person_outline



search

Et Fillis

A escuridão da noite, de corações disparados, parados. De sustos tomados em qualquer esquina, meninas. De roupas curtas e lábios borrados de batom, sem tom, de cores vibrantes, de olhinhos assustados se queixando dos perigos, correndo, fugindo, tentando voltar para a casa ou para algum esconderijo.
Alice olha para os lados, a rua de carros indo e vindo e a sombra de alguém seguindo-a. Alice quer fugir, se esconder. Menina de dezesseis anos, seios maiores para a idade dela, corpo de formas volumosas, cabelos loiros com mexas escuras; maquiagem carregada no rosto, de cílios falsos, vestidinho justo, exibindo as curvas perfeitas de ninfeta indefesa.
O pai não gostou quando a viu vestida daquele jeito, a chamou de vagabunda. E ela, no alto de seus dezesseis anos, de língua solta e malcriação o mandou tomar naquele lugar. Mas que falta de respeito menina! Levou um tapa na face, deixando as marcas dos dedos carimbadas na pele rosada.
Festinha rolando, bebida à vontade. Alice sorri para um menino, ele sorri para ela também. Os dois vão para um canto escondido e se beijam e se agarram, parecem possuídos. A mão do garoto dedilhando as coxas grossas de Alice, ela empolgada tateando o zíper da calça dele, em vão. Ele não quer, mas ela insiste.
No escuro daquele local olhos a observam, ela não percebe. De calcinha abaixada ela sente ser penetrada por aquele garoto, não era a primeira vez dela, mas era como se fosse, a sensação era a mesma de liberdade de dois anos atrás.
Sorriu, riu, gargalhou. Parecia que a felicidade havia tomada conta daquele lugar, mas seria por pouco tempo. A calcinha ajeitada, o cabelo bagunçado, a maquiagem desfeita. Alice sentiu um arrepio na espinha, finalmente sentia-se observada, invadida, parecia tomada por algo que ela sabia o que era, porém, não sabia compreender.
Saiu apressada dali. O vestido colado no corpo levantando a cada passo dado, o cabelo balançando ao vento, o frio de um calafrio noturno. Alice correu bastante, a rua de casa parecia distante, de longe viu a residência de luzes apagadas. Ela queria atravessar a rua de carros apressados, mas o farol demorado, não saia do verde para ir para o amarelo e depois o vermelho. Coração acelerado, barulho de uma freada brusca, apenas um susto.
Ao atravessar sentiu o salto do sapato quebrar e o tornozelo virar numa entorse medonha, nada quebrou, no entanto, a dor foi tão aguda, que ela pensou em gritar, mas desistiu quando viu diante dela a silhueta de um homem.
- Aí está você- Disse o homem.
Alice recuou amedrontada, lágrimas escorriam por seu rosto, descarregando a maquiagem carregada do início da noite. Alice sentiu ser puxada pelos cabelos, tentou escapar, mas foi em vão. Arrastada foi atirada portão à dentro e quando viu a porta de tinta descascada notou onde estava, era a sua casa, e quem a puxava era seu pai, de cinto na mão e olhos injetados de raiva.
O primeiro golpe acertou em cheio, o segundo passou perto. Alice pedia por favor para ele parar, mas era em vão, o pai parecia transtornado, alucinado. A mão de dedos grandes invadindo seu pescoço. A voz rouca chamando-a de vadia, de impura. O pai que ganhava a vida como motorista repetia loucamente palavras fortes para a filha enquanto a esganava.
Alice pedia por socorro, mas a mãe dormia pesada no quarto ao lado. A menina inconsciente fez a mão do pai amolecer e tirar de cima do pescoço roxo da filha. Foi aí que bateu o desespero. O pai transtornado chamou pela esposa enquanto a filha desfalecida permanecia deitada com os cabelos espalhados pelo piso preto da cozinha. A mãe despertou do sono assustada. O pai da menina acuado num canto, a filha deitada com as marcas dos dedos de seu genitor no pescoço. A mãe vendo incrédula aquela cena entrou em desespero, pegou a filha nos braços e começou a sacudi-la na esperança de que ela voltasse a vida, e por milagre ela retornou. A respiração forçada, o choro contido, o corpo de menina mulher tremendo de nervoso; e a mãe amparando a filha ferida, enquanto o marido acuado igual a um animal assustado buscava entender o motivo de tanto desatino.
No dia seguinte, Alice acordou na cama da mãe. O pai, com remorso da noite anterior despertou no quarto da filha, dormiu na cama dela abraçado junto a uma das bonecas que não eram mais brincadas, e chorou. Chorou igual criança, de soluçar e cair lágrimas nos lençóis.
Alice tomou café ao lado da mãe. Enquanto Alice permanecia no mais absoluto silêncio, sua mãe falava pelos cotovelos, mas sem mencionar o ocorrido da noite anterior. Quando a menina saiu da mesa, o pai se aproximou e sem dizer palavra sentou-se, encheu uma xícara com café e ali ficou; soprando o líquido preto para esfriar e buscando coragem para conversar com esposa.
Enquanto a mulher lavava a louça, ele dava pequenos goles no café.
- A gente precisa conversar. – Ele falou.
- É mesmo? – Respondeu a mãe, enquanto jogava água em um prato cheio de detergente.
- Eu errei, poxa vida!
A mãe virou-se, de guardanapo pendurado no ombro e com as mãos ainda úmidas desatou a chorar:
- O que eu presenciei ontem foi inaceitável. Você quase matou a nossa filha, Manuel.
Sim, ele sabia disso. Mas ver a filha adolescente vestida igual a uma mulher da vida, fazendo sexo com um estranho em meio a uma festinha, deixou ele possesso. Não era ele. Parecia que uma entidade maligna havia lhe possuído, fazendo-o quase matar a própria filha.
E de que adiantava viver dentro de uma igreja, frequentar os cultos todas as terças, quintas e sábados, e nos outros dias fazer trabalho voluntário, vivendo uma vida extremamente complicada, com muitas dificuldades, enquanto a filha adolescente abusava da boa vontade dele e da mulher.
E surras não adiantariam. Manuel sabia que era uma idade complexa, cheia de descobertas e escolhas.
- Peço que me perdoe. – Manuel conseguiu dizer.
- Quem tem que te perdoar é a tua filha e não eu. Em toda a minha vida, eu jamais, jamais poderia imaginar o meu marido, o pai da minha filha fazendo tamanha atrocidade.
Manuel respirou fundo. Percebendo que não tinha como contornar a situação, virou as costas sem dizer nada e saiu de casa. Antes de fechar a porta conseguiu ouvir o primeiro soluço sufocado e o choro pesado da esposa.
Todos eram culpados. A filha por não obedecer e ser rebelde, a esposa por paparicar demais a única filha e ele por não ser um bom pai, um pai ausente, um pai que nunca foi a uma apresentação da filha na escola e que nunca teve um gesto de carinho para com a menina.
Alice se arrumava para a escola. O quarto cheio de retratos de cantores e bandas que ela gostava, as paredes sem pintura, a janela sem cortinas e a cama desarrumada, enquanto ela com seus dezesseis anos se admirava no espelho; nem parecia que a noite anterior tinha sido terrível. Nem parecia que as mãos do pai tentaram esganá-la.
Uma batida na porta. Enquanto secava os cabelos, Alice deixou a mãe entrar, e a mãe de cara sem graça, beijou os cabelos da filha.
- Você está bem? Se quiser não precisar ir à escola hoje.
Mas Alice recusou a proposta. Iria a escola, veria os amigos e as amigas e conversaria com eles, riria, faria a bagunça rotineira dentro da sala de aula e como sempre voltaria com os cadernos vazios de lições, mas com o celular lotado de contatinhos de meninos. Mas e o pescoço? Pegou pó e passou bastante ao redor para esconder as marcas.
Duas semanas se passaram após o ocorrido. Alice não falava com o pai, Manuel e a esposa também não se falavam e uma sombra escura se aproximava da família. Alice correu para o banheiro quando sentiu o cheiro da comida feita pela mão, estava enjoada, sentia-se indisposta e estava indisponível para os amigos e amigas
Ligações perdidas, chamadas recusadas. Alice não queria saber de ver ninguém. Após vomitar mais uma vez ela se trancou no quarto. Estranhando o comportamento da filha, a mãe foi até o quarto, bateu na porta e chamou pela filha que não respondeu. Ela só ouvia o soluço baixinho do choro da menina.
- Eu queria conversar com você para saber se posso te ajudar minha filha.
Silêncio! Alice, deitada em sua cama desarrumada, em seu quarto bagunçado e com as ideias confusas chorava. A mãe, encostada na porta, do lado de fora, lamentava profundamente os últimos acontecimentos. Ela faria o que fosse preciso para que pai e filha fizessem as pazes, mas isso não aconteceria tão cedo.
Os enjoos persistiram. Na volta da escola, onde Alice evitava os amigos mais próximos, ela parou e entrou em uma farmácia. De lá saiu com uma sacola que foi colocado dentro da mochila. Chegando à casa, entrou sem dizer nada, passou pela mãe e só deu um oi bem rápido, e em seguida entrou no banheiro.
Para a mãe a filha estava apertada, com vontade de ir ao banheiro. Alice tirou de dentro da mochila uma caixinha retangular, de cor branca, com detalhes em verde e vermelho. Suas mãos tremiam quando ela abria a caixa, era um teste de gravidez.
A mãe estranhou a demora.
- Tudo bem com você, minha filha?
Num sussurro de voz a menina respondeu:
- Tudo bem sim.
Mas não estava bem. Quando ela viu a cor do teste indicando positivo seu mundo desmoronou. A imprudência dela havia chegava a um nível sem precedentes. Alice saiu do banheiro, o pai sentado no sofá da sala assistia ao jornal na televisão, a mãe lavava a louça. Na mesa da cozinha um prato esperava por Alice, mas Alice não podia esperar mais. Segurando a mochila pela alça e o exame na outra mão ela apenas conseguiu dizer:
- Eu tô gravida, mãe.
Os lábios da mãe tremeram. O pai ainda sentado segurava com força os braços da poltrona, a vontade dele era levantar e meter a mão na cara da filha irresponsável. Mas ele não faria isso, não machucaria duas vidas, ele apenas levantou e ordenou que a filha fosse para o quarto, antes de a menina ir retirou dela o celular e pediu para que ela rezasse bastante e pedisse para que o neto nascesse saudável.
Alice seria uma mãe em nove meses, e isso mudaria completamente a vida de toda a família, inclusive a dela. Ela continuou a frequentar a escola, mas teve de deixar os estudos no oitavo mês de gestação por recomendações médicas. A mãe coruja mimava a filha o tempo todo, enquanto o pai não estava nem aí para o primeiro neto que estava prestes a nascer.
Alice ajudava a mãe com a roupa lavada, enquanto a mãe colocava as peças no varal, ela pegava outras já secas e as dobrava colocando-as dentro de um enorme cesto de plástico.
- Ai! – A mãe virou-se rapidamente quando ouviu a exclamação da filha. A bolsa havia estourado e a jovem mãe precisava ser levada ao hospital o mais depressa possível.
A contragosto, Manuel pegou as chaves do carro e ajudou junto com a esposa a colocar a filha dentro do veículo, e juntos os três foram em direção ao hospital.
Alice chorou muito quando viu o rostinho de seu filho pela primeira vez; era uma criança saudável, gorducha, com bochechas rosadas e cabelos bem lisos e negros.
- Vai se chamar Gabriel. – Ela disse.
Os anos se passaram. Gabriel tornou-se uma criança forte e bastante risonha. Alice arrumou um emprego como caixa de um supermercado, a mãe continuava a cuidar da casa e ficava cuidando do neto nas horas de ausência da filha.
Final do dia. Manuel, o neto e a esposa esperam por Alice que está virando a esquina de casa. Ao ver a mãe o menino corre, passos atrapalhados, quase tropeçando. Alice pega o filho nos braços, o beija bem forte nas bochechas e o gira no ar, Gabriel ri.
Manuel e a esposa se aproximam deles, o pai da um beijo no rosto da filha, e Alice de cabelos pintados de vermelho, sem mechas, devolve o beijo no rosto do pai, a mãe sorri enquanto os quatro caminham rumo a nova casa...FIM...
Pin It
Atualizado em: Qui 18 Ago 2022

Deixe seu comentário
É preciso estar "logado".

Curtir no Facebook

Autores.com.br
Curitiba - PR

webmaster@number1.com.br