- Crônicas
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RATOS.
Quando ela se preparava para pular o muro e ganhar o vasto mundo de arbustos e lixo - onde, em perfeito mimetismo, se imiscuiria até o ponto de se tornar invisível às alças de mira das pistolas - os policiais adentraram o terreiro imundo da casa e deram-lhe voz de prisão. O corpo esguio, somado a um conjunto de outros elementos e características, fizeram os tiras arrefecerem o ímpeto de cruzar a linha tênue que separa cérebro e fígado. Era menor de idade, e ainda por cima mulher, e ainda por cima de compleição física frágil, embora dispusesse de ousadia suficiente para matar a sangue frio por pura falta de coisa melhor para fazer, e não obstante portasse uma pistola carregada e pronta para ser usada, caso tivesse oportunidade para isso. À sequência de perguntas que lhe eram feitas, ela respondia sem vontade, sem mudança de tom, sem choro, sem medo aparente. O olhar percorria impassível e devagar os rostos dos policiais, à medida que estes lhe faziam perguntas ou insinuações acusatórias. Foi com esse mesmo olhar que entrou na viatura e, na delegacia, foi submetida a um novo e minucioso interrogatório sobre o parceiro - autor de um homicídio torpe, dias atrás - que estava com ela na casa e conseguiu fugir, antes da chegada da polícia. Falou pouco, também, à representante do órgão de proteção à criança e ao adolescente, que chegou à delegacia para exercer seu papel com um profissionalismo tão cético quanto burocrático. Permaneceu alguns dias no xadrez, aguardando vaga em um abrigo para menores de idade em conflito com a lei. Sozinha na sela, passou as horas deitada, folheando um livro dado pela assistente social. O olhar percorria as páginas lentamente e sem qualquer interesse pelo conteúdo do livro ou por qualquer outro signo existente ali. Comia pouco, era raro sentir fome, e só chamava os policiais para solicitar a liberação do chuveiro ou para acionar a descarga na latrina situada atrás de uma mureta ao fundo do xadrez. Somente no terceiro dia deixou a delegacia, após conseguir vaga em uma casa de detenção da capital, por insistência de uma autoridade local. A caminho da cidade, observando a paisagem ao longo da estrada, lembrou-se do terreno situado atrás da casa, onde o parceiro se abrenhara para escapar da polícia. Por um momento o imaginou perdido no matagal, arma em punho, esperando a noite chegar para ir à procura da estrada mais próxima e talvez para tentar uma carona. De súbito, a imagem do parceiro foi substituída pela de um rato que via passar, toda madrugada, em frente à cela, a procura dos restos de comida que ela deixara a um canto do recinto, próximos às grades. Lembrou-se de como o bicho esperava a noite chegar para realizar o mesmo trajeto, no mesmo horário, em busca da comida, sempre indolente, discreto, quase invisível. Com a imagem do rato retida na mente, ela adormeceu envolvida pelo instante presente e indiferente ao sacolejar do automóvel à passagem pelos buracos da via. E foi sem expectativas e receios que ela chegou ao destino e avançou em direção à porta de madeira repleta de cartazes cheios de ode à beleza da juventude e à fé no recomeço.