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A Mitologia de Ekhaya - Livro 5: O Grande Expurgo

Havia um tempo em que éramos doze. Doze vozes unidas pela promessa de proteger Ekhaya. Fomos os primeiros escolhidos por Nammu, criados de sua centelha divina e incumbidos de velar pelos sonhos e pelas esperanças deste mundo. Éramos sua obra-prima. Mas também carregamos o maior de seus erros.
Kushim. Seu nome ainda ecoa nas profundezas de minha mente, mesmo que os milênios tenham passado. Ele não foi sempre o Devorador. Antes, era apenas um homem. Um humano, tocado pela mesma centelha que Nammu compartilhou com tantos outros. Mas sua ambição o consumiu. Quando ele começou a matar outros andarilhos, absorvendo o poder de suas almas, Nammu interveio. Ela o arrancou de seu corpo mortal e o selou em uma prisão entre os mundos. Foi ela quem chamou esse lugar de Limbo, um espaço suspenso entre Ekhaya e a Terra. E lá ele deveria permanecer esquecido.
Mas Kushim não foi esquecido. Não por nós. Nem por ele mesmo.
Depois do banimento de Kushim, Nammu nos deu mais de si. Um presente maior do que o concedido aos humanos. Fomos transformados em guardiões do nosso mundo, o escudo e a espada de Ekhaya. Com nossa criação concluída, Nammu partiu. Suas últimas palavras ainda ressoam em minha mente:  
Eu retornarei, mas não antes que pelo menos mil anos tenham se passado. Até lá, a humanidade deve esquecer Kushim e seus crimes
Ela cortou o vínculo entre Ekhaya e Terra. E enquanto o tempo avançava, os humanos, que ainda portavam faíscas de sua centelha, começaram a sonhar. Seus sonhos tomaram forma, moldando dois reinos gêmeos: Tormenta, um reflexo de seus pesadelos, e Quimera, o fruto de seus desejos mais puros. Mas nem mesmo Nammu, com toda sua sabedoria, previu isso.
A conexão entre esses reinos e o Limbo foi a ruína. As brechas na prisão de Kushim, que pareciam insignificantes, tornaram-se caminhos para ele tocar esses sonhos. Ele devorava os pesadelos mais sombrios, absorvia as esperanças mais fortes. E assim, o monstro cresceu. Sua presença enfraquecia as proteções do Limbo, rachando as barreiras que o continham.
Foi Airya, nossa irmã dos céus e tempestades, quem percebeu isso primeiro. Ela sentiu a mudança nas correntes de ar que passavam pelo Limbo. Um peso crescente, uma energia corrosiva. "Ele está se libertando", ela disse. Seus olhos, como tempestades, encararam todos nós no Santuário. "Se não agirmos, ele trará Ekhaya ao caos."
Reunidos no Santuário, elaboramos nosso plano. Nehaleen, a Guardiã das Brechas, propôs criar uma nova prisão, um lugar que ele nunca pudesse alcançar novamente. "Não podemos destruí-lo", ela afirmou com convicção. "Se o fizermos, sua essência se espalhará e corromperá tudo. Devemos levá-lo para longe, isolá-lo onde nem sonhos nem pesadelos possam tocá-lo.  
A proposta dela foi aceita, mas sabíamos que seria uma tarefa impossível sem sacrifício. O Limbo já era uma fortaleza deteriorada; lutar contra Kushim lá seria suicídio. Precisaríamos criar uma nova prisão, um lugar tão distante e inacessível que ele jamais escapasse. Esse lugar seria Irkalla, uma ilha nascida de nossa magia combinada, protegida por barreiras além do que qualquer mortal ou imortal poderia transpor.
Mas para isso, precisaríamos confrontá-lo no próprio Limbo. Kaldi, nosso irmão da terra e dos minerais, ofereceu-se para liderar a contenção inicial. Raful, o mediador das forças do universo, seria nosso ponto de equilíbrio. E Nehaleen, a criadora de passagens, seria o elo para transportá-lo até Irkalla. Eles sabiam o que estava em jogo. E sabiam o preço.
Quando enfrentamos Kushim no Limbo, ele já havia se tornado algo além do humano que fora. Seu corpo era um redemoinho de sombras e caos, alimentado pelas essências que devorou ao longo dos séculos. "Vocês vieram para morrer", ele disse, sua voz reverberando como um trovão em nossas mentes. "E eu devorarei cada um de vocês."  
Kaldi foi o primeiro a atacar. Com um gesto, ele ergueu muralhas de pedra ao redor de Kushim, tentando contê-lo. Mas o Devorador rasgou as rochas como papel, sua energia sombria corroendo tudo ao redor. Liora e Mira entraram na luta, tentando conter seus movimentos com suas próprias forças: a transformação e a vitalidade da natureza.  
Enquanto isso, Nehaleen abria brechas no espaço, tentando criar uma passagem para Irkalla. Mas cada vez que ela moldava o caminho, Kushim destruía suas conexões com um simples gesto. Era como se ele soubesse o que estávamos planejando.  
Foi Raful quem virou o jogo. Ele invocou o Éter, a energia primordial que unia todas as coisas, equilibrando o caos que Kushim criava. "Agora, Nehaleen!" ele gritou. Com um último esforço, ela conseguiu estabilizar a passagem. Mas Kushim, em sua fúria, lançou uma onda de energia que atravessou Raful, destruindo seu corpo físico. Sua essência, porém, persistiu, fundindo-se à barreira que estávamos criando ao redor da ilha.  
Enquanto conduzíamos Kushim através da passagem, Kaldi usou o que restava de suas forças para selar a entrada do Limbo. As montanhas que ele ergueu tornaram-se permanentes, mas o esforço foi demais para ele. Seu corpo sucumbiu ao peso da terra que moldara, e ele caiu, transformando-se em pedra junto com sua obra.  
Nehaleen foi a última a partir. Sua conexão com o espaço foi usada para selar Irkalla completamente, distorcendo a própria realidade ao redor da ilha. Quando a passagem foi fechada, sua forma desapareceu, deixando apenas um eco de sua presença.  
Quando o silêncio caiu, restávamos apenas nove. E no horizonte distante, onde antes havia apenas o oceano, agora existia Irkalla, uma ilha envolta por uma barreira conhecida como o Limiar. Nenhum mortal ou imortal poderia atravessá-la sem ser destruído. Os arredores da ilha foram confiados a uma criatura marinha tão antiga quanto nós, uma guardiã eterna contra aqueles que ousassem chegar perto.  
Perdemos nossos irmãos e irmãs naquele dia, mas vencemos. Kushim estava preso. Por enquanto.  
E ainda assim, ao longo dos séculos, eu sinto sua presença. Ele está lá, na escuridão de Irkalla, esperando.  
E me pergunto: por quanto tempo a prisão irá segurá-lo?  
O Grande Expurgo  
Das memórias de Nazu, o Guardião da Memória e da Resistência
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Atualizado em: Dom 2 Fev 2025

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