade. E ainda fui agraciado com um inesquecível presente, o qual agora, ao meu modo, procuro retribuir em sinal de agradecimento sincero por você ter salvado a minha vida de mim-eu-mesmo...”
Eu queria gritar. Talvez mais! Eu queria era berrar pra todo mundo ouvir o timbalear incessante do meu coração aos trancos. Absorvi com gosto o leve perfume adocicado das minhas Delicadas e fui brindado com uma visão do Paraíso bem à minha frente.
Johann Kauer, o velho renovado, agora barbudo e – para mim – ainda mais belo, repousava seu astuto rosto cansado no vidro do lado de fora, observando sei lá por quanto tempo todas as minhas reações diante de tão perplexo presente.
Abri a porta, abri os braços, abri as travas dos três cadeados que bloqueavam a passagem para o meu íntimo. Notei que Kauer, apesar da aparência ainda depreciativa, trajava roupas limpas e seu corpo emanava o deslocado aroma de um sabonete popular.
“Me aceite como seu fiel amigo”, disse Kauer, cobrindo-me com um abraço-irmão. “Ajude-me a voltar a ser um homem centrado e feliz, apenas isso é o que lhe peço, Andreas”, implorou o velho, traçando o sinal da cruz com seu dedo indicador frio e rígido, bem na altura do meu coração duzentos e quarenta por hora.
“É claro que eu aceito você na minha vida. Prometo fazer tudo o que estiver ao meu alcance para transformá-lo em um homem realizado”, respondi com um clichê embasado numa tremenda sinceridade.
“Hoje você é meu convidado de honra. Amanhã você organizará seus poucos pertences. A minha casa será a nossa casa. Vamos repousar uma grande pedra sobre o Passado. Precisamos começar do ponto zero, exatamente como tudo deve ser feito”, continuei, disparando frases sem me preocupar com lógicas, deixando as coisas claras desde o princípio de tudo.
Kauer buscou meus lábios, que aceitaram de bom grado um beijo úmido e agridoce a selar nossa parceria.
Eu tive que assumir que estava apaixonado!
Entre beijos, sorrisos e afagos, Kauer havia me explicado que passara os últimos dias num recém-descoberto abrigo – destinado a homossexuais que sofreram qualquer tipo de violência – administrado por amigos, um casal de idosos gays, no leste da Cidade Cinzenta. Ele tentou se fortalecer emocionalmente, meditando e assumindo a última chance de viver com dignidade.
Com vergonha de me abordar, temendo uma reação negativa da minha pessoa, ele buscou na tarde de hoje – por instinto – um contato com Petry, que prontamente revelou ser meu melhor amigo, entregando minha ficha completa ao meu pretendente, tomando para si o papel de cupido numa louca e verídica história de amor.
“Eu não sei se vou conseguir lhe retribuir o Amor que você merece”, murmurou o velho homem, entre lágrimas e afeição.
“Mas eu prometo que...”
“Pare!”, eu disse, tapando a boca peluda com um beijo rápido.
“Não faça promessas. Apenas entregue sua alma combalida aos meus cuidados. E nós dois, juntos, encontraremos a fórmula do que pode vir a ser o nosso Amor... à nossa maneira.”
Johann Kauer, o renovado, o novo hóspede do meu coração, baixou todas as guardas e relaxou seus prantos em meus braços inacreditavelmente fortes perante a insólita situação revelada. Amparado e seguro, Kauer inspirou, prendeu e soltou o ar empapado em L'Oreal que infestava meu pequeno grande salão de homens que entravam monstros e saiam príncipes.
Morriam as palavras. Sobravam as atitudes.
Quase num sonho, como numa dança contemporânea, capitaneei o amado definitivo na direção do meu trono de ferro e couro. Ainda em transe, minhas tesouras mágicas e minhas mãos bailarinas transformavam o Fera em Belo, novamente.
Um rosto quase maroto, delicioso em sua sensualidade, surgiu radioso após a derrocada de barbas, cabelos e pelos empesteados pela Dor, que jaziam disformes ao redor do meu trono romano. Serviço muito bem executado. Transformação completa. Meu novo macho – um novo homem! – surgia para o mundo dos Homens, agora limpo e purificado, refeito e preparado para o desenrolar de uma linda história.
“Vamos para casa. Você precisa curtir um bom banho, experimentar roupas de festa e tamb...”
“Agora… eu não necessito de mais nada, Andreas, meu rapaz”, sussurrou Kauer, cortando minhas palavras maternais.
“Eu me sinto renovado, pois tenho uma luz a me guiar: Você. E ainda guardo o perfume das novas Delicadas a inebriar esse instante de alegria, de prazer, de contemplação do Belo, do Perfeito, do Absoluto”, concluiu o idoso pra lá de jovial.
“Oiiii bambeepeopleeee!”, berrou Petry ao praticamente destruir a porta do meu salão.
“Peço desculpas por invadir o ninho dos pombinhos unidos graças a mim-eu-mesmo, mas não se esqueçam de que temos uma festa para marcar presença daqui a pouco, viuuuu!”, cantarolou o Super Bambee.
“Maricona, a senhora está com uma cara ótima! Ai meu Jeovacristinho... o que minhas flores e umas boas tesouradas da minha miiigaaa não fazem pelos homens malucos dessa ilhotaaaa”, encerrou Leo, um pouco mais modesto que o de costume.
“Precisamos de um banho e logo estaremos ‘montadas e lindas’ para a tradicional festa que não é surpresa da sua santa mãezinha, meu lindinho”, eu disse, tentando ser ouvido acima das gargalhadas únicas de um Kauer remoçado ecoando no ambiente de loucas renovações.
* * *
A madrugada engatou a primeira marcha e assim deixamos a casa dos Petry pouco depois das duas.
Caminhando pela praia de Gobsun, cartão-postal de Lovland, Kauer e eu arrastávamos os pés nas marolas, de mãos dadas, apreciando um azul prateado vindo dos céus, presente de uma lua grandiosa a abençoar a dança dos enamorados.
“Até que a Sra. Petry não é tão rabugenta como vocês pregam”, disse Kauer, longe de saber toda a verdade.
“É porque, ao chegarmos, ela já estava levemente cervejada”, retruquei, rindo, afirmando o essencial.
Foi uma noite tranquila, muito agradável, onde além dos mimos ganhos pela aniversariante, notamos que na verdade os quatro integrantes do aprazível jantar saíram presenteados, agraciados com um novo recomeço. Dona Olga “Rabugenta” Petry ganhou um fascinante colar do filho, todo trabalhado em ouro e pedras peroladas que faiscavam beleza e até mesmo luxúria. Ganhou também a alegria e a companhia do filho único tão idolatrado e a chance de viver mais um ano após vencer a batalha contra um tumor encontrado no seio esquerdo.
Leo Petry ganhou o direito de compartilhar sua vida por mais tempo ao lado da mulher que ele tanto amava. Ganhou a companhia e o carinho do fiel amigo de tantas e tantas encarnações. E agora acabara de ganhar mais alguém que certamente faria boa diferença tanto em sua vida, quanto no agito da sua querida floricultura, já que Kauer – sob as bênçãos da Sra. Petry, durante o jantar – fora surpreendido com o anúncio de um emprego!
Ganhar: a segunda palavra mais bela do meu dicionário, depois de “Saudade”.
Eu ganhei uma noite memorável, compartilhando minha existência junto das pessoas que representavam o alicerce da minha trajetória, onde um raro elemento fora adicionado de um jeito amalucado, é verdade, tomando lugar no vazio aberto por Lauros, Franzs, Vlads, entre outras picas e cérebros que deixaram suas marcas bem profundas nas entranhas do meu coração. Meu espírito, minha morada e minha existência abriam espaço para um desconhecido que mendigara apenas um resquício de atenção. A Confiança me transformou num homem de sorte.
E Kauer, no final das contas, ganhou dois novos amigos, um possível amor (ao menos, seguro companheiro), um emprego em boa hora, uma chance de se realizar…
... e tudo isso por causa de uma atitude espontânea, um desejo profundo de se praticar o Bem, onde os ingredientes simples, exatos e abundantes estavam ao alcance das minhas mãos: uma pitada de Vontade, duas colheres de sopa de Coragem, trezentos gramas de Decisão, quatrocentos gramas de Carinho e, é claro...
... meia tonelada de Desejo de ser e fazer alguém feliz!
Porém, justiça seja feita: se não fossem alguns gramas de Delicadas multicoloridas e cheirosas espetadas num vasinho feito de lata de leite em pó, pintado de verde-mar...
Atualizado em: Qua 12 Abr 2023