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Réquiem para 200 milhões de brasileiros

              Muito se especula atualmente sobre o sistema eleitoral brasileiro, suas características, eventuais fragilidades, eficiências e peculiaridades. Infelizmente, quase sempre fica de fora um aspecto fundamental da análise: a comparação com as alternativas. O sistema é seguro? Mais seguro que as alternativas? É rápido? Mais rápido que as alternativas? Rapidamente uma pessoa com mínima honestidade intelectual vai perceber que é um sistema com inúmeros atributos, embora possa não ser o melhor em todas elas. Pessoalmente, já participei do processo de escrutínio manual de uma eleição e a imagem de abutres em fardas partidárias sem compromisso com a lisura do processo tentando converter cédulas postuladamente dúbias sempre me vem à mente quando se fala em possibilidade de fraude. Entretanto, quase todos os argumentos úteis para combater o emaranhado de reclamações dos proponentes das falhas grosseiras do sistema já foram feitas, simplesmente não foram ouvidas e aqui não tenho motivação para repeti-las.

              Como qualquer sistema, não é perfeito e, por definição, pode ser sofisticado, melhorado, ampliado. Há um aspecto omisso das atuais urnas eletrônicas, que não acompanhou a evolução das demais experiências: o acústico. Um momento tão emblemático quanto o sufrágio precisa ser emoldurado na memória do cidadão de forma duradoura e uma forma de fazer isto é enriquecendo a experiência sensorial através de estímulos múltiplos. Seguindo a tendência já difundida da personalização da experiência, segundo a escolha feita, o trecho de uma música deveria ser tocada, visando (perdoe a repetição) tocar o lado sentimental do sufragista. Votou no partido comunista? Quem sabe algumas estrofes da Internacional Comunista? Escolheu o militar? Talvez o Hino do Exército ou da Infantaria. Pensando no bispo? Um sem fim de escolhas gospel se apresentam. Claro que alguém há de retorquir que isto viola a santidade da secretude do momento (secretude meum mihi - meu segredo para mim) mas quase todo problema tem solução: ambientes acusticamente isolados, bluetooth obrigatório (eu não disse que seria barato). Bem mais difícil de resolver, entretanto, seria a tragédia musical inevitável decorrente da escolha das pessoas, conjuminando PMDB com funk ou PT com sertanejo.

              Ironicamente, uma solução para coroar o apogeu da democracia seria tirar das pessoas o recém criado direito de escolher a sua trilha sonora, aliás em total acordância com o fato de que não podemos votar em quem quisermos mas sim em alguns nomes em uma lista. Isto nos remete ao título desta divagação: qual estilo musical mais combina com os possíveis destinos para este país, depois das eleições? Felizmente, grandes compositores nos preparam para este momento, permitindo que enfrentemos este lúgubre ensejo senão com altivez, pelo menos com pompa e circunstância. Mas isto aqui não é supermercado na antiga União Soviética ou na atual Argentina: como o brasileiro gosta de poder escolher, de alimentar esta imagem de que está no controle do seu destino, é preciso um cardápio de opções. Requiem de Mozart, claro, Ein Deutsches Requiem, de Brahms (terá grande receptividade devido a Ambev) ou mesmo Officium Defunctorum - para os amantes de motetos fúnebres. Abracemos nosso Hades político com bom gosto e sofisticação ou lembremos, enquanto ainda há tempo, que existem outras saídas, que merecem ser analisadas. Nosso destino depende literalmente disto.
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Atualizado em: Qui 2 Jun 2022

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