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A melodia do Silêncio

DESTINOS CRUZADOS
Naquela manhã fria, dois de setembro, havia pouca gente transitando no antigo galpão de madeira que servia como Terminal Rodoviário de Lovland.
Todos os dias, dois ônibus se revezavam para levar os nativos que trabalhavam ou estudavam no Continente e buscar surfistas excêntricos que curtiam a ilha no final do inverno tresloucado, quando as praias ainda permaneciam desertas e as ondas ficavam mais traiçoeiras e quase congelantes para os padrões serenos e tropicais da sublime região.
Ronan estacionou o carro no espaço que era destinado aos táxis.
Ignorando os platinados sisudos que invadiam o inverno loveano fora de órbitas, os dois únicos motoristas cadastrados que serviam toda a ilha só davam as caras na alta temporada, quando Lovland fervia de turistas vindos da Cidade Cinzenta, além dos filhos desgarrados que aproveitavam as férias de julho ou dezembro para matar a saudade dos pais, dos amigos e de antigos amores esquecidos na ilha.
Fechando o zíper da jaqueta de náilon azul-marinho até atingir a base do vítreo queixo pontudo, Ronan saiu do carro, apanhou as bolsas de viagem do ex-namorado que estavam no banco de trás e fechou a porta do velho Lada com força um pouco maior do que o habitual, fazendo o ferro-velho russo estremecer, como que pronto a se desintegrar por completo a qualquer instante.
Num sussurro em alemão, Casber resmungou alguma frase de reprovação pelo ato do amigo, ignorando que Ronan jamais poderia ouvi-lo mesmo que ele gritasse todas as suas rabugices a plenos pulmões.
Em silêncio, Ronan e Casber caminharam até o local de embarque. Faltavam oito minutos para a hora da partida. Ronan abraçou o antigo namorado, desejando-lhe em bailados feitos com as mãos que ele fosse premiado com uma boa viagem.
Casber agradeceu o carinho, puxando Ronan para um forte abraço, beijando-lhe em seguida o alto da cabeça, gesto compartilhado desde que se conheceram há dez anos, quando tudo deveria ser belo e parecia ser eterno.
Apesar de o relacionamento íntimo ter acabado há dois anos, ambos conseguiram manter uma saudável e produtiva amizade; situação quase impossível de suportar no mundo que insiste em afirmar que continua colorido.
Entre o final de agosto e o princípio do mês sagrado, Casber passara alguns dias na casa de Ronan, recuperando-se após uma crise de estresse que culminou com seu desligamento definitivo da FrankHaus, um badalado escritório de arquitetura localizado no centro nobre de Downie, uma cidade sem cor que liga Continente à ilha. A dedicação de anos de trabalho transformou-se em pó quando houve a troca de alguns sócios da empresa. O último ano repleto de pressão e cobranças absurdas detonaram as forças do fiel colaborador, forçando-o a renunciar seu posto.
Casber perdera a guerra de um jogo sórdido de interesses escusos.
A cura veio com o merecido descanso físico de um espírito fatigado nos braços carinhosos do amigo que fora seu grande amor no passado.
* * *
O ônibus partiu debaixo de uma garoa muito fina.
Pela janela embaçada, Casber soprou um beijo de despedida para Ronan, que retribuiu o singelo gesto com aquele típico sorriso tímido, ainda encantador.
Ronan voltava para o carro, distraído, caminhando a passos lentos na direção do veículo creme desbotado, quando logo na saída do Terminal, sem intenção, acabou chutando uma pequena mochila de lona verde, fazendo-a parar a alguns centímetros longe do que parecia ser seu dono, um homem de físico derrotado que dormia sobre o chão ártico, encolhido debaixo de algumas folhas de jornal úmidas pela maresia.
Impressionado, Ronan agachou, apanhando a mochila com delicadeza. O som de latas de alumínio compactadas debatendo-se no interior da lona gasta despertou o moribundo, ressuscitando-o de prontidão, ativo para defender aquilo que era sua féria da semana.
Um olhar animalesco de um azul inacreditável fuzilou o rapaz de imediato.
Desconcertado, Ronan segurava junto ao peito aquele saco velho e fétido. Seu corpo anestesiado não respondia ao bom senso de devolver de imediato o pertence ao seu legítimo dono.
O selvagem levantou-se de um salto e apanhou a mochila da mão trêmula e delicada do rapaz. Com os gestos livres, Ronan passou a pedir desculpas na linguagem universal dos sinais, já que sua boca não podia emitir nenhum tipo de som compreensível às pessoas ditas “normais”.
Acuado como um animal indefeso, Troglô gritou diversos impropérios em alemão ao rapaz bloqueado, que permanecia colado no vazio daquele pesadelo.
Ronan não podia ouvir o que o homem materializava em ódio, mas seus olhos capturavam a fúria das palavras proferidas por uma boca repleta de dentes amarelados.
Perplexo, Ronan buscou forças para quebrar o embaraço, abandonando o mais rápido possível aquela cena constrangedora. Por vibração, ele sentia o animal indomesticável bradando suas defesas e direitos em alto e cítrico som, chamando a atenção das raras pessoas que ainda transitavam no local.
Ronan entrou no carro, deu a partida, ligou o aquecedor e disparou em seguida, segurando com custo as lágrimas do nervosismo. Desejava chegar logo em sua casa, deitar-se na sua protetora cama de casal e esquecer de uma vez o triste episódio.
* * *
A noite surgiu traiçoeira, chuvosa, decadente.
Ronan despertou com o arrasto do caminhão de lixo que passava todas as sextas-feiras, oito em pontos milimétricos. Ele deixou o quarto e foi direto para o banheiro, largando camadas de roupa pelo caminho.
Enquanto a água quente e a espuma de um sabonete com essências florais cobriam o corpo que gritava há milênios por alguns minutos de sol, Ronan não conseguia apagar Olhos Azuis da sua mente atormentada. Encolhendo seu remorso, imaginou um frio cortante que rondava sua casa.
Isso o fez recordar a infância pobre vivida em Timboh, quando cobertores eram inexistentes itens luxuosos até os seus quinze anos de idade. Sacos de estopa protegiam ossos magros e desnutridos de uma numerosa família sem esperanças.
Ronan sacudiu os cachos loiros debaixo da água escaldante, enquanto retirava o excesso de condicionador da cabeleira abundante.
Ao acarinhar a felpuda toalha branca, Ronan já havia decidido que deveria recompensar aquele homem de alguma maneira, na esperança de aniquilar o mal-entendido fixo no ar matinal.
Matutando os próximos passos, enquanto afofava o perispírito delgado após o banho revigorante, Ronan resolvera voltar ao Terminal Rodoviário e, certo de sua ousadia, esperava encontrar e trazer aquele excluído para o conforto dos seus domínios, dando-lhe um teto para viver, comida para se fortalecer e roupa limpa para se orgulhar, pelo menos até que Olhos Azuis pudesse dar um novo rumo à sua própria existência.
Mesmo contrariando o bom senso, algo impetuoso pressionava a consciência de Ronan diante dos destinos cruzados. Ele não compreendia os motivos de sua empreitada. Apenas sentia pura obrigação de finalizar o que deveria ser feito.
Ele sabia que Olhos Azuis estava à sua espera.
Como? Não havia uma resposta lógica e concreta.
Nem Olhos Azuis tinha noção de que seria confortado.
Nem Ronan depositava confiança que tudo aquilo poderia dar certo.
“Um desconhecido em minha vida”, Ronan meditou.
“Também sou um completo estranho no caminho dele. Será mesmo?”, Ronan concluiu, deixando de lado as peripécias do acaso, concentrando-se dali em diante no seu ato de fraternidade.
* * *
Ronan morava sozinho há dez anos. Mesmo vivendo uma relação estável com Casber por quase oito anos, ambos nunca conviveram mais do que seis meses juntos debaixo do mesmo teto.
Ronan viajava muito. Sendo Engenheiro Civil da Hösthbaden, sua presença física era exigida em diversas obras sob sua responsabilidade.
Após nove anos de serviços prestados à Construtora, Ronan decidiu encerrar prematuramente a promissora carreira. Escolheu viver afastado do mundo social, deixando os poucos amigos, além da mãe e os irmãos, bem estruturados em Downie.
Acreditando que sua missão de provedor já havia se encerrado, ele resolveu seguir um destino solitário, aceitando Lovland como refúgio. Um local perfeito para o isolamento voluntário.
Casber era um badalado arquiteto e criativo decorador de ambientes. Era idolatrado tanto pelas tradicionais famílias endinheiradas quanto pelos novos-ricos que disputavam a supremacia no lado sul de Downie.
O casal vivera uma relação turbulenta de encontros e desencontros, atrelados aos caprichos de agendas lotadas de compromissos profissionais e sociais.
Os dois se conheceram durante um coquetel promovido pelo escritório onde Casber trabalhava, o qual Ronan participara representando sua Construtora.
A união imprevista e imediata culminou numa longa noite de sexo no banco de trás do velho Lada, na praia mais bela da ilha de Lovland chamada Gobsun, conhecida como “praia dos amores perdidos”.
Viveram tempos felizes, apesar do relacionamento exótico e fora de prumo. Aproveitaram ao máximo os parcos instantes de sossego e ócio, onde imperava o pouco diálogo unilateral da parte de Casber e muito sexo criativo da parte de Ronan, um verdadeiro mestre na arte da sedução e do uso divino de uma boca sobrenatural, uma língua gulosa e um corpo silencioso sedento de gritantes prazeres incontroláveis.
 
ERROS E RECOMEÇOS
Eu cochilava.
Tentando mais uma vez sumir no vácuo do mundo, encolhido num canto rugoso e esquecido daquele Depósito de Passagem em obras, querendo esquecer as dores calcinantes provocadas pelo frio sobre minha pele áspera e o atrito do desprezo social carcomendo o interior dos meus ossos vitrificados, de repente pressenti a súbita presença de alguém pairando ao meu lado.
Abri um pouco os olhos e notei um atrevido par de Adidas me encarando. Estiquei o olhar acima dos tênis e encontrei pernas finas escondidas debaixo de uma calça puída de veludo cotelê cinza escuro, quase negro.
Acompanhei as duas varetas e fui elevando meus sentidos até meus olhos remelentos apreciarem uma fina jaqueta azul, onde a gola levantada cobria um queixo pontiagudo fincado num triangular rosto de um branco quase vampiresco, repleto de sardas.
Meu olhar assustado encontrou afetuosos e tímidos olhos brilhantes avaliando meu estado quase terminal.
“Então… você voltou”, pensei em alto e arrogante som.
Lá estava o magrelo ladrãozinho do meu precioso alumínio, derramando piedade sobre mim.
Como guardei aquela fisionomia?
Não sei, não compreendo a mínima noção.
Ele tirou a mão do bolso da jaqueta, esticando o bracinho para ganhar meu cumprimento. Contrariado, segurei seus dedos amornados e levantei o que restava do meu corpo estropiado, sentando e encostando minha falsa dignidade num relevo da parede glacial de madeira escura.
“O que você quer?”, perguntei, ríspido.
O rapaz começou a gesticular feito um dançarino de break. Eu não entendia patavina o que poderia significar aquela coreografia descomunal.
“Ei, cara, você consegue me ouvir?”, nova pergunta sem nexo e mais um turbilhão de gestos rápidos invadiram meu espaço visual.
Abaixei a cabeça, segurando-a com as mãos oleosas e imundas, expressando involuntária irritação por não conseguir dialogar com aquele sujeito afetado.
O brancote tocou meu ombro, chamando minha atenção para um diminuto televisor último tipo que ele segurava em uma das mãos.
Dedilhando sobre a tela numa velocidade absurda, em segundos pude conferir a seguinte frase brilhante, em letras garrafais:
 
O meu nome é Ronan. Senti necessidade de me desculpar pelo infortúnio que nos envolveu hoje pela manhã. Você gostaria de vir até minha casa e sair desse lugar triste e frio?
 
“Ir para sua casa?”, ironizei, perdido.
Ronan observava minha boca. Tal ato me deixou desconfortável, como se ele pudesse traduzir meu hálito podre. Levou uma eternidade para eu me tocar que ele conseguia interpretar o movimento dos meus lábios rachados.
Um lampejo de sorriso iluminou seu rosto agora corado. O rapaz voltou a escrever na tela do que eu julgava erroneamente ser um desses trecos chineses de última piratação.
 
Sim, eu moro sozinho. Fique tranquilo, pois eu confio em você. Por favor, aceite meu convite. Em casa você vai poder tomar um bom banho, comer algo substancioso, vestir roupas limpas, descansar seu corpo e no dia seguinte poderá até vender suas latas de alumínio! (risos)
 
“Pelo menos o mudinho tem senso de humor”, refleti, aflito.
Não resisti e comecei a rir, incrédulo, da digital oferta anunciada.
Meus olhos envergonhados avaliavam aquele trans… lúcido olhar de desejo por uma resposta positiva. Ambos sentíamos que a Senhora Confiança pairava no ar.
Consciente que eu não tinha mais nada para perder ou sofrer, juntei minhas poucas coisas e coloquei em prumo o que restava dos meus ossos doloridos, segurando com muita força e leve desconfiança a mão daquele espécime mariano.
No meu íntimo, gladiando contra o meu ser, eu reconheci que algo impossível me fez entregar meu destino a Ronan. Depositei a última expectativa em um candidato a Amigo. Eu quis acreditar que meus erros não poderiam me enjaular noutra enrascada. Dos meus deslizes eu aguardava apenas a chance de um recomeço, de um único acerto.
A última esperança.
* * *
Ele abriu a porta de um Lada até que bem conservado do lado de dentro.
Atento, Ronan percebeu que eu avaliava seu carro com desmedida curiosidade. Rapidamente novas palavras foram digitadas na tela mágica de cristal líquido:
 
O carro foi um presente do meu finado pai. Não tenho coragem de trocá-lo por outro. Por isso, tento conservá-lo ao máximo, apesar das peças de reposição serem quase impossíveis de se encontrar aqui na ilha ou em Downie... além dos problemas típicos com a maresia (risos).
 
Sorri para ele, demonstrando que eu havia quase aceitado seu carinho por aquela lata velha.
* * *
O trajeto do Terminal Rodoviário até a casa de Ronan transcorreu sem sobressaltos. O rádio despejava no ar canções de Minnie Riperton. Se ele podia ouvir pinceladas daquela voz abençoada pelo Criador eu não posso afirmar; mas algo me dizia que ele captava as emoções daquele diabólico timbre encantador.
Eu não sabia como me comportar na presença de alguém que não ouvia e nem falava. Não era preconceito da minha parte, só total despreparo para tratar pessoas com características especiais.
Durante o período em que fui obrigado a perambular pelas ruas, devo confessar que aprendi muito bem o que era ser visto como uma espécie de alienígena. É indescritível a dor da indiferença, do cínico descaso e do obeso desprezo. É algo muito além de qualquer intensidade de tortura física.
Fui jogado no mundo fora do mundo num momento de desespero total, quando tudo aquilo que um dia juntei, amei e cultivei na vida me foi retirado à força, da noite para a madrugada. Sozinho, isolado, moribundo, entregue aos cuidados da bebida barata e do cigarro falsificado, logo meu universo caiu em completa ruína e o que restava de mim-eu-mesmo foi parar numa sarjeta não identificada, onde aparas de papelão e folhas de jornais recendendo peixes, mar e sol disfarçavam minha miséria e tristeza dos olhos alheios de uma sociedade egoísta repleta de corações embrutecidos pela desesperança de um planeta desonesto.
* * *
Chegamos à casa de Ronan, uma agradável construção em estilo mediterrâneo, onde pequenas torres de cobre com suas luzes fluorescentes localizadas em pontos estratégicos de um jardim discreto alumbravam paredes de um branco soberbo.
Portas e janelas de madeira rústica, pintadas num tom anil, se destacavam na paisagem fria de uma noite onde a chuva não cansava de ampliar seus domínios.
Ao sair do carro, Ronan segurou, triunfante, a minha mochila verde. Seu sorriso infantil proporcionou-me de imediato uma inesperada serenidade.
Apanhei a outra bagagem que eu carregava comigo. Uma antiga bolsa da Nike presenteada pelo meu filho de apenas treze anos, dois dias antes que sua mãe me expulsasse da nossa casa.
Adentramos numa sala minimalista, pintada em reconfortantes tons de azul-cobalto e branco-gelo. Sobre um tapete felpudo de pura fibra de algodão repousavam duas admiráveis poltronas de madeira maciça, que abrigavam almofadas de lona crua, direcionadas para um móvel pintado de preto fosco.
Uma TV de plasma Panasonic imperava sua majestade na parede texturizada logo acima do móvel de ferro. Um antigo, porém sofisticado aparelho de som Kenwood completava o canto nostálgico de entretenimento.
Pufes revestidos de couro branco e lindas peças de cerâmica feitas pelos nativos da ilha e espalhadas com precisão por toda a sala harmonizavam aquele ambiente aconchegante.
Segurando minha mão esquerda, como a me conduzir para o centro do baile num castelo disneyriano, Ronan me arrastou até um banheiro pequeno e funcional.
Ele pegou minhas coisas, levando-as para uma ampla área de serviço, deixando meu fedor ao lado da máquina de lavar roupas.
Retornando para onde eu estava travado, sem graça, perdido… o rapaz pincelou novamente algo em sua tela maravilhosa:
 
Por favor, fique à vontade. Na caixa de vime, ali na sua direita, você vai encontrar toalhas limpas. Se quiser fazer a barba, basta abrir o espelho acima do lavatório, onde há aparelhos descartáveis e três tipos de espuma de barbear à sua escolha.
 
Boquiaberto, aproximei o rosto para me certificar do conteúdo, com as letras quase enfiadas na ponta do meu nariz opaco. Coisas da idade, da emoção e do cansaço.
Desconjuntado diante de tanta meiguice, limitei-me a sorrir e agradecer o gesto cordial. Orgulhoso, Ronan retribuía alegrias, enquanto escrevia para mim – meu deus, como ele era rápido! – um novo alerta fraternal:
 
Leve o tempo que quiser no banho. Tire o peso das ruas acumulado sobre sua alma. Estarei na cozinha, ali… na sua esquerda… preparando algo para o nosso jantar. Tudo bem para você? Precisa de mais alguma coisa?
 
“Eu agradeço o carinho, meu amigo. Tudo está perfeito. Muito obrigado!”, respondi pausadamente, em ato mecânico, achando que falando assim ele poderia ler minha boca horrenda com maior facilidade.
Dissecado pela vergonha, debaixo de um semblante acanhado, porém sincero, eu tentava esconder o turbilhão de lágrimas prontas para enxaguar a acidez da minha pastosa ignorância.
* * *
A temperatura do jato de água estava supimpa!
Um caldo acastanhado e a gordura de um suor estagnado abandonavam meu ser, descendo pelo ralo, diretos para o inferno.
Notei o comprimento desproporcional e o marrom das unhas dos meus pés. Senti tremendo embaraço diante de tamanho desleixo.
Fechando o chuveiro, cobri minha pele com a espuma de um abençoado sabonete de tons cítricos que eu acabara de tirar da caixinha. O adocicado aroma da Senhora Higiene purificava minha alma destronada.
Esfreguei cada parte do meu corpo como que tentando expulsar os sete meses de sofrimento enriquecido nos becos daquele paraíso litoral. Chorei, chorei e chorei como uma criança desgarrada da mãe, ambos em tenra idade.
Agradeci ao Senhor pela água abrasadora a cicatrizar as marcas da minha decadência. Agradeci aos anjos por terem enviado um dos seus para me salvar dos tentáculos do Umbral.
Fiz a barba embaixo do chuveiro. Abusei do meu direito concedido e permaneci sob o calor encharcado por quase meia hora.
De cara limpa, ao conferir-me no espelho contemplei um fino traço do homem digno que eu era antes de errar e ser expulso dos negócios, do convívio dos amigos e do seio da família.
Meu olhar azul sem brilho estava vermelho e irritado por causa das lágrimas derramadas durante todo o banho. Inspirei em profundidade o vapor da renovação.
Enxuguei-me e vesti um convidativo roupão verde-mar, sem usar nada por baixo. Liberdade e dignidade agora dominavam meu Novo Homem.
* * *
A mesa estava posta.
No lado Norte, um arranjo de pequeninas flores do campo e uma vela acesa emanando vapores que lembravam a essência do mel e da canela encantou minha insignificância.
Ao centro, uma travessa de madeira estava decorada com suculentas folhas de alface americana rasgadas em tiras aleatórias. Bolinhas de tomates perfumados completavam o alicerce do sabor. Diminutos brócolis tenros, fatias sensuais de palmito, raspas de cenoura, rodelas de cebola roxa e azeitonas pretas picadas alegraram de imediato o meu olhar guloso. E pedaços de mussarela de búfala espalhadas no meio da travessa davam o acabamento final naquela simples obra de arte gastronômica.
As cores aguçavam meu paladar, provocando estalos no céu da minha boca ansiosa, enquanto Ronan misturava o aromático tempero da saudável salada em uma cumbuca de cerâmica.
Sentei-me no lado Sul da mesa redonda. Todo pimpão!
Meu anfitrião aprumou-se bem na minha frente, após preparar meu prato, servindo-me em seguida. Eu era um felizardo rei. Algo sussurrava ao meu espírito jubiloso, indicando que meus dias futuros seriam suaves. Aleluia!
Feito à base de mostarda e mel, com uma leve porção de frescas ervas finas misturadas com esmero, o tempero para o primeiro ato da refeição deu um toque celestial ao início do banquete.
Minutos depois, satisfeito, porém ainda faminto, um novo prato se materializou como por encanto diante dos meus olhos.
Ronan, de maneira teatral, retirou a salada e os pratos usados da mesa, postando em seguida um peixe assado emoldurado por pequerruchas batatas douradas, alho defumado e gomos de laranja gratinados, tudo salpicado com macios grãos-de-bico e balsâmicas folhas de hortelã.
Com maestria, meu novo e único amigo preparou o segundo ato, depositando sobre uma cerâmica esmaltada um generoso pedaço de carne branca, suave, fumegante, perfumada pelas sereias de Gobsun.
De outra cumbuca de madeira, Ronan derramou sobre o peixe um ousado líquido tinto e adocicado onde a fragrância – quebrando todas as regras! – lembrava um bom vinho do Porto.
Por alguns segundos esqueci completamente o que poderia ser chamado de “boas maneiras”. Ataquei a refeição com avidez!
Ronan se divertia ao presenciar meu comportamento das cavernas.
Uma risada sem som iluminou suas faces pontilhadas. A novidade me fez cair no riso também, pois era fascinante ver o rosto infantil daquele rapaz que se esbaldava com a cena, impressionado ao confirmar meus compreensíveis modos selvagens.
Acabei engasgando com um resto marinho travado na garganta.
Atento, Ronan deu um salto, vindo ao meu socorro. Ele me agarrou por trás, forçando um abraço viril que aliviou de imediato a amarras da minha gulodice e a total falta de ar.
Após o incidente, continuamos unidos por um tempo não mensurado.
Senti o calor e o pulsar daquele prestativo andrógino viril e delicado ao mesmo tempo. Perdi a ação. Permaneci rígido, enquanto minha mente tentava decifrar o que estava acontecendo no acaso do ocaso.
Ronan abrandou minha tensão, beijando-me em seguida o alto da cabeça. Não encarei aquilo como um assédio e sim como um gesto de ternura entre irmãos.
Alguém se preocupava comigo. Pela primeira vez!
Voltamos ao jantar, embalados na melodia do Silêncio.
* * *
O singelo quarto de hóspedes se transformou no meu magnífico resguardo.
Eu estava sentado na cama, maravilhado com a textura do colchão convidativo, observando meu protetor garimpar no guarda-roupa alguns cobertores apropriados para o seu pupilo.
Em uma cadeira de vime, próxima da janela, havia um pijama em tons pastéis com arremates em azul-criança, dobrado com cuidado. Segurando tecidos pesados, Ronan me encarava, puteado, indicando o pijama com um ríspido aceno de cabeça. Lado infante aflorado, imprimi caras e bocas submissas, levantando meu corpo em êxtase, tocando com respeito aquela vestimenta sagrada.
Fiquei sem graça em retirar o roupão na sua frente.
Ronan apoiou os cobertores na cadeira, aproximou-se do meu estado catatônico, roubando o algodão das minhas mãos confusas, eufóricas, desconfiadas, colocando-o sobre a cama feita.
Suas mãos experientes, repletas de gestos meigos e decididos, quase maternais, desataram o nó do cordão que segurava o tecido que cobria minha virilidade traiçoeira. O roupão foi aberto do cabo ao rabo, revelando meus pelos arrepiados e minha intimidade deflorada. Ronan, indiferente, me despia sem retirar suas gemas autoritárias do meu olhar assustado.
O tecido felpudo caiu sobre o gélido piso de madeira corrida.
A segunda barreira havia sido vencida.
Como um escravo de luxo, Ronan apanhou a parte de baixo do pijama. Agachado, levantou meu pé esquerdo e colocou-o dentro da calça. Fez o mesmo com o pé direito. Subiu o tecido até cobrir pouco acima do meu sexo natimorto.
Em movimentos líricos, meu anfitrião elevou a parte de cima e me fez enfiar braços e cabeça dentro da trama perfumada, de caimento celestial, como que esculpida com intenção de aliviar o fardo do meu ser indefeso.
Senti seu hálito tinto roçar meu rosto inerte. Eu tremia em desespero, dúvidas e tesão. Estranhos na mesma proporção. Oh, céus! Há quantos e tantos séculos eu não era seduzido ou desejado por alguém?
Sacando a geringonça inseparável do bolso da camisa, Ronan tamborilou um “Boa noite, meu grande amigo!” para o meu Eu extasiado.
Já deitado, oculto pelo lençol, o anjo de guardas cobriu meu estado obscuro com dois cobertores espessos que aqueceram de imediato minha consciência dilacerada. Cerrei os olhos e fui brindado com um beijo simpático na minha fachada tontícia.
Apago a luz?, ele digitou, tocando a seguir a ponta do meu nariz afogueado, despertando a minha realidade.
“Sim, po...or fa...vor”, respondi num sussurro medonho, enroscando as palavras numa intransponível timidez.
Quase implorei para que ele não abandonasse o quarto e me contasse uma infinita e milenar história de ninar repleta de passagens plácidas.
Eu necessitava da sua presença, daquele calor, de toda atenção.
Ronan desligou o abajur, flutuando sobre meu astral liquefeito, fechando delicadamente a porta. Exausto diante do Novo, fiz amor com o melhor sono da minha vida.
* * *
Acordei por volta das oito da manhã.
Ainda chovia sem cessar e a força do Vento Sul castigava a janela do meu quarto.
Levantei minha leveza, lavei o rosto não mais carrancudo, escovei meus dentes tortos. Atrevido, eu ansiava por uma picante xícara de café encorpado.
Encontrei Ronan na cozinha, concentrado em demasia diante de um notebook branco, digitando velozmente o que por instinto imaginei ser uma espécie de relatório.
Confirmando minhas suspeitas (eu agia da mesma maneira quando trabalhava), reparei nos gráficos multicoloridos que dominavam o lado esquerdo da tela.
Ele abriu uma janelinha, escrevendo em Times um “bom diaaaa!” para mim.
 
Dormiu bem?, Ronan digitou a seguir. Se quiser um café encorpado, delicioso, pegue uma xícara no armário e sirva-se. Na mesinha à sua esquerda há bolos e pães caseiros feitos por mim-eu-mesmo. Bom apetite!
 
Após me servir, me sentindo em paz com Deus e seu anjo, sentei-me à mesa, sorvendo o negro saboroso e observando os reflexos da tela dançando nas lentes dos óculos de aro fino de Ronan.
De tempos em tempos eu ganhava um olhar furta-cor intenso e reconfortante, seguido de um sorriso quase celestial.
Era impossível não me concentrar numa prece difusa, agradecendo aos céus por eu merecer a última chance de reciclar minha dolorida existência.
Eu não sou homossexual. Jamais senti absolutamente nada físico ou emocional por outro macho. Mas não posso negar que Ronan estava me conquistando com seu jeito prático de encarar a vida; com o sincero carinho demonstrado e a intensidade da descomprometida atenção com que cuidava da minha evolução pessoal.
Éramos cúmplices extraordinários no enlace de estranhos conhecidos.
* * *
Eu me fartava com um pedaço de bolo de aveia recheado de frutas cristalizadas e viajava em pensamentos construtivos quando Ronan esticou o braço e tocou de leve a mão que segurava a segunda xícara de café.
Despertei do planejamento das minhas novas metas. E mais uma vez degustei uma abundante sensação de um amor diferenciado. Um presente que era oferecido para mim-eu-mesmo embalado em diversas camadas de um incorruptível respeito.
Estávamos compartilhando nossas existências em tão poucas horas, mas parecia correto afirmar que nos conhecíamos há milhares de anos. O toque daquele macho não me incomodava, pelo contrário, o atrito fazia me sentir amado, querido. E, acima de tudo, compreendido.
Ele confiou em mim sem vasculhar minhas credenciais e muito menos meu currículo. Ele me trouxe para dentro de sua casa sem demonstrar qualquer tipo de receio ou medo em permanecer ao meu lado.
Ignorante, eu havia desconjurado seu ser naquele Terminal, temendo perder meu ganha-pão acumulado com tanto sacrifício, tesouro oculto na minha velha mochila dos tempos do exército.
Diante dos fatos, definhei por dentro.
Na noite passada, Ronan viu e tocou meu corpo. Teve a chance de me forçar a fazer sexo com ele, caso desejasse. Não sei se eu aceitaria, mas talvez o fizesse como obrigação ou agradecimento pela oportunidade de um novo lar, mesmo que temporário. Talvez eu cedesse meus restos como poder de barganha para assim recomeçar a vida que eu julgava descartada.
Nos limites da minha demência besuntada na ignorância, eu pagaria qualquer preço por uma nova chance de ser feliz.
E ali estávamos envolvidos num jogo (para mim) perigoso e excitante. Eu confesso!
Sentados no templo do diálogo e do alimento, alternávamos olhares complexos na sua simplicidade. Digitando a uma velocidade estonteante com apenas uma das mãos, Ronan prosseguia seu afazer. A outra mão acarinhava meus dedos chamuscados, impregnados pelas intempéries de uma trilha errônea.
Assumindo de vez os meus limites, juntei forças para perguntar o óbvio, assim que ele retornou um novo olhar para mim:
“Você é gay?”, eu cacarejei, sem coragem de encará-lo depois de cuspir minha bobiça dançando em preconceitos.
Ronan sorriu, digitando a resposta no seu computador estiloso. Virou um pouco a tela para que eu pudesse ler algo que me trouxe alívio e apreensão ao mesmo tempo:
 
Sim, eu sou gay. Mas não se preocupe. Eu não trouxe você aqui para uma noite de sexo e nada mais. Eu jamais faltaria com o devido respeito. Você está aqui porque confio em você e só fiz o que o meu coração exigiu. Sexualmente, talvez sejamos de esferas diferentes. Eu não posso mudar sua natureza e nem você pode alterar o que para mim é verdadeiro. Mas saiba que quando toco em você, o faço com renovado carinho fraternal. Dou-lhe o melhor de mim-eu-mesmo sem maldades, cobranças ou vigésimas intenções.
 
E eu que pensava que todo bambee não podia ver um homem na frente que já o atacava, sem se preocupar com limites.
Senti uma tonelada de vergonha pela minha vasta ignorância. Porém, o meu lado brucutu neurótico precisava de uma confirmação sobre a questão que eu julgava machistamente importante.
“Você me acha um homem atraente. Você iria pra cama comigo se eu fosse… igual a você?”, as burrices traíam meu vasto nervosismo.
Ronan se levantou e sentou-se na outra cadeira, ao meu lado. Um sorriso monalístico marcou seu rosto pontudo. Era evidente que ele estava se divertindo com a minha insegurança. Nós dois agora quase grudados, novas respostas eram digitadas no brilhante, nítido e multicolorido LCD:
 
Sim, meu amigo, você é um homem atraente e sensual. Nada que mais alguns dias de descanso e pequenos retoques no visual não o transformem numa decente versão alemã do próprio Nicolas Cage (risos)!
 
Ronan ofereceu mais um dos seus sorrisos silenciosos. Desatei a rir e quase a chorar, quando me dei conta de que Diura, minha ex-esposa, adorava me comparar com o mesmo astro americano, desde o dia em que resolvi mudar meu corte de cabelo. De repente, eu voltava a sentir uma tremenda falta dela e dos meus dois filhos, o decidido Célio e a doce Milena.
Tocando minha face esquerda com as pontas dos dedos de algodão, despertando-me das saudades, Ronan capturou minha atenção:
 
Sim, eu iria para a cama com você, mas somente se entre nós houvesse algo mais do que carências físicas ou forçadas obrigações da carne. Por outro lado, eu não me perdoaria em usar seu corpo como “pagamento” pela minha hospitalidade. Isso seria algo capaz de me destruir como pessoa. Química, desejo, respeito e afinidade teriam que fazer parte do esquema. Senão, meu caro, nada feito, pois o resultado do desastre geraria intrincadas frustrações.
 
Aprendi quais eram os quatro pilares que mantinham o mistério de uma união perfeita. Ronan ganhou de imediato minha oculta admiração.
Diante da Verdade, pisoteei e joguei fora meus preconceitos infundados. Senti forte desejo de abraçá-lo, mas me faltou boa dose de coragem.
Apesar do tempo maluco, preciso me ausentar por algumas horas. Volto no final da tarde. Tudo bem se você ficar sozinho… em nossa casa?, ele digitou, fechando em seguida o portátil com sabor de fruta, colocando-o dentro de uma discreta pasta de couro.
“Você vai me deixar aqui sozinho? Você realmente conf...”, minha boca foi tapada com as pontas amornadas de duas digitais decididas.
Com o olhar fixo sobre meus lábios desnorteados e gesticulando as mãos numa sequência de sinais que agora pude compreender, senti que Ronan escrevera no ar um esclarecedor “Eu acredito em você!”.
“Nossa casa”, meditei, na melodia do Silêncio.
Segurei o choro de uma emoção descontrolada.
Ganhei novo beijo, agora na bochecha direita.
Ronan pegou as chaves do Lada e se despediu com um sorriso de agudas saudades.
Passei as horas seguintes deitado no tapete da sala, lendo Patrícia D. Cornwell.
Mesmo vidrado na narrativa, acabei cochilando após descobrir que o tenente Pete Marino era platonicamente apaixonado pela doutora Scarpetta, a personagem principal de um envolvente suspense policial.
* * *
Acordei e já era noite profunda.
Uma colcha de retalhos cinzas, azuis e creme cobria minhas pernas contorcidas e uma almofada com a estampa de diminutos sóis amarelos dominando o tecido cor de palha repousava embaixo da minha cabeça aflita.
Aprumei-me um tanto bêbado, sentindo um pouco de desconforto nas costas. Fui até a cozinha e me servi de uma xícara de um chá ainda morno.
Ronan estava em seu quarto, lendo a última edição da Folha da Ilha. Eu me preparava para dar dois toques na porta entreaberta, mas fui surpreendido por mais um sorriso magnífico daquele diabólico druida abençoado.
Ele retirou os óculos de leitura do rosto cor de leite, descartando o jornal sobre a cama. Convidou-me com um aceno para que eu me sentasse ao seu lado.
Submisso, atendi o chamado. Ronan pegou a lousa já conhecida e escreveu o que eu queria ouvir:
 
Deite-se aqui. Sobre o meu peito. Você precisa de um pouco de carinho. Eu posso tocar em você?
 
Feito um adolescente em sua primeira noite de amor, rolei por sobre aquele corpo, sem tirar o meu olhar inquieto daquele olhar sedutor.
A direita mão de pianista cerrou meus olhos ansiosos. E aquela mesma mão suave e segura passou a deslizar seus cafunés pelo meu rosto, seguindo depois para o meu tórax arfante, onde dedos experientes brincavam nos fartos pelos ferruginosos em meu peito embriagado em gelo-seco.
Deixei-me levar. Eu queria compreender toda intensidade daquela estranha novidade. Escancarei as portas dos meus desejos que eu julgava até então secretos. Senti nas minhas faces medrosas os beijos ternos de um homem assumido.
A reação foi um misto de eterno desconforto e crua vontade de “eu quero muito mais!”. Com a energia de um híbrido amor violento, implorei em orações para ser atacado por um beijo absoluto. Autorizado pela Providência, senti que Ronan leu o rústico desejo nas minhas retinas digitais.
É diferente o fervor de um beijo masculino. É tudo mais intenso, profundo e arrebatador do que a batalha compartilhada com uma fêmea.
Separamos nossas línguas. Ronan pegou a tela mágica:
 
Refleti durante toda a tarde. Descobri que eu quero você. Eu preciso de você. Acredite, de certa forma, o que ocorre entre nós é novo para mim também! Então... será que você me daria uma chance para eu assumir o recomeço de ambos?
 
Não respondi com palavras. Apenas lacrimei. Por tempo além do Tempo.
Se aquilo era amor que compartilharíamos para o nosso bem, eu aceitava a presença do Inevitável em minha vida.
Soluçando, um Ronan reticente retirou as peças do meu pijama amarrotado. Os calafrios dos meus músculos retesados eram recompensados por uma língua fogosa que cobria cada poro da minha pele avermelhada. Meu sexo terreno explodiu nas mãos firmes do meu anjo.
Ele queria. Eu aceitava. O contrato estava firmado.
Sua boca perscrutou meu membro em toda sua rigidez e textura e glória. Restos de roupas e papéis foram atirados contra o chão lustroso. Com a voracidade à flor da pele, virei meu anjo de costas, tentando ser o mais carinhoso possível.
A luz âmbar que vinha do abajur sobre a mesa de cabeceira pintava os músculos daquele divino com um impossível tom acobreado, recheado em ouro e listras incandescentes.
Meus dedos calejados acarinhavam costas lisas. Minhas narinas ofegantes captavam o cheiro da essência de uma vida proveitosa. Meu ser indefeso confiscava a química daquele corpo masculino de alma hermafrodita.
Minha boca foi atraída para o centro das suas nádegas compactas. Com o máximo cuidado que estava ao alcance do meu limite, mordisquei a intimidade daquele que me abrira as portas de uma esplendorosa Sétima Dimensão.
Quando dei por mim, eu já estava vibrando em vitórias.
Meus movimentos, no começo, eram desajeitados, reticentes, isentos de sincronia. Mas Ronan, paciente e grande maestro, acertou nossa união e em instantes éramos um só corpo lutando para a fusão de duas almas que assumiam a alquimia perfeita durante o crucial ato de amor.
Minutos que foram horas. Horas que foram eternas.
Nosso suor sublimou-se em essência aromática: madeira e seda. Descobrimos aquilo que os druidas fizeram tanto esforço para ocultar. Agora eu sabia qual era o segredo para uma juventude eterna. Eu havia encontrado o famoso cálice de madeira que continha o sumo da Felicidade!
Alquimia realizada. Química compatível. Jorrei o que restava da minha ínfima pureza dentro daquele éden de Picasso.
Ins… pirei, afogando-me na alegria. Desfiz o enlace sexual para buscar a sensualidade e o frescor dos lábios inquietos do meu novo ser tão amado.
“Beije-me, Ronan. Deixe-me sentir sua língua seca e sua saliva agridoce.”
Segurei o sexo do meu anjo – sim, os anjos têm sexo! – movimentando-o com cuidado para cima e para baixo. Aumentei o ritmo, enquanto intensificava os meus beijos naquela “bocajolie”.
Era a primeira vez que eu pegava num pau que não era o meu. Mas aquele caralho agora era o meu cacete e eu soube manipular os seus anseios como se ambos fôssemos velhos conhecidos de boas farras.
Na melodia do Silêncio, meu homem jorrou seu sêmen sobre meu peito cabeludo. Envolto em celestial satisfação, meu macho aninhou sua cabeça sobre meu coração pelúnico. Devolvi o beijo em sua testa agora aquecida com meus carinhos de lábios satisfeitos. Apagamos juntos, enlaçados, envolvidos num sono revigorante.
Eu me senti – pela primeira vez na vida – realizado, liberto e verdadeiramente feliz!
* * *
Na manhã seguinte, eu estava debaixo das águas claras e o meu anjo luminoso esfregava minhas costas com uma “bobesponja”.
Fechei os olhos e agradeci ao meu Deus pela ducha que sublimava as marcas do meu passado errante. Repetindo sinceridades, também agradeci mais uma vez aos anjos por terem enviado um dos seus para me salvar do desejo de me entregar aos desígnios da Morte, encarando os últimos suspiros de uma existência calamitosa, solitária, depauperada.
Daquele momento em diante, uma vida restaurada, um caminho novo, um destino inusitado e repleto de desafios se descortinava bem à minha frente.
Não sei o que está reservado para mim. Não sei como será minha relação com Ronan. Não sei o que sou ou o que optei ser para mim-eu-mesmo no aqui, agora.
Não me importo com a futura reação da minha família ou de algum amigo que deixei perdido no passado. Se é que um dia os nossos destinos serão novamente cruzados.
Só afirmo que encontrei o apoio que eu precisava para me reerguer. Só aceito que sou privilegiado com o amor que jamais me foi ofertado no emocional ou no carnal; carinho proporcionado por um “tipo” de pessoa que por anos e anos fui disciplinado a ignorar, a desprezar, até mesmo... odiar.
Só compreendo que descobri uma inefável melodia nos seios do Silêncio, iluminada pelo sorriso de Ronan. Só espero ter conquistado em definitivo o direito de viver a plenitude de uma verdade não mais oculta. E fazer feliz quem um dia acreditou em mim, sem nada cobrar em troca.
* * *
Envoltos em uma só toalha, víamos os nossos rostos úmidos distorcidos na imagem refletida no espelho empipocado de gotículas vulneráveis.
Ambos compartilhávamos prantos de palpáveis agradecimentos.
Com a ponta do meu dedo indicador esquerdo embotado no ardor da emoção, senti que Deus me autorizou a escrever, com dificuldade, em letras cambaleantes, na minha rústica tela mágica:
 
“Ronan, meu anjo. Só posso afirmar a sinceridade de um ‘muito obrigado’. Eu te quero... para sempre. Declaro aqui a Verdade em letras tortas: Agora... eu sou teu! Mateus.”
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Atualizado em: Qua 12 Abr 2023

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