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A galhofa climática
Primeiramente permita-me afirmar de forma categórica que acredito firmemente não só na existência e importância das mudanças climáticas como também no entendimento que a causa preponderante é a ação humana. Dito isto, vamos à parte da galhofa.
De tempos em tempos, nossos líderes se reúnem em cúpulas mundiais para debater soluções, desenhar documentos e apontar soluções para questões cada vez mais palpáveis. Em similar frequência, o populacho (no qual me incluo, obviamente) esbraveja e tem chiliquitos thunberguianos afirmando que nossos líderes falam demais e fazem pouco. É uma solução deliciosa (esta de apontar os outros como sendo os causadores do problema e fazer chacota do fato de são ineficientes na construção de uma solução), que pode ser adotada na conveniência do seu sofá: sua consciência fica duplamente limpa: você está cobrando as autoridades (portanto abundando cidadania) e ainda se desvencilha do problema. É lindo, não fosse pateticamente falso.
Não é à toa que os representantes dos maiores estados organizados não conseguem sequer chegar a um consenso sobre as datas das próximas reuniões: possivelmente eles já se deram conta de que eles não conseguem resolver o problema e a única consequência prática do seu ritual é uma tentativa questionável de criar a impressão que a situação tem remédio. De fato, do ponto de vista científico, químico, meteorológico e estatístico, o problema até que tem solução (se estamos desenvolvendo tecnologia para terraformar Marte, acho que terraformar a Terra não deve ser assim tão complicado). A vantagem de Marte é que lá não tem terráqueos.
Claro que o seu presidente pode ir ao fórum e comprometer-se que o país irá cortar as emissões em 28.4% nos próximos 73 meses mas na verdade seria necessário combinar com o goleiro antes, ou pelo menos pensar de onde vem estas emissões, que é o responsável por elas e qual o grau de influência que o governo tem com o comportamento destes agentes. Embora haja certa discordância, aqui não é Venezuela nem a China (sob o aspecto ditatorial do governo, especificamente), portanto se combustíveis fósseis são uma das causas do problema, fechar as refinarias não é uma solução viável. Os agentes (nada ocultos) envolvidos neste processo são facilmente identificáveis: as empresas e os consumidores. Eles são os causadores e tem o potencial de serem a solução. O governo precisa subornar metade da classe política para conseguir aprovar um aumento na idade de aposentadoria; seu poder de barganha e influência é limitado e nosso esquema de financiamento de campanha define a direção da seta do dinheiro e da influência. Estes encontros deveriam ser presididos pelas empresas de energia, de agricultura, de transporte e construção, não pela burocracia estatal. O problema não é só a inação; o problema é que as cadeiras estão sendo ocupadas e impedindo que as reais soluções sejam debatidas, avaliadas, fundeadas e experimentadas.
O grande culpado, entretanto, não aparece na TV: com certeza não é o Príncipe Charles que colocou paineis solares nas suas casas de campo e só usa carros elétricos (como se eles não fossem alimentados com energia proveniente de alguma fonte, eventualmente fóssil). O responsável definitivo nesta cadeia de culpa é você! Sim, falei! Através do consumo (alimentos, produtos, energia) e transporte, o coletivo de consumidores está dilapidando o planeta e não adianta fazer cara feia para as empresas que estão criando os serviços e produtos com os quais nós estamos acabando com o planeta. É como falar que o tráfico de drogas é um problema mas o meu baseado não tem relação com isto pois afinal eu estudo na USP. Somos parte integrante, fundamental e majoritária do problema e enquanto não admitirmos isto, seguiremos vendo este desfile de penteados, trajes de gala e discursos inflamados e ocos.
Infelizmente, a situação não é bem assim (ou somente assim): identificar a causa fundamental do problema é até uma coisa boa, fôssemos nós capazes de tomar uma decisão coletiva no sentido de remediar tantos anos de descaso mas a verdade é que não somos capazes de trabalhar em conjunto nesta escala pois, no fundo, não aceitamos consumir menos, usar menos o carro e mais a bicicleta, usar menos energia, ter menos roupas, menos bugigangas, gerar menos lixo. Não queremos fazer isto e a prova não sou somente eu; é você, seu vizinho, seu amigo, seu chefe, o açougueiro, o lixeiro, o ascensorista, enfim, todos aqueles que olham o lixo no chão, xingam mas o deixam lá para entupir o bueiro na próxima chuva. Esta é a parte frustrante: estamos fazendo de conta que estamos procurando uma solução nos nossos representantes mas eles não tem nem autoridade nem capacidade (e talvez nem interesse) de fazer isto mas esta é a nossa escolha para nos evadir da trágica responsabilidade, da conta com juros que está chegando a nossa porta e que fazemos crer que seja de outros. Há uma corrida acontecendo: enquanto o planeta fica mais bagunçado, as tempestades mais intensas, as secas mais severas e a água dos oceanos mais alta, a imagem da inanição e falta de energia para boa parte da população global começa a ficar mais nítida e esta clareza pode se fazer acompanhar de responsabilidade e a responsabilidade pode ensejar ações concretas que iniciem um processo de reversão. Não parece mas sou um otimista: se aprendemos a mascar chicletes e fazer bola de máscara, acho que vamos conseguir encarar esta. Que pena que seremos tão poucos.
Atualizado em: Qui 4 Nov 2021