- LGBTS
- Postado em
Chico
Outubro de 1994.
O domingo era para ser mais um dia comum e corriqueiro, isento de novidades. Eu não esperava que o passado fosse novamente incomodado. Sentimentos que eu acreditava sepultados vieram à tona com força redobrada. Estou confuso, mas não devo atropelar o bom andamento do relato. Continuemos.
Sem mudar minha ferrenha rotina, eu caminhava pela Avenida dos Ferroviários sob um sol de novecentos graus a incinerar o que restava dos meus rudes cabelos negros e miolos acinzentados ainda intactos.
Com os pelos sedosos derretendo por baixo da bermuda de algodão, eu andava a passos ligeiros e pensava com vagar na vida, no futuro e nas metas que nunca seriam cumpridas.
Reparei que muitas pessoas compartilhavam o mesmo estado catatônico. Cada zumbi embotado em seus pensamentos tristes, suas preocupações infundadas, seus mundos sufocados pela dona Mediocridade.
A necessidade que eu tenho de caminhar sem destino é um vício que não quero controlar. Transpirar me renova a tríade: corpo-mente-espírito.
Meus problemas? Eu resolvo caminhando.
Minha vida toda é alicerçada sobre meus passos largos ao longe.
Mas confesso que algo como que me arrastava para fora de casa naquela tarde infernal. Eu precisava desesperadamente pôr os pés nas ruas. Era imprescindível sentir a quentura do asfalto.
Enfim... Ferroviários! Caminhei, sempre sozinho, de um lado da pista; depois voltei pelo mesmo trajeto, agora do outro lado.
Você sabe como é. Você já me viu tantas vezes por lá, não é mesmo?
* * *
Foi uma grata surpresa encontrar com o Milton, assim, de repente. E lá estava ele, todo sorrisão aberto (que bom ter um namorado dentista!) a pouco mais de cinco metros, vindo em minha direção todo saltitante, dentro do seu modelito-praia que nada tinha a ver com a moda-asfalto.
Depois dos tradicionais cumprimentos entre parentes bambees – com direito a beijinhos e biquinhos que chocaram meia dúzia de velhotes que cooperneavam pela avenida –, resolvemos caminhar juntos pela estrada afora.
Papos conservadores e convencionais. Aquelas conversas porrentas sobre nossas famílias, nossas vidas particulares, nossos amores, nossos amigos, nossos trepantes… coisas sem importância.
Caminhamos e cantamos uma canção do Abba, braços dados, quase irmãos. Paramos para recuperar o fôlego e fugir do calor insuportável, jogando nossa purpurina debaixo das convidativas árvores lá do Sororoca.
Sim, pode rir. Você vai rir. Um parque público tão antigo, tão delicioso e tão perto da casa materna e, acredite, em todos esses anos de Jundiaí eu jamais havia entrado lá!
Nunca damos o devido valor ao que de melhor há em nossa cidade.
Já abastecidos com nossas cervejas e fugindo um pouco do som alto e distorcido que vinha do bar improvisado, sentamos à sombra deliciosa de um quiosque rústico e falamos sobre questões homossexuais, sobre AIDS, sobre amigos perdidos.
Depois, para espantar esse papo triste, começamos a fofocar sobre tudo e sobre os outros. Algo bem, bem, bem bambee.
E dá-lhe agulha e lã!
Nesse momento me dei conta que ele já estava na sua terceira (ou seria a quarta?) cerveja em lata. Mas é engraçado como meu tio Milton não se altera em nada por causa da bebida.
Já era quase noite quando deixamos o local. Eu me preparava para a despedida trivial quando ele me convidou para conhecer sua casa nova.
Um tanto contrariado, mas sem coragem de dizer um “não”, lá fui eu, cansado, mas sinceramente contente em estar na companhia do único parente dos lados do meu pai que eu ainda mantinha contato.
Confesso que foi emocionante rever meus avós paternos. Naquele instante reconheci que não somos nada no transcorrer de uma existência. Após tantas idas e vindas, desavenças, orgulhos bestas, mágoas e uma montanha de coisas negativas, eu estava ali, novamente, na presença deles. Senti meus avós tão frágeis. Eu me vi tão impotente diante da experiência e da humildade deles.
Aceitei que algum dia eu também estarei velho. Se eu não for levado antes, aos cinquenta e seis. Por culpa minha.
Intuição. Apenas uma pontada de intuição. Quero aceitar piamente que terei uma velhice solitária, sem parentes, sem um homem para amar. Talvez eu apenas possa gozar da amizade e da fidelidade de um vira-lata qualquer, certamente o último grande amor da minha existência, se assim eu merecer.
Junto dos meus acanhados avós presentes na imensa sala e ausentes nas passagens mais importantes da minha vida, não dei trela ao passado, ignorei o meu orgulho retardado e fiz um tremendo esforço para amá-los como eles são. Desejei em oração que eles tivessem uma velhice feliz, juntos.
Milton me convidou para conhecer seu quarto recém-reformado. Ficamos um bom tempo conversando futilidades, tudo regado a mais cerveja e ao som de um The Best of do Abbacate insosso.
Gimme, gimme, gimme a maaannn after midniiiight...
Logo depois fomos até a cozinha. Sentamos em volta de uma pequena mesa branca de plástico, coberta por uma toalha também de plástico, cheias de motivos florais. Tudo muito limpo e organizado, algo bem “casa da vovó”.
O cachorrinho do meu tio – que se chamava Grace Kelly! – destilava suas travessuras, pulando daqui pra lá, de lá pra cá, tentando chamar nossa atenção. Achei a cena divertida e um tanto comovente.
Eu AMO cachorros.
E dá-lhe mais papo furado... e também mais cerveja!
Tudo era perfeito. Um domingo-titio-sobrinho-feliz.
Com chave de platina, eu fechava um dia bem proveitoso. Afinal, fazia séculos que a gente não conversava assim, só nós dois.
Lembrei-me que a última vez em que eu e meu tio estivemos juntos foi no casamento da minha irmã, Cristina.
Não demorou muito para que um assunto entalado trouxesse novo rumo para o nosso bate-papo descontraído. Eu nem sei exatamente como surgiu a razão do choque, mas bastou uma simples frase para paralisar de vez meu coração.
Meu tio Milton fez um comentário sobre você. Abriu as revelações, entre pigarros e uma boa dose de sarcasmo, afirmando que de vez em quando ele cruzava com você na Avenida dos Ferroviários.
Comentei, sem graça, que eu também costumava vê-lo com frequência desfilando de bicicleta; muitas vezes acompanhado com um ou outro amigo. Mas eu era sumariamente ignorado, a contragosto.
Enquanto meus pensamentos divagavam na saudade, Milton soltou a maldita frase: “O Chico ainda ama você... desesperadamente!”.
Acho que parei de respirar durante setecentos segundos, pois não consegui esboçar nenhuma reação natural. Eu não esperava ouvir aquilo.
Voltei minha vida ao fatídico setembro de 1989. Minha razão tentava me controlar, enchendo minha mente de respostas lógicas, porém nada confortadoras.
Meu tio não me aliviou detalhes de nada. Eu, por dentro, entrava em desespero por respostas verdadeiras do que ficou pendente num longínquo: “A gente se vê!”.
Ah, Chico, o filme do nosso passado inundou meu espírito de doces recordações. Havia detalhes que eu realmente não sabia. Talvez jamais soubéssemos de toda a verdade.
Meu tio percebeu meu estado emocional beirando o “péssimo” e tentou em vão mudar de assunto.
Falou, falou e falou outras baboseiras que para mim-eu-mesmo já não sustentavam nenhum sentido. Para piorar a situação, Milton disse, numa segunda frase que ficou solta no ar, que você, hoje, me odiava!
Sinceramente – nem sei exatamente se aceito ou não esse fato – acho que tenho que concordar com ele.
* * *
Agora estou aqui. O domingo já desencarnou e cá estou sonhando no fim da madrugada de um novo dia. Eu não consigo abandonar a cama que acolhe meu corpo amarfanhado.
Confesso: de um jeito maduro e sereno, ainda te amo, Chico.
Você foi um homem marcante em minha existência.
Só quero, um dia, olhar dentro dos seus olhos castanhos e lhe perguntar com meu olhar melado se você realmente me amou com toda a força do...
Você sabe onde eu quero chegar.
Sonho em rever aquele brilho no seu olhar. Como aconteceu da primeira vez quando unimos nossas almas num amor que deveria ser perfeito. Foi um acampamento inesquecível.
Se o Amor ainda existir, o brilho e a intensidade do nosso olhar único confirmarão minhas suspeitas.
Quando estou nervoso e sem parâmetros, sou repetitivo, eu sei! Acho que eu ainda guardo uma ligeira esperança de voltar a ser amado por você. Apenas ser amado para ser perdoado, nada mais.
Atualmente corremos em raias diferentes. Não sou capaz de voltar atrás nos meus duzentos metros. Sei que cometi muitos e muitos erros em nosso relacionamento infantil. Certamente eu fui uma criança mais do que mimada e irresponsável em nossa época de convívio.
Mas uma coisa eu posso lhe assegurar: meus sentimentos por você sempre foram os mais puros, os mais sinceros, os mais honestos. Eu não fui o primeiro homem da sua intimidade, mas confirmo que fui aquele que você mais amou. Sei disso porque simplesmente fomos o Primeiro Amor um do outro!
Perdoa-me por esse relato de palavras sem um pingo de originalidade, mas é no ridículo do comum que encontramos os absurdos das nossas faltas e tentamos, de um jeito capenga, remendar as imperfeições das nossas relações.
Tenho muita coisa ainda para escrever. Mas não no instante de hoje. Talvez noutra encarnação.
Sabe Chico, se um dia você descobrir o conteúdo das minhas ressalvas, eu gostaria de receber o seu perdão. Eu gostaria de tentar sentir seu sorriso mais uma única e última vez.
Hoje são letras digitadas na tela de um computador jurássico e daqui a alguns instantes minhas frases remelentas estarão gravadas num disquete antiquado.
Não sei se, algum dia, terei coragem de imprimir e postar uma última carta implorando algo que talvez eu não mereça. Eu sei muito bem onde errei. Mas ainda não sei de onde você encontrou forças para tanto me odiar.
Vou esperar – com paciência e humildade – o dia em que eu talvez esteja diante do meu primeiro homem, focar bem dentro dos seus olhos, rever aquele brilho único que compartilhávamos e lhe dizer, com a voz suspirando do meu coração:
“Chico, você não aceita a realidade de como verdadeiramente nos amamos?”
Atualizado em: Qua 12 Abr 2023