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Dur Dur D'être Bébé
O sol despontava tímido entre a briza gelada daquela manhã pré-europeia no Alto Paleolítico quando aquele casal trans (ela era Sapiens e ele, Neanderthal) saiu da caverna pela primeira vez com sua frágil prole. Pensativos, possivelmente seus olhares vagaram perdidos no horizonte por alguns segundos enquanto ponderavam sobre a dificuldade de trazer à maturidade um filhote naqueles dias turbulentos, com tanto preconceito e discurso de ódio (limitado só pelo restrito vocabulário que dominavam). “Bom mesmo era no tempo do Homo Erectus”, teria alfinetado ela, num misto de jocosidade e provocação - que naturalmente seu parceiro não entendeu. Mal lembravam no momento em que se encontraram pela primeira vez e ele, com sua voz agonizantemente aguda e anasalada, teria tentado convidá-la para olhar algumas pinturas rupestres na sua caverna de solteiro. Felizmente não falavam a mesma língua e talvez por isto mesmo o convite tenha tido êxito e 11 meses depois, lá estavam eles, digladiando-se com as questões que até hoje nos assombram.
A palavra chave aqui é maturidade, significando o conjunto de conhecimentos e habilidades que dão ao indivíduo a autonomia e esperança de sobrevivência. E havia pouco tempo para adquirir proficiência na cultura, em especial naquele caso, em que papai achava canibalismo perfeitamente natural (orgânico, se pensarmos bem) e mamãe se horrorizava com sua falta de modos. Por outro lado, a quantidade de informação a ser introjetada era significativamente menor. Bons tempos.
A vida então começou a ficar complexa e incontáveis camadas de simbolismo começaram a se sobrepor sobre a visão mais rudimentar e bucólica de nossos ancestrais. Uma criança de 8 anos com um celular tem acesso a mais informação que Platão teve em todo sua vida e isto não vem a custo zero. O trabalho que precisa ser desempenhado para chegarmos à maturidade (na visão primitiva) é herculeamente maior e, embora tenhamos estendido o tempo disponível para cobrir a primeira parte da tarefa (na Itália chega facilmente aos 40 anos e no Brasil também, embora aqui seja por questões econômicas), amadurecer tornou-se exponencialmente mais difícil do que há 50 mil anos. Podemos fazer comparações e ilações à exaustão (como por exemplo o fato de que entre os hominídeos também havia a geração ‘nem-nem’, que rapidamente desapareceu pois eles nem almoçavam e nem jantavam) mas o fato permanece de que a sofisticação da nossa sociedade tem tornado o ambiente crescentemente mais difícil de ser compreendido, demandando cada vez mais preparação, o que por sua vez alimenta um círculo - vicioso ou virtuoso, você escolhe, mergulhando a próxima geração um pouco mais fundo nesta sopa de letrinhas e algoritmos chamada vida moderna.
Antes de gritarmos com as nuvens no estilo Abe Simpson, é preciso reconhecer que este não é um processo guiado, nem pelo criador deste jogo, nem pelas grandes fortunas de Wall Street, indústria farmacêutica e nem mesmo pelos jogadores. Enquanto jogadores, somos como bactérias se reproduzindo em uma poça de urina, alheias ao desenrolar do processo e incapazes de interagir com ele, embora fortemente afetadas pelo seu inexorável avanço. A utopia de que um dia seremos uma sociedade de bactérias que se autorregula e determina seu futuro de forma pragmática e colaborativa é extremamente convidativa e, como toda utopia, pode nos afastar da realidade e paradoxalmente nos tornar ainda menos capazes de atingir a tão sonhada maturidade.
Atualizado em: Sex 4 Mar 2022