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Balas de Agosto

“Dia dezoito. E ponto final!”, vociferou Wagner, tentando ser categórico.
Quase impaciente, tamborilando o polegar fofuxo sobre o tampo de vidro da nova mesa da sua sala de reuniões recém-maquiada, ele me encarava, atônito com minha indiferença embutida em devaneios.
Pra variar, eu lia seus pensamentos:
Tempo é dinheiro. Tempo é dinheiro. Temp...
Money, money, money...
“Wagner, Wag, Wagner. O dia, para mim, não carrega a menor importância”, eu sussurrei, debaixo de um dispendioso sorriso artificial descaradamente sarcástico. Eu sabia que essa reação infantil tirava meu mecenas do sério.
“Desde que seja em setembro, qualquer dia é o dia!”, tentei encerrar a discussão, bocejando além da conta, tentando segurar o riso apreensivo.
“Mas, como sou boníssimo, vou abrir um parêntese para você”, continuei, disfarçando minha insegurança, enquanto me divertia amparando com as mãos manicuradas, durante quatro minutos exatos, meu rosto afogueado espremido na grande janela, vendo os carros parecendo legobrinquedinhos ziguezagueando lá do outro lado da vida.
“Ziemann, Zi, Ziemann. Temos um calendário apertado pela frente. Você sabe o quanto batalhei para conseguir uma data possível na porra desse seu mês tão especial, mas...”, argumentou Wagner, num lamento insosso, como se fosse a última cartada da Imposição.
Não permiti que ele choramingasse. Wagner sabia o quanto era importante para mim que tudo fosse arranjado em setembro.
Setembro não era nenhuma sandice ou implicância de minha parte. É necessário que eu continue a acreditar que tudo de bom a mim-eu-mesmo sempre acontece no nono mês.
Alguns exemplos práticos? Meu primeiro sucesso editorial fora escrito num triste e solitário mês de setembro. Foi num final de setembro que assinei meu primeiro contrato. Também em setembros passados tive a chance de conhecer meus (três) grandes amores ou, vá lá, até mesmo alguns caras que se tornaram fantásticos fogosos amantes... durante raros encontros, devo confessar.
Setembro é mágico para mim. E isso me basta!
Aqueles olhinhos da cor do avelã, circundados por grandes manchas cafeinadas, denunciavam muitas noites sem sono naquela cara de coitado-safado. Resolvi baixar as armas. Não insinuei nenhuma exigência adicional. Eu não podia sacrificar o prazer do contato com meus primeiros fãs por causa de uma afetação bobiça de minha parte.
“Tá certo. Dezoito de agosto. Mas, por tudo que é mais sagrado, marque o início para...”
“... depois das oito, eu já sei, eu já sei. Fique tranquilo, meu ursinho blaublau de brinquedo”, chilreou Wagner, despejando sobre mim uma deliciosa, demorada e contagiante gargalhada: sua marca registrada quando vencia a batalha.
Minha cara de espanto denunciava meus suplícios oitentistas. Além disso, se você quer ganhar um sopapo na fuça, basta me chamar de “ursinho”, “ursão” ou apenas “urso”. Eu me acabo no ódio perante rótulos tão imbecis.
“Não sei se te espanco por causa do ursinho ou por ter me lembrado dessa música tão... tão... bubblegum. Aiii, eu te odeio, senhor Wagner. Agora vou ficar com a porra da melodia medonha me infernizando os pensamentos até altas horas!”, gritei, bem bambeestérica, algo forçado que em nada combinava com minha reclusa personalidade.
Sou um gay fora do meio, que escreve sobre o meio pelo simples fato de conhecer o meio por inteiro.
“Ai di mim ai... ai Blau Blau... eli não me queeerrr”, cantarolou em falsete aquele um e sessenta de homem, levantando o elegante corpanzil da sua exuberante cadeira de couro (design italiano, valor os-olhos-da-cara-do-meu-cu), cobrindo em seguida meus ombros e meu peito largo com um abraço paterno, tentando sussurrar no meu ouvido a porra da música que um dia eu idolatrara, intercalando a canção paleolítica com um convite tardio para almoçarmos juntos.
Meu estômago aceitou a chamada.
E lá fomos nós três, felizes a cantar. O celebrado escritor homopopista, o empresário-clone do baixinho da Kaiser e, claro, o espírito do Ursinho Blau-Pau a aprimorar minha síncope criativa.
* * *
Tá certo. Já enterrei minha cabeça na areia. Eu confesso!
Eu morria de vontade de transar com o tal cantor da tal música, quando eu era um dezesseis-semi-virgem-ingênuo que acreditava piamente que os anos 1980 eram o máximo. Quantas punhetas, Blau Pau... quantas punhetas!
* * *
Eu estava nervoso, alterado, ansioso e amalucado de tesão com o decorrer dos acontecimentos. Três dias para o lançamento do meu segundo livro: “Alianças”.
Dessa vez, o ponto de partida da nova empreitada se daria em Lovland, meu outrora refúgio, minha casa de ideias, a fonte primal da minha prosaica inspiração.
Meu livro anterior, “Superlov.i.e.”, fora lançado dois anos atrás em festas badaladas e enfadonhas praticadas nas grandes capitais país afora.
Tudo dentro do circuito, tudo no mesmo esquema datado.
Wagner é um bom padrinho. Devo admitir: ele é o meu Salvador.
Mas agora, já tarimbado e conhecido e um pouco mais respeitado, finalmente gozo a liberdade e a audácia de jogar sobre a mesa do Império as minhas primeiras cartas não mais rasuradas.
Não posso negar que achei nobre e bonita a atitude do meu “cuidador” em permitir que minha segunda tacada de mestre fosse iniciada na minha terra, sob as bênçãos do meu mar sereno e tendo como madrinhas as areias revigorantes e as gaivotas solenes a prestigiar a derradeira pisadela no penúltimo degrau do meu violáceo sucesso.
Além disso, Clara e Estela mereciam minha presença na sua simpática livraria. Na verdade, foi onde tudo começou.
Palavras de Estreia fora o cubículo encantado onde gastei tempo de sobra a viajar pelos lugares mais fantásticos do universo dos machofêmeas peludos.
Ao mesmo tempo em que eu criava feito um idílico lúdico, ainda encontrava lapsos de liberdade para conviver com homens, mulheres e seres mágicos, iluminados, perversos e amorosos que rechearam minha imaginação em encontros reais e fascinantes.
Recordo, disparando gargalhadas bem sonoras a espocar em minha mente, que eu espantava a Senhora Solidão para bem longe do meu reino, enquanto me embriagava nas palavras poéticas e me intoxicava nos parágrafos de impacto cortante das histórias de Genet, meu divino mestre do mais belo inferno.
Lembro-me que jamais havia um tostão furado no bolso da minha única e surrada bermuda preta, quase chumbo, após anos e anos de nada.
Eu não podia comprar aqueles livros. Em troca, eu adorava limpar, espanar, arrumar, empilhar e ajudar na catalogação de cada título, de cada barra de ouro.
Clarinha, tão tímida, branquinha, sardenta e magrinha. Quanta saudade. E Estela, a fofa-morena-jambo mais linda e comunicativa que havia na ilha. Recordar aquele sorriso incomparável do casal de mulheres que a todos encantava. Oh, quanta saudade!
Magra e Gorda, as meninas da livraria da esquina, assim elas eram conhecidas. E aqui não há nada de maledicente ou pejorativo; apenas fora o jeito carinhoso que os nativos tratavam suas joias mais preciosas, sempre com um toque de irreverência.
Na ilha, é incrível apreciar o casal Tolerância e Respeito que anda de braços dados por todo lado, sorrindo sem parar, cumprindo com louvor a Grande Missão.
Foi na livraria da Rua Weiss que ganhei uma mesa nos fundos de uma salinha repleta de livros empoeirados. Eles aguardavam, pacientes, a hora de bailar nas prateleiras da modesta sala de leitura, abrilhantando com seus conteúdos mágicos a vida de um ser ignorante em busca da Evolução.
Foi na clausura desse meu mundo indivisível que tomei emprestado o Vostro da Gorda. Freneticamente possuído, passei a dedicar horas, depois dias, em seguida noites sem fim a dedilhar com fervor fanático sobre o teclado do clássico notebook, despejando na tela quase sem brilho todas as maluquices baseadas na Verdade Colorida que pipocavam na minha mente embotada no vinho barato que servia para espantar o frio da minha insignificância.
Jamais fui incomodado. Apenas incentivado!
Insignificância é uma palavra bonita que soa bem aos meus ouvidos. Tenho consciência de que até hoje eu não valho nada. Sou um homem diminuto. Já minha arte, ela carrega seu devido valor. Ela, sim, mesmo sendo descartável, é grandiosa.
O resto são apenas memórias!
De repente, Wagner surgiu em minha vida – indicado por um misterioso Não-Sei-Quem – e acreditou em mim-eu-mesmo, de olhos bem fechados.
Caminhamos juntos, rumo ao sucesso, com almas bem despertas.
Dias de vitórias.
Eu cheguei lá!
* * *
“Nervoso? Quer uma massagem?”, insinuou Wagner, meu protetor, que tremia mais do que uma bambee-bate-cabelo em noite de caloiras.
Abismado, da cozinha do meu antigo reinado eu olhava para o outro lado da rua. Apesar do frio bem sem graça e fora dos planos, uma multidão de rapazes, moças, Bambees, Bofies, Traves, Enrustidos e até mesmo um emaranhado grupo de cidadoidões acima de qualquer suspeita sexual (mas não moral) permanecia firme do lado de fora da discreta livraria.
Depois da chupeta no São Pedro, a chuva havia dado uma trégua. A mídia local preparava as armas rudimentares para o começo de uma guerra de egos plastificados.
“Humm, tirando o séquito que te faceidolatra... bem... para quem está fora há anos, até que os nativos têm um grande apreço pela sua digníssima penugem”, resmungou Wagner, irônico, procurando em vão alcançar meus ombros rígidos, tentando relaxar minha angústia, meu nervosismo, minha euforia.
“Que nada. Muitos que estão na fila querem apenas conferir com os próprios olhos até que ponto a Grande Ursa Ziemann conseguiu ser alguém após atravessar pra lá da ponte. Sim, é infame. Eu tenho que rir da minha asneira. Mas pode ter certeza que essa parcela mínima da comunidade não está nem aí pelo que representa meu trabalho. Querem apenas aparecer. Querem curtir a ilusão de achar que são importantes ou insubstituíveis no meu instante único. Dou um exemplo. Olhe lá. Aquele grupinho ali, debaixo do segundo poste, quer conferir se trechos das suas vidas medíocres foram romanceadas pela minha sensibilidade. Metade vai cair das pernas. Olhe, olhe! Até o Prefeito está na fila. Comportado e de boca fechada!”, divaguei com desdém, ao ver o único ser homofóbico que tanto havia me crucificado, marcando ponto cerrado num evento histórico que abalaria as estruturas daquele amado monte de areia perdido no oceano.
Eu era o capitão que finalmente alçava Lovland ao topo da atenção nacional. Era chegada a hora dos seus vinte e quatro minutos de fama.
“É verdade. Sabemos que ele está plantado lá fora por dois motivos: Quem é Quem está em peso aqui e, claro, nada mal angariar alguns votos bambeesticos. Afinal, ano que vem haverá eleições, não é mesmo?”, ironizou Wagner, enquanto acalmava minhas mãos antárticas, esfregando-as entre suas mãos macias, que emanavam um calor paternal, quase sensual, exalando lavanda.
* * *
Adoro meus fãs.
Sem uma gota de hipocrisia na minha afirmação, tudo o que escrevo e exponho e revelo é baseado nas vidas cinzentas daqueles se besuntam no sangue das minhas verdades romanescas.
O momento explosivo de sair do casulo e estar de corpo presente a fim de rabiscar as primeiras páginas dos meus livros, dar centenas de abraços em desconhecidos, posar para milhares de fotos com o rosto e o perispírito colados a corpos de todos os tipos, tamanhos e cores que vibram em uma única sintonia de paixão; de poder finalmente sorrir com vontade e ouvir com atenção os anseios dos meus Iguais. Tudo isso me transporta para bem alto, colocando-me em contato direto com a face esquerda do Criador (nosso melhor ângulo para fotos de publicidade).
E é por isso que afirmo, emocionado, que tudo valeu a pena.
Vale muito estar aqui, agora, só eu e você.
* * *
Adoro jornalistas.
Sou querido por todos aqueles que possuem mais de três neurônios ativos na cachola. Amo passar horas sendo sabatinado à exaustão e assim carimbar a exposição daquilo que vivo, crio e carrego de melhor em mim-eu-mesmo, estampando na arte literária e nas palavras certeiras baseadas em fatos concretos o que deve e pode ser consumido por todo aquele que busca se conhecer melhor.
Eu sou o espelho encantado dos meus leitores. Sou proprietário de múltiplas chaves de todos os armários. Destravo todas as portas e cadeados e deixo a luz entrar. Salvo vidas, afago almas, liberto homens da demência imposta pela era esquecida da Mediocridade.
Eu sou o Antídoto. O Alicerce. O Porto Seguro.
As armas mais poderosas podem ser encontradas nas entrelinhas das minhas frases clicherianas. Parágrafos que carregam aquela magia libertadora, trazendo alívio mais do que imediato contra todos os males emanados pela Ignorância.
São Ziemann. Ziemann são. Longe da demência.
Chega a ser irônico levar uma existência tão monástica como a que levo; apenas consumir a vida escrevendo, jogando Damas ou disputando TrackMania contra a Senhora Solidão, e dividindo o que me resta de amor com minhas sobrinhas e minha Cambota, a “priscila” do eterno olhar tristonho.
De repente, como num passe de mágica que sempre termina alguns minutos antes das doze badaladas, cá estou diante de uma multidão que me venera, que tenta me decifrar, que degusta meu cheiro e o calor dos meus fartos pelos agudos durante alguns segundos, em deliciosamente apertados e inevitáveis abraços ursinos.
Assim me entrego e me revelo a todos. Dessa maneira suplico aos presentes a leve porcentagem de um milésimo de atenção.
É pena que minha Melissa de cristal permaneça sempre abandonada nos fundos do salão. Não encontro príncipes encantados dispostos a desvendar meu sorriso enigmático no seio da história da minha real existência.
No final da festa, se eu resolver estalar os dedos, sou agraciado com fogo e pintos e bundas por uma madrugada e nada mais. Pois no pacto firmado com o diabo inventado das minhas fantasias, não me foi permitida qualquer possibilidade de quebrar o encanto do meu sucesso com a experiência de um (novo) amor verdadeiro.
Sou um homem que não pode mais possuir outro homem por inteiro. Talvez eu não queira. Talvez eu não mereça. Essa é a única questão da minha existência a qual não encontro respostas concretas.
Só meus machos-personagens têm direito a finais felizes. O escritor deve se contentar em gastar calorias nas virtuais fodarias incessantes, onde o último prêmio é aquela mancha solitária compactada sobre o lençol.
Eu grito. Sufocado. Leia-me, leia-me!
Assino uma porrada de “para fulano, com sincero amor e desmedido carinho, Ziemann”. Mais do mesmo, clichê sobre clichê, mas é isso o que você quer. É o que eu lhe ofereço, onde apenas acrescento uma pitada de Coragem e duas gotas de Ousadia.
E dá-lhe homossexo!
Assim sou eu. Este é o Ziemann.
Durante o lampejo, eu sou amado. Posso vislumbrar o incandescente brilho nos seus olhos tímidos. Caço uma aventura ou um amor que eu não mereço ao tocar sua mão e trocar uma energia periférica. Esbanjo minha sensualidade não somente nos enredos das minhas histórias fantásticas ou nos meus homens robustos, sensíveis, fabulosos. Nas entrelinhas, eu imploro por uma probabilidade de ser amado por você, mas você nunca escuta o que estampo escrachado em tramas muito bem costuradas.
Voltemos à realidade da noite. Passe-me o livro. Abro o sorriso automático, porém honesto, versão 5.2, em gotas de pura porcelana.
A quem devo assinar?
“O próximo!”, grita Wagner, eufórico, imaginando o toque suave das digitais notas loveanas sendo visualizadas na tela americana, conferidas com alegria e devoção no final da festa.
Money, money, money... Abba, Abba, Cadabra!
* * *
De repente, meus sentidos são fisgados por um zum-zum-zum fora de esquadros. Vislumbro alguém sendo empurrado na fila, bem na entrada da minha Palavras de Estreia. Sinto um estampido surreal. Balas de agosto? Bang bang bang... na minha ilha?
Minha mente, agora no piloto automático, recordava horrores do passado. Meus amigos coloridos mortos, onde apenas o vermelho sombrio sugava a alegria dos velhos rapazes alegres. Minhas longas pesquisas para os meus enredos. Entrevistas e depoimentos emocionados, velados, excruciantes, que resultaram em mais um sucesso: meu novo filho, “Alianças”.
Clóvis, o personagem principal.
Começo tenebroso. Meio confuso. Final revelador... e feliz.
Balas de agosto? Bang bang bang... na minha ilha?
Eu ainda apalpo manchas de Aflitos se destroncando de um lado para o outro bem no centro das minhas retinas embaçadas. Uma dor lancinante no peito. A segunda angústia. Incrédulo, olho para o meu protetor, meu amigo, meu alicerce. Ele procura, em vão, forças para permanecer em pé. Justo Wagner, meu homem-pai-editor e que nessas horas deveria reassumir o cargo de meu anjo em guarda!
Anjo, anjo. Eu beijo suas asas.
Estela, minha gorda tão amada, travestida em azul e dourado, como uma autoridade máxima que embola minha imaginação, corre até a porta, alucinada.
Continua o zum-zum-zum. Eu espanto uma lágrima de espanto.
Eu ainda acaricio as asas alheias. Elas perdem a sustentação e se rompem num horizonte irreal.
Ziemann sai de si. Ziemann grita. Ziemann empurra uma caralhada de bambees afoitos. Pelo caminho errante, Ziemann espalha purpurina importada do antigo Club Babylon. Ziemann desgrenha maquiagens e aniquila penteados. Ziemann ganha a rua embaçada, abrindo espaço na noite cálida.
Estela corre, arfante, atrás do agressor. Suas pegadas no asfalto molhado são seguidas por uma legião de militantes loveanos que não aceitam a covardia daquele ato insano.
Oh, Darel. Que monstro teria coragem de atirar à queima-roupa numa criança tão indefesa?
Ziemann – mim-eu-mesmo! – joga o querido boné aos ventos e ajoelha diante do anjo com cara de menino assustado.
“Ziemann... cadê vo... você... eu vim a... qui só pra te...”, o anjo cantarola, sorriso desfeito, desafinado, o clichê medonho que entoamos nos shows das estrelas que ainda não ganharam nossos palcos de ilusão.
“Não diga nada, minha criança... não elimine suas forças... eu estou aqui”, um Ziemann desnorteado relincha em contralto, sorrindo patético, tentando desesperadamente focar uma fortaleza diante do inevitável.
“Eu and... andei oito… vinte e oito quilômetros... vint… só pra te ver... passei a ponte... pé ante pé... centro de Downie... ponte... para... Lovl... livraria”, o anjo balbuciava, alucinado, buscando fatiar um pedaço do ar orvalhado a fim de preencher seus pulmões calcinados.
“Mi desculpa, Sr. Ziemann. Eu não ten... tenho todo o dinheiro para comprar seu último livro... mas eu queri... ria conhecer o senhor, as alianças... eu queria sab... ber o que acontece com o Clóv... is...”, o anjo perdia suas forças.
De joelhos, travado no asfalto, eu não sabia mais o que fazer. Minha incrédula mão direita amparava aquele corpo infantil, tentando confortá-lo do desespero de mais uma separação. Minha raivosa mão esquerda, enlameada em sangue por culpa das Balas de Agosto, tentava, em vão, cobrir o dantesco ferimento fumegante e sombrio.
Eu chorava. Para dentro. Em seco! O mundo ao meu redor observava nosso estado lamentável de completo desamparo. No meu delírio, percebi que Wagner gritava por uma ambulância.
Ambulância? Em Lovland?
“Eu tenho... fiz cato... torze anos. Faz um mês que eu tomei coragem em assumir aquilo que escolhi ser. E vim aqui agradecer pessoalmente pelas palavras... suas palavras mágicas que me fize... fizeram acordar para a Felicidade. Eu não saí apenas de um armário. Eu abandonei um buraco fedido e muito escuro. Por causa do seu primei... ro livro... Super... super... super... fui contemplado com a verdadeira Luz. E agora... ai, meu Deus-Cristo-Meu, me falta o ar... e agor... a... eu volto para a outra Luz, igual a Caroline que eu vi no VHS da minha tia... eu volto para a minha mãe Luz... feliz, liberto, linda e assumid...”, sussurrou meu anjinho, confuso, difuso, buscando dentro de si as últimas centelhas de lucidez e energia.
Ainda havia um último pedido:
“Não condene meu pai, Senhor Ziemann. Dêxa ele fugir para que possa se encontrar um dia... e se arrepender de todos os seus atos delinquentes. Primeir… foram as surras por eu ser mulherzinha, depois vieram as ameaças... e agor... o senhor está diante do resultado promovid… pela Intolerância.”
Eu não refletia um juízo perfeito. O tempo havia paralisado toda forma de vida que havia num raio de dezenas de metros à nossa volta. Tonteado diante da Inocência, eu precisava gritar por socorro. Gritar para uma multidão colorida boquiaberta e sem reação diante da realidade tão destacada em luz e sombras. Eu lutava para compreender a razão de tudo aquilo. Aquela criança em seus últimos suspiros, declamando como um homem-feito, se esvaindo em sangue e lágrimas. Também havia um pai assassino, correndo alucinado, perseguido sem piedade pelas praias da minha ilha agora maldita.
Nossos corpos perdiam calor com uma insana rapidez. Como num transe, senti alguém me amparando, talvez puxando meu ombro esquerdo, tenso e dolorido.
Vi, num relance da magia, a capa aveludada do meu Alianças pendurada numa mão gorducha, peluda, suada. Entre lágrimas e soluços, agradecendo os caminhos tortuosos e indecifráveis da Providência, puxei com deslocada ferocidade o exemplar daqueles dedos amorenados, trêmulos, cambaleantes.
Como a exaltar um livro sagrado, abri na penúltima página e li com dificuldade o parágrafo final que carregava o resumo da felicidade.
Sim, meu menino-anjo, Clóvis supera os traumas de uma vida errante e revive o Amor com Moa, seu antigo companheiro... agora felizes para todo sempre, como tinha que ser.
Resumindo o impossível, entre gaguejos e falta de todos os ares, eu finalizava a leitura da minha história de amor.
Aquela criança corajosa levara dolorosos trinta dias para se assumir perante si-ela-mesma e desfrutar da alegria e dor em ser o que se escolhe viver. Agora eu sabia que ela não suportaria nem mais quinze segundos de vida terrena junto de nós.
“O que fazer para amenizar sua passagem?”, pensei, em prantos agoniados, dilacerado pela inércia de apenas um ato inteligente que pudesse salvar aquela vida.
A Providência. Esperta e faceira. Lá estava a porra da Providência-Lady-Gaga a iluminar os próximos passos.
Meu anjo abriu seus olhos cansados e sua boca miúda balbuciou algo que somente eu podia compreender:
“Sr. Ziemann, muito obrigado! Estou partindo. Acredite. Eu estou feliz, lúcido, muito tranquilo. Mas eu gostaria de subir amparado num último gesto de amor fraterno. Esqueça quem eu sou. Esqueça meu tempo terreno. Apenas deixe-me desfrutar por rápidos segundos da essência do Amor. Não quero partir assim, inviolável”, declamou o garoto com espantosa maturidade, num ritmo cadenciado, entre doce sussurro e lágrimas ácidas.
Ziemann sai de si. Ziemann grita. Ziemann balança a cabeça. Ziemann encara todos os presentes, sem enxergar absolutamente nada. Ziemann ignora o mundo, apenas para abrir as portas do universo mágico daquela criança ascendendo ao Eterno.
Eu era o escolhido para celebrar e conduzir a passagem daquela infância para o mundo dos prazeres e angústias dos Homens Plenos.
Meu anjo fechara os olhos e seus lábios entreabertos, ardendo nas chamas do amor imaculado, aguardavam, esperançosos, a perda da suprema virgindade. Desci com o máximo carinho os meus lábios experientes e meu cavanhaque espesso fez as honras da casa, amornando aqueles lábios infantis desejosos de serem tocados com carinho, humildade e respeito. Minha língua abriu espaço e ganhou a textura de uma carreira de dentes que ainda emanavam o perfume e a doçura do leite materno. Era o começo do beijo no asfalto.
Demos início a uma luta de espadas em que ambos sairíamos vencedores, triunfantes e orgulhosos. A fusão de nossas línguas, lábios, bocas, lágrimas, calor e inocência selou o batismo de duas almas errantes, onde a pureza de uma criança-homem ganhava o amparo das nuvens de algodão, enquanto a outra alma, aquela do cinquentão-decadente, ousou a magia de virar a última carta que revelava o mais puro sentimento que pode existir entre dois seres, independente dos sexos escolhidos nessa ou em outras existências que certamente ainda serão vividas.
Meu beijo naquele garoto abriu as portas do seu Paraíso prometido. A coragem do meu ato, isento de pecado, naquela criança inocente selou para sempre dentro do meu peito estraçalhado o anseio pela esperança de um concreto e sensato recomeço.
Minha saliva abençoada bailava naqueles lábios gélidos, ásperos, sonolentos.
“Vá em paz, meu filho, meu menino, meu irmão!”, refutou meu último beijo sagrado nas faces de um querubim jamais derrotado.
* * *
“Alianças” foi um sucesso editorial previsível e fulminante, vendendo milhares de exemplares em tempo recorde, país afora.
Do meu apartamento em Timboh, sozinho, inalcançável, após ser obrigado a rever diversas propostas internacionais bem promissoras (Wagner chegaria a qualquer momento para mais uma “reunião” de negócios), dei um tempo à papelada e busquei alívio imediato afogando meu silêncio na terceira garrafa glacial de Budweiser, esquecendo todos os números, cifras e cláusulas impressos em folhas soltas, recicladas, que se espalhavam diante dos meus pés descalços.
Ereto, nu na varanda, avistei nuvens compactas navegando sem pressa na imensidão de um céu azul profundo, de rara serenidade, quebrando o cinza rugoso e gélido que costuma dominar a paisagem da mateada cidade em dezembro.
E assim, com o olhar disforme, rodei com equilíbrio e maestria entre o polegar e o indicador dois anéis entrelaçados, sendo um dourado e outro acobreado…
... minhas alianças, à espera de um milagre... abençoadas pelo beijo da lágrima mais doce de um anjo alegre e liberto… que adora brincar de esconde-esconde no meio dos infinitos pedaços cândidos de algodão invernal.
* * *
Eu ainda acredito no Poder do Amor...
... que ousa expor o Seu Nome!
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Atualizado em: Qua 12 Abr 2023

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