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O desconcertante Coringa ou a imprevisibilidade de um outsider


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POR IVONALDO LEITE 
(Universidade Federal da Paraíba) 

Desde que Howard Becker realçou, na análise sociológica dos anos 1960, as faces ocultas dos processos socais que dão origem aos outsiders, a tese das normas como códigos inquebrantáveis e a ideia de um determinado status de vivência – a exemplo do casamento - como modelo a ser imposto deixaram de ter sentido. E, ao mesmo tempo, feriu-se gravemente o moralismo, em seus mais diversos matizes, expressão comportamental essa sempre empenhada em aglutinar rebanhos de fiéis para determinar preceitos de conduta a terceiros.
Becker é paradigmático: todos os grupos sociais estabelecem regras e, em determinado momento e sob determinadas circunstâncias, tentam aplicá-las. São regras sociais que definem situações e comportamentos por eles considerados adequados, diferenciando o que entendem ser ações “corretas” das que concebem como “equivocadas” e, portanto, proibidas. Quando da aplicação da regra, quem nela não se enquadrar, provavelmente, será percebido como um infrator, um desviado, um tipo de pessoa incapaz de viver segundo as normas acordadas, não sendo, portanto, digno de confiança. Ou seja, será visto como um outsider, alguém que, como resultado do desvio social em que incorre, se coloca nas margens da sociedade, quer dizer, se põe na condição do que se considera um “marginal”. Fora do padrão. Contudo, pode ocorrer de a pessoa que é etiquetada como outsider ter um ponto de vista diferente a respeito da questão. Talvez não aceite as regras pelas quais está sendo julgada, e assim rechace a competência e a legitimidade dos seus juízes para esse fim. Desta breve incursão, temos a ponte sociológica que nos leva ao desconcertante filme Coringa.
O filme do diretor Todd Phillips (mais conhecido, talvez, por filmes como ‘se beber não case’) tem feito 'correr muita tinta' mundo afora, usando aqui uma boa expressão do português lusitano. Até onde o tempo me permite alcançar, as recensões na língua de Camões, mas também em espanhol, francês e inglês, além de destacar a notável atuação de Joaquim Phoenix, quase sempre se revelam prisioneira de uma polaridade: situar o Coringa como herói ou anti-herói. Será isso mesmo? Não me parece.
O Coringa está mais para alguém que o ‘jogo social’ tornou um outsider. Não é herói e nem anti-herói. É fato que, em determinados momentos, o roteiro leva à empatia pelo protagonista, gerando uma sensação de pena e tristeza em função do que vive o personagem, que é efetivamente pisoteado pela sociedade. Contribui para a geração de tal sensação, também, a estética do filme, as luzes, contrastes e trilha (that’s the life, de Frank Sinatra, não poderia calhar melhor). O Coringa de agora é muito diferente do que, nos meus albores juvenis, via com “interesse” quando ele repetia o seu bordão contra o Batman: ‘Why so serious’ (Por que tão sério?). Tinha um ousado senso cômico. 
O Coringa atual é um palhaço infeliz e melancólico, que se apartou do humor. Li algures - da pena de gente com treino na crítica de cinema - que Coringa seria um filme sobre injustiça, com forte apelo à consciência política. Francamente, não sei por qual razão ele poderia ser visto assim. Em minha perspectiva, não há uma fresta de esperança no Coringa, dimensão esta que é central na esfera da conscientização política. É um filme com laivos de tristeza, amargura, frustração e ressentimento de um homem que busca vingança. É certo que expõe as fraturas caóticas da sociedade, mas a ‘revolução dos clowns’ (palhaços) que propugna parece tomada de uma insanidade que pode despertar até mesmo impulsos fascistas. A marcha da mudança social, induzida pela consciência política, vai com rigor à raiz dos problemas, mas é carregada de alegria, pois é movida pela esperança, pela justiça e pelo amor a uma existência cheia de sentido, não sendo refém, portanto, do rancor e do ressentimento, que despertam ações bárbaras, como as praticadas pelo Coringa. Ele é, sem lugar a dúvidas, um outsider. Um outsider imprevisível, apresentado como vítima e devorado pela autopiedade. O palhaço cuja gargalhada omite intenções e afasta o riso genuíno.
Coringa, contudo, tem encontrado simpatia. Não parece, contudo, ser tão difícil entender esse fenômeno. Como bem sintetiza uma expressão da língua alemã, trata-se, possivelmente, de uma questão de zeitgeist (espírito da época). O tempo presente é marcado pelas distopias, sendo uma época na qual se prefere mais o dito das coisas, do que as coisas ditas. Uma época onde a linguagem é utilizada no seu máximo potencial de mostrar ocultando.
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Atualizado em: Seg 4 Nov 2019

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