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Benevolência

Zími saiu para comprar cigarros e desceu pela escada porque o elevador estava demorando. 
Morava no sexto andar, e quando passava pelo terceiro, parou para pegar, perto da lixeira, um suplemento de cultura do jornal do dia anterior, com a Patti Smith na primeira página. 
O assinante daquele jornal leu apenas o caderno de esportes, que estava desmembrado, deixando o resto dos suplementos intocados. 
Antes de guardar o jornal na mochila e sair, estava lendo uma parte da matéria principal, enquanto havia uma conversa alta naquele andar, dentro do apartamento que ficava mais perto da escada. 
Um cara falou para uma mulher: "Eu me casei com a sua filha só pra destruir o seu marido". 
 Zími morava naquele prédio com Mila Cox havia cinco meses, mas ainda não conhecia todos os vizinhos.  
Não soube identificar a voz do sujeito, e sem esperar para ver se conseguiria contextualizar aquela fala com o desenrolar do diálogo, desceu o resto das escadas até o térreo. 
Então foi buscar o cigarro e na volta lá estava Mila Cox, sua parceira musical, na sala do apartamento parcialmente isolado acusticamente, em concentração obsessiva para uma missão que ela mesmo tornou árdua. 
Precisavam terminar mais uma música naquele dia, para que a faixa entrasse no split que lançariam com a banda Major Flops. 
O disco teria duas músicas de cada lado, um lado para cada banda, com a duração de um EP. 
Já estavam demorando porque uma das músicas já havia sido gravada antes. Nela Zími apresentou o esboço, Mila Cox concluiu, então foi logo depois gravada num único take concluído ainda pela manhã. 
Na música a ser gravada à tarde, a ideia partiu de Mila Cox, que se recusava a dar a gravação como concluída. Segundo ela, a canção era sobre desinventar tudo o que era desprezível, tanto na música como na vida. 
Tinham sorte por não precisarem pagar em estúdios mais profissionais. 
Zími sabia que quando isso acontecia, a pessoa acaba desistindo sem que considere que o trabalho teve resultado pleno, ou que foi realmente finalizado. Mas para aquela ocasião, havia um prazo que estava por vencer. 
Ele já havia gravado a sua parte de bateria e poderia até sair dali até que ela terminasse, mas ele jamais perderia as coisas que ela falaria ao longo do processo. 
Ela havia dito logo no começo do projeto, que dividir o disco com outra banda aumenta ainda mais a responsabilidade do lançamento. 
 Seria a estreia dos Major Flops em disco. Zími gostou do que viu sobre eles, mas nada lhe faria parar de pensar que em alguns momentos havia uma influência exagerada de Cabareth Voltaire. 
 Zími  gostava de Cabareth Voltaire, mas naquele caso, a semelhança era proporcional à que havia entre o Mighty Lemon Drops e o Echo and the Bunnymen. 
Ele sabia que provavelmente Mila Cox percebeu essa semelhança, mas sabia também que para ela isso pouco ou nada os desabonava, e haveria benevolência com uma banda que estava começando. 
Mas Mila Cox estava furiosa porque Zími escolheu colocar uma cover como sendo uma das músicas dos Crop Circles no split. Ela só admitia isso para lado b de singles, e ainda assim com ressalvas. 
Mas para aquele caso, a música era ‘Fixin to die’, de Bukka White.  
Zími passou os dias anteriores fazendo carretos com Silvano e também passando horas no Sebo do Messias, e não teve como fazer uma música, mesmo porque Mila Cox combinou esse split de última hora. 
 Mila Cox fez a guitarra, que aprendeu rapidamente, ouvindo a música original duas vezes. 
Antes, repudiou a ideia de chamar o guitarrista virtuose que conheciam e que morava no mesmo quarteirão que eles. Ele andava na rua com um estojo retangular da Gibson. 
Mas ele não seria necessário porque era uma música simples. 
A rapidez com que ela gravou sua parte naquela faixa lhe deu confiança e credibilidade para seguir sem chamar músicos convidados, principalmente para a guitarra. 
Ela gostava de tocar e gravar guitarra, mas ao vivo prefere ser baixista e se desdobra até com instrumentos de brinquedo adaptados para preencher a falta de um guitarrista nos shows. 
Já fizeram isso mantes, mas a principal ideia a ser seguida é a de trabalhar com o que há disponível. 
Os dedos de duas mãos eram suficientes para contar os shows que fizeram com participação de guitarristas. Mila Cox não chegava a repudiar esses episódios, mas prefere não falar sobre as lembranças que tem dessas ocasiões. 
Havia algo nos guitarristas que ela conhecia, desde o mais virtuoso até o mais tosco, que parecia travar o processo criativo para compor ou gravar uma música. 
Talvez fosse algo relativo ao ego deles. 
Ela também tinha vontade de ter controle sobre o direcionamento artístico da banda, mas curte fazer parcerias. Zími era importante para não deixar que ela fique eternamente tentando finalizar uma única música. Ele fazia intervenções importantes. 
Os Major Flops eram uma banda de Taubaté, e o baterista é neto da ex- vizinha  de Mila Cox no bairro da Penha, onde ela até meses antes vivia com a mãe e a avó, que vivem lá até hoje. 
Fariam um show em São Paulo dois dias depois, e chegariam na cidade no dia seguinte, se hospedando na casa da avó do baterista, que é a vizinha da avó de Mila Cox. 
Os Crop Circles enfim terminaram a música, chamada ‘When monday comes’. 
No dia seguinte iriam buscar os Majos Flops na rodoviária, ao meio-dia, na Kombi do vizinho uruguaio Silvano, que os levaria para a Penha. 
Eram dez e meia, quando Zími, Mila Cox e Silvano entraram no elevador, no sexto andar, onde moravam. Iam para a garagem, sair com a Kombi, a caminho da rodoviária. 
O elevador parou no terceiro andar, e um sujeito incrivelmente parecido com o Brian Ferry entrou e deu bom dia. 
 Quando ouviu aquela voz, Zími ainda processava em seu cérebro qual seria a zoeira sobre a semelhança do sujeito com o Brian Ferry, e foi quando soube que aquele era o cara que se casou com a filha de alguém para destruir o marido dessa pessoa. 
Mila Cox já saiu do elevador segurando uma risada, e Zími agora pensava que o fato do cara parecido com o Brian Ferry provavelmente ser um canalha merecia ser mencionado. 
Já estavam ouvindo o primeiro álbum do Roxy Music quando a Kombi saía do prédio. 
Na rua, durante a música 'If there is something', Zími contou sobre o que o vizinho parecido com o Brian Ferry falou, e ninguém falou mais nada até chegarem à rodoviária. 
 
 
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Atualizado em: Seg 5 Jun 2023

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