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O Armário

Em sua infância sem esperança, Marco nunca soube, na prática, o que era um brinquedo. Apenas sabia que eles existiam, pois desde cedo via meninos com brinquedos, e também desde cedo entendeu que o valor da mercadoria era quase o montante dos salários dos pais, quase nada. Mal tinha comida em casa todos os dias. Não os culpava. Via o esforço diário, via o suor na testa, via a falta de ambos durante o dia. "A vida não é fácil", dizia a mãe, repetindo sempre.
Não, não era.
Tinha que estudar e ser alguém na vida. Quem sabe chegar a ser "doutor" . Estudar era salvação, dizia a mãe. E ele acreditava. Estudava as imagens dos livros de escola pública, usados por mais de mil alunos antes dele, e sabia de coisas de outros mundos. Se não sabia, imaginava. Se não imaginava, sonhava. E assim vivia.
Era um menino tão pobre, mas tão pobre, que nunca andara de carro. Nunca. Só os via passar.  Falava sobre política, algo assim que ninguém entende. Mas fingiu entender bem. Estufou o peito. E os colegas de classe foram ao delírio. Sem entender nada. A professora ficou calada. Era ditadura militar. Professores não falavam nada. Para não se comprometerem.
Era tão pobre que já teve todo o tipo de vermes existentes na face da terra. Culpa da terra em frente à casa. A mãe sempre reclamava dizendo que só tinha "porcaria" no chão. Mas era lá que brincava de ser melhor. Era lá que ele podia se imaginar num lugar diferente, que não tivesse aquele mau cheiro insuportável de sonho destruído.
Era um menino tão pobre que não tinha livros. Só os da escola, que recebia por causa de um programa de governo e que, via de regra, ninguém fazia muita questão. Sua maior diversão ao receber o livro da série correspondente era justamente ler os textos que estavam na parte de português, ainda que não tivesse uma leitura correta de todos os pontos e vírgulas.
Um dia perguntou à mãe o que significava uma palavra no livro. Mas ela não sabia. De fato nunca ouvira falar em "Dádiva" nenhuma.
A maior ambição desse menino era ter um armário. Sim, um armário para guardar o que quisesse.  Possuía, na verdade, um projeto de guarda-roupa que desabou e ficou inclinado. Não tinha portas e as coisas se amontoavam na diagonal, o que criava cada vez mas bagunça. Um dia compraria um armário para si e para os pais.
O sonho deste menino era morar numa casa bonita. A velha televisão mostrava lugares maravilhosos e casas luxuosas, com pessoas sorrindo pra lá e pra cá. Em nada se pareciam com o barraco onde morava. E tinha tantos armários! Uma vez a mãe disse que pra conseguir tudo isso ele tinha que sair dali, tinha que deixá-la e deixar também o pai, e ouviu desse menino :                                                                            - Então não vou. De que adianta ter tanto armário se não tiver vocês pra colocar roupa dentro?
Não entendeu porque a mãe chorou e, tão logo ficou envergonhado, saiu pra se sujar de terra.
Era um menino muito rico.
Uma dádiva.
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Atualizado em: Qui 19 Out 2017

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