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Super-heróis na terra da meia entrada
Nunca fui fã de super-heróis e sobretudo da cultura que se forma em torno deles mas parece inequívoca a proclividade humana em relação a eles. Não somente em números mas em forma e estilo, eles aparecem em abundância, com mais características em comum do que diferenças. O super-herói arquetípico tem habilidade, coragem e estilo suficientes para superar obstáculos que um ser humano não consegue e desta forma representa esperança para lidar com problemas inconcebivelmente difíceis. Como um todo, a sociedade se convence que ter alguém com poderes adicionais que possa protegê-la é um bom negócio e a sensação de amparo e tutela triunfa sobre os contorcionismos dialéticos requeridos para explicar a origem daqueles poderes. Se você vê qualquer semelhança com a cena de um povo que busca a fuga da escravidão no Egito, por exemplo, talvez consiga entender que a gênese destes dois movimentos é embaraçosamente similar, embora um deles seja compreendido como sendo entretenimento enquanto o outro se leva muito mais à sério.
Super-heróis representam o anseio de uma sociedade, a fuga da realidade, o descanso momentâneo dos problemas que a atormentam e desta forma, analisar as características dos super-heróis permite, indiretamente, ter acesso privilegiado à mente coletiva do grupo. Da mesma forma que há uma conexão entre os anseios de um grupo e as religiões que criam, há um link causal entre as idiossincrasias de uma sociedade e os super-heróis que ela produz. Uma cultura que valoriza a justiça terá um herói que a distribui de forma abundante; se por outro lado a força física é um valor maior, o mito a terá e a empregará de forma rotineira. O passo seguinte é imaginar como seria um super-herói verdadeiramente brasileiro nos dias de hoje, quais os seus atributos mais importantes, seus objetivos, suas eventuais fraquezas (que sempre devem existir, como uma ligação aos meros mortais, facilitando que as pessoas se identifiquem com ele). Claro que o brasil tem super-heróis na ativa (como o Capitão Cueca) mas parece estar faltando um herói que possa realmente se identificar com as massas, conhecer nossos problemas e, diferentemente dos políticos, fazer alguma coisa para resolvê-los. Homem Fila e seu nem sempre fiel ajudante sexualmente ambíguo, cujos poderes permitem que fiquem em filas que podem durar até anos: este á um herói que seria valorizado, que as pessoas aplaudiriam na rua e que até vejo se candidatando a vereador em brasília. Capitão Drag (nome criado para gerar confusão), capaz de sobreviver no mais violento dos arrastões, também seria uma boa possibilidade mas eles são limitados em escopo e não representam a pluralidade da selva organizacional brasileira.
Para fabricar um herói realmente conectado ao povo brasileiro e aos dias de hoje, é preciso fazer uma viagem pela mente do brasileiro, contemplar seus valores, sua teodiceia, as regras do jogo que ele conhece. Não somos um país forjado pela guerra, pelas grandes tragédias naturais, até mesmo o domínio português foi tropicalizado, transmutando-se em algo diferente: a perspectiva brasileira de mundo. Monopolista mas miscigenado ao mesmo tempo, adepto aos conceitos franceses de igualdade, fraternidade e liberdade - sempre que não colidirem com algum objetivo pessoal imediato, incorruptivelmente honesto ao avaliar os outros e fecundamente criativo para explicar suas escolhas pessoais. O brasil, por essência, é o lugar do tratamento diferente travestido de igualdade, o país das isenções setoriais, das zonas francas, das regras claramente diferentes no trato de iguais mas, mais do que isto, é o lugar onde as pessoas acreditam que esta é a forma de organização mais justa (o que pode fazer o leitor questionar em que consiste este senso de justiça). Para evitar o embaraço de se ver como uma nação atrasada, de costumes patriarcais, uma eterna Pasárgada, criamos também a liturgia do autoengano, na qual não somos corruptos - só achamos uma brecha na lei, somos cordiais - embora matemos mais de 30 mil por ano no trânsito, somos honestos (aqueles CD´s que peguei do caminhão que virou iam ser destruídos mesmo ...) e por fim, caridosos, não obstante o fato que rotineiramente desviamos merenda escolar e roubamos remédios de hospitais. Este é o estilo literário que permitiu que esta nação não caísse em uma crise depressiva (embora não tenha impedido a fiscal, política, econômica, social, climática, ética, artística, agrícola e cultural). Estamos tão mergulhados na estética da ideia de que ‘se as coisas estão melhores para mim ou para o meu grupo, o problema está resolvido’ que perdemos a capacidade de observar os efeitos a longo prazo do sobreuso desta maneira de pensar. Somos o país da meia entrada, do benefício que o vereador conseguiu (cujo custo nunca somos capazes ou temos interesse em avaliar), do desconto que o deputado mediou via tráfico de influências, da isenção que o governador autorizou e mesmo que o presidente concedeu, fazendo vibrar a patuleia que não entende que é ela mesma que vai pagar a festa. Talvez não pudesse ser de outra forma, talvez a realidade seja muito bruta para ser encarada de frente e temos que continuar a fingir que o problema da educação vai se resolver se dermos meia entrada para o estudante e outros grupos que tenham sinergia com os interesses de nossos representantes. A alternativa seria entender que o barco está à deriva e o comandante não tem a menor ideia do que está fazendo: isto é desconcertantemente deprimente.
Assim, saúdo o Meia Seis, ou somente Meia: o derradeiro herói brasileiro, cujo maior poder é reduzir as coisas pela metade: uma dívida, um furúnculo ou uma rede de esgoto entupida: Meia está quase sempre ali, meio que disponível para ajudar a resolver a metade aparente do problema, sorrir para algumas fotos, dar um discurso mecânico e raso típico de um jogador de futebol e voltar para seu planeta natal, Corruptos, para esbaldar-se nas verbas concedidas pelas boas relações com as empresas do governo. No fim, Meia consome muito mais recursos e energia do que consegue entregar na forma de auxílio, não enxerga a todos da mesma forma e reiteradamente salva mais banqueiros (afirmando que o colapso econômico seria ruim para os pobres) do que qualquer outra categoria. Mesmo assim, é fácil entender porque Meia é saudado como herói em qualquer festa em que penetra e come de graça: 1) pois por pior que seja, ainda é o único e 2) porque sempre será mais fácil esperar que alguém venha, do bonde, do céu, ou da Internet, para resolver os meus problemas (ou parte deles).