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A Mitologia de Ekhaya - Livro 4: O nascimento do Devorador dos Sonhos
O Limbo não era apenas uma prisão, era um exílio. Quando Nammu, em um ato de severidade divina, selou Kushim entre mundos, ela não apenas o arrancou de Ekhaya e da Terra — ela o arrancou de si mesmo. Ele gritou ao ser lançado no vazio, sua voz reverberando como trovões que se perdiam em um silêncio absoluto. Ali, ele estava sozinho, cercado por uma escuridão que não era apenas ausência de luz, mas a manifestação de tudo o que ele havia perdido.
Kushim não odiava Nammu no início. Ele lamentava. Questionava. Suplicava. "Por quê?" Ele repetia, como se o Limbo pudesse responder. Ele refletia sobre o crime que havia cometido, a morte de Bari, o amigo que tentara salvá-lo de si mesmo. Havia culpa em seu coração, mas a prisão esmagava qualquer lampejo de redenção. O tempo, sem medida ou sentido naquele espaço, o transformou lentamente.
Com os séculos, a voz de Kushim silenciou. Ele se sentava na vastidão sombria, esperando por algo — uma palavra, um sinal, talvez perdão. Nada vinha. Nammu, sua criadora, o havia abandonado ali, ignorando suas súplicas, ignorando suas dores. O ressentimento cresceu como raízes envenenadas, enroscando-se em sua alma. Para ele, Nammu havia roubado sua chance de remissão.
A fome começou como um vazio em seu peito, uma ausência que crescia a cada momento de isolamento. No Limbo, ele descobriu que os ecos de sonhos e pesadelos alcançavam aquele espaço. Frágeis no início, esses fragmentos de alma humana flutuavam para perto, como borboletas atraídas por uma chama que não compreendiam. Kushim, desesperado, instintivamente se alimentou do primeiro que encontrou.
Foi um choque. O sonho era vívido, um fragmento de esperança humana. Ele se sentiu vivo por um breve instante, um calor perdido reacendendo em sua essência. Mas tão rapidamente quanto veio, o calor se dissipou, e a fome voltou, mais voraz. Ele devorou outro, e depois mais um. Cada sonho ou pesadelo consumido o sustentava por um instante, mas o preço era alto: com cada pedaço roubado, ele se afastava mais do homem que fora.
Os milênios passaram, e Kushim deixou de ser Kushim. Ele esqueceu o som de sua própria voz, o rosto de sua irmã, o toque das ondas do mar. Tudo o que restava era a fome. Quando finalmente olhou para si mesmo, viu que não era mais humano. Sua forma havia se alongado, os chifres tortos emergiram como marcas de sua corrupção, e os mantos esfarrapados que o cobriam ondulavam como a fumaça de um incêndio eterno.
Enquanto Kushim se transformava, o ódio por Nammu se enraizava. Ele acreditava que, se tivesse sido guiado, se tivesse sido ajudado, poderia ter encontrado o caminho de volta. Mas Nammu o selou, deixando-o sozinho, mergulhado em suas próprias trevas.
Ele começou a caçar os sonhos e pesadelos humanos, não apenas para se alimentar, mas para encontrar fraquezas nos reinos criados por ela. Cada devoração era um grito de vingança, uma tentativa de drenar as criações de Nammu e reivindicar algum controle sobre o que ela havia moldado.
Com o tempo, até mesmo seu ódio por Nammu começou a se desfazer. Ele não se lembrava mais do rosto dela, apenas da sensação de traição. Os ecos de Kushim se perderam, como folhas levadas por uma tempestade interminável. Ele sabia que havia sido algo mais, mas a memória era um vislumbre distante, impossível de alcançar.
Agora, ele existia apenas como um espectro de fome, um predador das fronteiras de Ekhaya e da Terra. Sua presença drenava o calor e a cor de tudo ao redor, deixando apenas o vazio. Os viajantes que ousavam chegar perto sussurravam histórias de uma figura alta e esguia, com olhos inexistentes que pareciam atravessar a alma, mãos que se alongavam como garras feitas para roubar mais do que carne, mas a própria essência de quem eles eram.
Kushim estava perdido para sempre. O Devorador dos Sonhos era tudo o que restava.
Airya - Guardiã primordial de Gaia
Atualizado em: Seg 27 Jan 2025