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Queda em alta

Mila Cox achou que Zími estava enlouquecendo de verdade quando ele lhe contou sobre um de seus dilemas. 
Estavam no banco de trás da Kombi do amigo e vizinho uruguaio Silvano, num domingo pela manhã, voltando de um show que fizeram com mais três bandas em Indaiatuba, quando Zími contou que estava a escolher se seria melhor estar vivo e ver o fim do mundo, o que seria para ele glorioso, mesmo tendo a vida interrompida, ou que por algum milagre, tivesse vida longa, e a humanidade durasse mais, e ele morresse bem velho, porém antes do final da história dos humanos na Terra. 
Nesse caso, o mundo continuaria como um trem desembestado e sem trilhos, e também sem ele. 
Mila Cox respondeu que somente a primeira alternativa era possível, pois ele bebia demais a cada vez que visitavam alguma cidade do interior para fazer shows., e que possivelmente perderia o controle se um dia tivesse a chance de fazer alguma turnê maior, que era o objetivo dela. 
Não era a quantidade de bebida forte consumida na viagem, nem o tijolo inteiro de maconha que ele havia fumado com Silvano desde a véspera. 
Ela sabia que ele era capaz de pensar coisas estranhas mesmo estando totalmente sóbrio, como costumava estar na vida cotidiana que tinham no apartamento que dividiam em São Paulo. 
Ela atribuía esse tipo de pensamento dele a uma falta total de esperança num futuro viável para a humanidade, e tentava extrair daí o conteúdo para as músicas que faziam juntos. 
Mila Cox não havia passado por nenhum trauma relevante na vida.  
Havia, sim, muita insatisfação com convenções sociais que não faziam qualquer sentido, a não ser para um diminuto grupo anônimo que suga e controla as massas. 
Embora ela amasse a avó materna, com quem viveu até os dezenove anos, não entendia como ela pôde levar uma vida envolta de tanto machismo, sem que tivesse se rebelado de alguma maneira. 
Parecia até mesmo que sua avó materna gostava e apoiava o sistema patriarcal em que nasceu e cresceu, depois se casou e enviuvou.  
Não era um apoio declarado, mas havia indícios de adesão a um tipo de conservadorismo que já não tinha (e nunca deveria ter tido) razão de ser. 
Já sua avó paterna era diferente em todos os aspectos. Nunca se casou no papel, bebia, fumava e estava sempre fora do país.  
Era chamada por parte da família de velha louca. Essa era a opinião dos tios de Mila Cox, que se encontravam apenas no Natal e muitas vezes já chegavam bêbados ao encontro. 
No fim das contas, era uma avó ausente, mas generosa, cheia de cultura e bom gosto musical. 
A mãe de Mila Cox, que também vivia com ela, estava numa posição ideológica intermediária entre as avós, o que para a jovem significava apoiar, pela inércia, o fantasma do machismo e da estrutura familiar patriarcal.  
Parecia haver em sua mãe um conformismo diante de algo ao qual as mulheres deveriam se opor incondicionalmente. 
A hora de sair de casa se deu no momento em que não havia mais atritos e nem consenso sobre o que pensar da vida. 
Então ela foi morar com o amigo e parceiro musical Zími. 
Embora tivesse um aspecto jovial, pelo seu visual e pelo pensamento libertário, era um cara de meia idade, e aproveitava o estímulo que Mila Cox lhe dava para ter também mais dinamismo em sua vida, já que ele sempre a via agindo de maneira decidida, orientada para objetivos. 
Se não fosse por ela, ele seria apenas um copywriter que sairia de casa apenas para ir ao mercado e fazer suas atividades de livreiro, comprando, vendendo e trocando livros nos sebos do centro da cidade. 
Assim, fatalmente cairia num ostracismo artístico. 
Ele tinha sempre um estoque de livros para ler e depois vender pela internet, para pessoas de outras cidades, onde há poucas ou nenhuma livraria. 
Com essa rotina, conseguia se manter longe das bebidas e das drogas. 
Enchia a cara quando saía para tocar, fosse em São Paulo ou alguma cidade do interior. Nessas viagens para outras cidades, ele sempre bebia quantidades transatlânticas de goró., especialmente depois de conhecerem Silvano, que sempre comprava várias garrafas de aguardente de produtores locais, que ele pesquisava na internet antes de viajar. 
Com Mila Cox (que bebia pouco e quase não usava outras drogas) ao redor, ele continuou com essas atividades cotidianas, mas com bem mais ânimo e dinamismo, pois junto dela havia para ele a aventura, completamente abandonada por muitos de seus amigos da mesma geração. 
Ele já teve banda de rock antes, mas até que começasse a tocar com ela, passou anos sem cogitar uma volta à música, fazendo shows em troca de cerveja e do dinheiro da gasolina. 
Mas ela fazia com que ele, mesmo num misto de saudosismo e desencanto com essa vida, retomasse o entusiasmo e, ainda que apenas por rebeldia, enxergasse que não havia motivos para não tocar. 
Cantava apenas trinta por cento das músicas, pois tocava bateria simultaneamente, mas sua poderosa voz rouca, que contrastava com seus hilários falsetes, tornava essas canções as preferidas da banda, que tinha apenas os dois como integrantes. 
Era ela no baixo, sintetizador e vocal, e ele na bateria e vocal. 
A constatação dessa preferência do público pelas músicas cantadas por Zími foi feita por Mila Cox, que cuida das redes sociais do duo, chamado Crop Circles. 
Zími agora podia lembrar sem rancor que seu pai dizia que caso ele não seguisse certas diretrizes de comportamento social, viraria um morador de rua. 
Olhando em retrospecto, era claro para Zími que apesar dos altos e baixos de sua vida, até então tinha conseguido se virar e perder completamente qualquer medo de virar um mendigo destruído pelas drogas e álcool, pois antes de seu pai, a professora Maria Eugênia já havia praguejado algo similar em 1983, quando Zími estava na segunda série do primário. 
A professora não havia gostado de uma redação que ele fez sobre fraternidade. 
A escola era católica, e o trecho da redação que irritou a professora criticava gente que humilhava outras pessoas durante o dia e rezava à noite. 
Nessa época, a situação em sua casa também não era boa. 
Sua prima mais velha, que ele encontrava nos fins de semana, havia lhe mostrado vários discos de sua coleção e criticava duramente medalhões da MPB que romantizavam a pobreza e os pobres, mas viviam em mansões e dirigindo carrões. 
Isso causou distúrbio na casa de Zími, pois seus pais achavam que ele não tinha idade para contestar o que quer que fosse, pelo menos enquanto vivesse com eles. 
Quando perguntado sobre o porquê de não ter tido filhos, ele explicava que ao entrar no ensino médio, não sabia qual profissão queria seguir de fato, mas sabia que fosse ela qual fosse, não serviria para sustentar filhos, pois ele próprio se ressentia por seus pais o terem tido. 
A economia feita com essa escolha o livraria do destino miserável que lhe previam, de virar um mendigo bêbado e drogado.  
A paternidade é definitiva, irreversível e cara, algo que não combinava com sua perspectiva de ser razoavelmente livre, tanto nos momentos de agonia como nos momentos de glória. 
Dizia que estabeleceu desde cedo que seria um adulto com diploma universitário e sem filhos. Anos depois, com o advento da internet, consolidou essa perspectiva. 
Na mesma manhã em que voltavam do show em Indaiatuba, leram a matéria sobre os jogadores de futebol que tomaram um golpe milionário da empresa de criptomoedas que prometia muito, não entregou nada, e usava nas redes sociais o lema 'Deus, pátria e família'. 
Para Mila Cox e Zími, Deus se manifestava em suas próprias consciências, individualmente. 
Era algo que estava sempre com eles, direcionando-os para um caminho de ética, decência e respeito. Não era alguém ou algo exterior, que pudesse ser encontrado numa igreja, por exemplo. 
O dinheiro para eles não era um deus, e sim, algo criado pelos humanos.  
Tornou-se algo sem o qual não se vive na sociedade. Torna as pessoas muito mais escravas do que livres. 
Os poucos que conseguem viver sem dinheiro e com alegria, quando descobertos, são alvos de um tipo de atenção que os torna quase desumanos, por abrirem mão de um convívio padrão com os outros, sendo considerados anomalias humanas pelo senso comum. 
Ela queria dinheiro para comprar instrumentos melhores, ele queria dinheiro para comprar de uma vez o apartamento alugado e poder gastar sua energia com outras coisas que não fossem sofrer com aluguel atrasado. 
A pátria não significava nada, a não ser limites fronteiriços, divisões políticas que motivam guerras. O patriotismo, uma doença infantil, o sarampo da humanidade. 
A família eram as pessoas com quem escolhiam conviver. 
Eram temas que já tinham sido explorados à exaustão nas músicas que faziam, mas que pareciam inesgotáveis diante do que viam nas ruas e nos noticiários. 
O prédio em que viviam era também uma fonte de inspiração, pois abrigava uma classe média há anos empobrecida, mas sempre orgulhosa e sedenta não por direitos, mas por privilégios, custe os direitos de quem custar. 
Gente que precisa de um líder, e segue coachs messiânicos picaretas, e vivem sem entender que estão muito mais próximos da favela do que da mansão. 
Uma soberba que desce ao patético. 
Desde que se mudaram para o novo apartamento e conheceram Silvano, as viagens para tocarem em outras cidades ganharam mais estrutura, embora a força motriz do rolê ainda fosse gerida por uma paixão que eles só poderiam ter no amadorismo. 
Um contrato, por exemplo, poderia fazer daquilo uma profissão chata e desgastante, especialmente no que diz respeito à autonomia artística. 
Os vizinhos tinham curiosidade ao vê-los chegando ou saindo, enchendo ou esvaziando a Kombi.  
Era uma curiosidade grande, inversamente proporcional à empatia que sentiam, pois viviam de outra forma, passando por cima das diferenças individuais e seguindo os velhos padrões de comportamento de burguês mal remunerado, querendo ser o que nunca serão, e querendo ter o que nunca terão. 
Chegaram a São Paulo, depois de duas horas, com trânsito em pleno domingo de manhã, e a perspectiva de futuro naquele momento era uma semana trabalhando como copy writers, e fazendo uma música nova para ser lançada como single na internet, além de um show no sábado seguinte em Cosmópolis. 
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Atualizado em: Qua 15 Mar 2023

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