person_outline



search

A piscina do Vicente

Ele parou à beira do andar térreo e, num gesto amplo, apontou com a mão esquerda toda a extensão do pátio de uns 3000 m2 que se descortinava à nossa frente. Fez uma pausa dramática e, protegendo os olhos com a mão direita em concha, arrematou, num tom sonhador: “A senhora não acredita no que eu vou fazer aqui”.

Acompanhei com o olhar a mão do empreiteiro, sorvi suas palavras e imaginei o fabuloso futuro daquele espaço, depois de concluídas as obras ora contratadas. Síndica de primeira viagem, eu encarava como ponto de honra solucionar o eterno problema de infiltração na garagem do prédio. A cereja do bolo seria, no arremate da obra, implantar o projeto de paisagismo, doado pelo arquiteto, morador do apartamento 206. Suspirei, enlevada.

O serviço de vulto foi aprovado em Assembleia na data-limite para sua execução, a dois meses do início das chuvas. Tudo teria de funcionar como um relógio suíço. A equipe de trabalhadores tinha dez pessoas; o contrato previa prazos e multas; o tipo de material a ser utilizado estava especificado. A obra, exaustivamente discutida pelos moradores, levaria a totalidade das suadas taxas-extras coletadas, mas estávamos ansiosos e entusiasmados.

Ele, bico-doce. Eu, inexperiente. Isso, e mais quatro cheques passados antecipadamente e, voilà: o serviço estava condenado ao fracasso antes mesmo da primeira pá de terra ter sido retirada dos canteiros.

Quando recebi, ao final da segunda semana, uma comissão de trabalhadores irados pelo não pagamento dos salários é que me dei conta do real significado da frase “a senhora não acredita no que farei aqui”. Ele havia sumido e, segundo constava, teria comprado um carro com o dinheiro da obra.

A próxima vez que consegui deitar os olhos nele, foi na tocaia em sua porta, noite adentro. Eu, uma apavorada senhora, acompanhada por quatro trabalhadores da obra, amontoados por horas, em meu minúsculo carro popular. Mesmo flagrado e afrontado por homens furiosos, o tratante continuava se portando com um gentleman, falando baixo e pausadamente. Um lorde inglês encarnado no Planalto Central, tornando a situação ainda mais surreal.

Resumindo a ópera: localizamos a agência de carros usada pelo empreiteiro; alguns novos embates aconteceram; fugimos de gente que parecia armada; o Palio foi apreendido e transferido para o nome de um integrante do nosso grupo, e arrematamos o mês com a venda do veículo e uma dezena de acordos trabalhistas, feitos com advogado e tudo.

A obra, inicialmente cronometrada minuto a minuto, atrasou. As chuvas encontraram a mim com os nervos em frangalhos e o pátio com o cimento fresco. As águas destruíram partes do piso, deixando falhas e buracos aqui e ali, mas os moradores reclamam mesmo é de uma rasa depressão com uns três metros quadrados, bem na direção de uma das escadas de acesso ao prédio. A cada chuva, a água empoça no que batizei como “a piscina do Vicente”, em homenagem ao tal empreiteiro. Ela ainda está lá, uma década depois da epopeia, Olhando pelo lado positivo, isso significa que a impermeabilização foi bem-feita, e nada precisou ser escavado novamente. Está de bom tamanho. Entre mortos e feridos, salvamo-nos todos.
Pin It
Atualizado em: Sáb 21 Abr 2018

Deixe seu comentário
É preciso estar "logado".

Curtir no Facebook

Autores.com.br
Curitiba - PR

webmaster@number1.com.br