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Conteúdo sigiloso, destruir a carta após leitura

Querida Rowina,
O conteúdo dessa carta é de extremo sigilo, os assuntos aqui tratados foram selados pelo concelho e podem acarretar inúmeros problemas para nós. Durante a votação, lutei contra o resultado com toda minha influencia, mas não fui capaz de impedir que eles escondessem isso de todos. Agora vou arriscar minha vida para trazer à tona as respostas para alguns acontecimentos que mudaram nosso mundo.
Não é segredo para ninguém que, no dia 04 de Hator¹ do ano de 794 PQ², o sol parou nos céus.
Magos, feiticeiros, alquimistas, cientistas, estudiosos, nenhum deles foram competentes o bastante para dar uma resposta plausível para esse acontecimento. Nem mesmo o grande Hivost, O Antigo, tinha uma explicação para esse fenômeno em sua biblioteca de cem mil livros e pergaminhos.
Acontece que, na manhã do dia 10 de Hator, em uma reunião ordinária do conselho, foi trazido um homem perante nós oito.
A intendente disse que este homem, aparentemente louco, espalhou rumores sobre a razão do sol ter congelado nos céus e, assim, criou um tremendo alvoroço na praça dos heróis, quando foi preso pela guarda da cidade.
Durante o interrogatório, contou uma história absurda para a guarda, mas chamou a atenção da intendente que levou o homem para sua superior, que então levou para o seu superior e assim, este homem que aparentava ser desconhecido e louco, teve que contar sua história para hierarquia da guarda da Cidade Republica, até que chegasse aos atentos ouvidos da conselheira Necyra, que achou interessante e resolveu busca-lo para enaltecer-nos com essa suposta "história de terror".
Um jovem de aparência abatida e descuidada foi posto perante a mesa do concelho das raças. Ele usava uma camisa branca, toda manchada e suja, consequência do tempo que passou nas ruas, uma calça puída, com pés descalços e a única coisa mais "apresentável" que esse jovem vestia era um sobretudo preto, tão desgastado que já conseguia-se ver alguns pequenos buracos nele.
Com cabelos castanhos e longos, escondendo-lhe o rosto, o jovem se apresentou como Oli, da vila Inaha, ao sul da capital.
A única coisa que eu conseguia pensar era o que chamou a atenção de Necyra sobre esse homem. É fato que a conselheira tem interesses divergentes dos outros membros, mas nunca se interessaria por alguém como aquele jovem, na verdade existiam milhares como ele em Cidade Republica, o ultimo êxodo rural fez questão de encher nossas ruas de mendigos e pedintes.
Mas quando o jovem começou a contar os acontecimentos que se passaram com ele, foi ai que percebi: Necyra sabia que tudo que saia da boca daquele jovem era verdade. Digo isso pois, há alguns dias, ela delatou acontecimentos um tanto quanto exóticos que se passaram no bairro das flores, na capital.Ela tinha apresentado um caso sobre esses acontecimentos para nós, mas na época, estávamos confiantes que Hivost nos daria uma resposta sobre o inconveniente evento que assolara toda Eris.
A verdade é que não demos a devida atenção para o caso apresentado por Necyra e, na falta de provas, ela provavelmente continuou sua investigação até encontrar esse rapaz.
Para facilitar sua vida, cara amiga, vou resumir a enorme história que o jovem nos contou. A princípio, o rapaz saiu da sua pacata vila para se tornar um aventureiro, como os que ele ouvira falar nas canções dos bardos e nos contos descritos em livros.
Seu sonho era entrar em uma das inúmeras guildas na capital, conseguir dinheiro suficiente para que seu pai não tenha que voltar a colocar os pés em um maldito barco de pesca, nem que sua mãe tenha que trabalhar durante 20 horas por dia naquela taverna infernal, onde os bêbados não conhecem o significado da palavra limite.
Mais um jovem que sai de casa querendo se tornar um aventureiro, pensei, nada de especial até aí, mas ele começou a descrever seu caminho para a capital. A estrada real se tornara um lugar muito perigoso, muitos dos homens e mulheres que não conseguiam estabelecer uma vida na capital se viravam para o caminho mais fácil: assaltar caravanas nas estradas e roubar viajantes solitários. Essa é uma ótima maneira de se conseguir dinheiro atualmente e o nosso herói percebeu que não seria uma tarefa tão fácil chegar ao seu destino ileso.
O jovem descreveu muitos confrontos que teve na estrada, mas seu tom de voz mudou quando chegou no relato sobre o dia 04 de Hator, ele descreveu que chegou em um trecho da estrada estranhamente vazio, conseguia ouvir com muita clareza a densa floresta a sua volta, o cantarolar dos pássaros, a sinfonia dos insetos e o tilintar dos seus pertences na mochila, essas eram a única companhia do jovem, até que ouviu um grito do meio da floresta.
Parou de andar, ele disse que pensou em continuar, em seguir sua vida, que provavelmente aquilo seria uma armadilha de salteadores prontos para mata-lo e roubar o pouco que ele carregava, mas não conseguiu se segurar após o segundo pedido de socorro.
Nosso herói descreveu para o conselho que conseguia sentir o desespero no grito da mulher, e assim partiu as pressas, com a espada em punho, na direção do grito. A floresta era densa, tinha que usar sua espada para cortar caminho pelos galhos e folhas, até que ouviu um terceiro grito, que foi interrompido abruptamente. Oli só conseguia pensar em uma coisa, "é tarde demais, devem tê-la matado", mas por algum motivo desconhecido continuou, galhos emaranhavam nele e deixavam buracos em seu grosso sobretudo.
Quando finalmente conseguiu chegar a uma clareira, seus olhos não acreditaram na cena que viram. O jovem despejava lágrimas e fazia força para continuar seu relato, foi ai que Tiberius percebeu o quão doloroso eram as memorias para o rapaz. O homem se levantou do seu assento, encostou um dedo na têmpora direita do jovem, desenhou no ar uma pequena runa com os dedos e sussurrou algo no ouvido do nosso herói, esse que imediatamente se acalmou e agradeceu o conselheiro.
Daqui pra frente a história se complica, não consegui discernir se aquilo que o jovem nos disse era a pura verdade ou devaneios de uma mente a beira da loucura, mas uma coisa eu lhe digo, cara amiga, eu senti o peso nas palavras do jovem e eu creio que todos devem ouvi-las, pois se um terço do que ele nos contou for verdade, devemos nos preparar para uma catástrofe sem precedentes.
Nosso herói nos contou que quando seus olhos acostumaram com a iluminação da clareira, ele viu o que nos descreveu como "uma visão dos infernos", um cheiro forte de sangue e podridão adentrou de uma vez o olfato do nosso herói, de modo que seu estômago embrulhou e foi necessário que se segurasse para não vomitar o café da manhã
A princípio viu muitas carcaças de animais espalhadas pela clareira, eram javalis, lobos, gatos do mato, aves e outros animais que ele não conseguira identificar. Todos mortos com a barriga aberta e alguns de seus órgãos no chão.
No centro da clareira, algo ainda pior esperava nosso herói, ele descreve um círculo feito dos órgãos dos animais e símbolos espalhados pela local escrito com o sangue deles. Dentro do círculo, tinha seis outros semicírculos feitos com os intestinos dos animais de maior porte, e dentro desses semicírculos, haviam seis crianças, três garotos e três garotas, todas vestindo túnicas brancas manchadas pelo sangue.
Elas se encontravam em algum tipo de transe e repetiam um cântico sem parar. O jovem fez questão de olhar fundo nos olhos de cada um de nós enquanto proferia o cântico, "Nosso mestre retorna, retorna para moldar a carne dos mortais, retorna para purificar o mundo, somente os imaculados sobreviverão". Repetiu isso oito vezes e fez uma longa pausa, dava pra sentir a tensão na sala, era quase palpável, quando ele retomou seu relato.
Ele disse que no centro do círculo se encontrava uma figura portando um enorme manto negro com um capuz que escondia as feições, mas quando essa figura dirigiu o olhar para o nosso herói, ele viu somente escuridão dentro do capuz, ele descreve que era como olhar o céu sem estrelas, não via nada, somente a escuridão.
A criatura percebeu a sua presença, seu corpo congelou de medo, o terror que espalhava sobre sua mente era indescritível, segundo ele, mas ao contrario do que se imaginaria, a criatura não avançou pra cima dele, ela permaneceu parada, com a visão fixa nele até que todas as crianças pararam com seu cântico e olharam para ele também.
Nosso herói relata que as seis crianças tiraram adagas de seus mantos, pegaram um coração de algum animal que estava perto de cada uma, partiram ele no meio e engoliram uma metade, e enquanto mastigavam o órgão de algum pobre animal, eles cortaram suas próprias gargantas.
A criatura no centro ergueu sua mão direita, onde havia um cálice e ofereceu ele para o nosso herói.
Oli descreve que suas pernas se movimentaram sozinhas, quando percebeu estava ao lado daquela enorme criatura, de longe, ela não fazia jus ao seu verdadeiro tamanho, quase dois metros de um manto negro cobria o corpo daquele ser e mesmo a centímetros dele, não conseguia ver através da escuridão embaixo do capuz.
O jovem pegou o cálice vazio, mas, quando olhou para ele, viu que se enchia aos poucos. Ele percebeu que seus lábios se movimentavam sozinhos e proferiam as mesmas palavras que as crianças mortas: "Nosso mestre retorna, retorna para moldar a carne dos mortais, retorna para purificar o mundo, somente os imaculados sobreviverão".
Tentou parar de falar aquelas coisas, tentou correr, gritar ou atacar aquele ser, mas seu corpo já não era mais seu e, quando percebeu, o cálice estava cheio de um liquido carmesim espesso. Sem poder se controlar, viu suas mãos levarem o cálice a sua boca e despejarem o sangue quente e pegajoso pela sua garganta. O jovem foi forçado a beber todo o líquido hediondo como se fosse o café que tomara mais cedo
A criatura levantou os braços para o céu e começou a falar algo que nosso herói não entendia, uma língua que nunca ouvirá antes. Hivost perguntou se o garoto conseguia se lembrar de alguma palavra ou frase que a criatura disse e ele respondeu que uma palavra ficara na mente dele, "ulastelig". 
Então nosso velho e sábio conselheiro explicou para todas as pessoas presentes na sala que, provavelmente, essa criatura falava na antiga e esquecida língua Abissal onde o significado dessa palavra é "imaculado". Nosso herói relata que sentiu uma dor enorme, como se metal derretido corresse sobre seu peito e desmaiou. Acordou dois dias depois, com o sol parado nos céus e uma marca cravada no peito. O local do suposto "ritual" estava limpo, havia apenas uma clareira vazia no meio da densa floresta. Ele levantou a camisa e mostrou a marca para todos, era como se uma mão fumegante tivesse encostado no peito do rapaz e marcado ele como se marca gado.
Esse foi o relato de Oli da vila Inaha, um jovem que teve uma experiencia traumatizante e provavelmente nunca mais será o mesmo. Necyra levantou e propôs uma votação para uma melhor investigação do relato, mas, como eu já disse no início, meus companheiros descartaram nossos argumentos e preferiram esconder isso. Por fim,  taxaram o pobre jovem como um louco de pedra que deve apodrecer na prisão da cidade.
É por essa razão que eu escrevo a minha velha amiga do jornal folha da tarde, eu sei que você, Rowina, fará com que todos da Cidade Republica conheçam essa história, conto com a sua ajuda. 
 Com amor
WP
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Notas
1: Nono mês do calendario vigente de Eris;
2: "Pós-Queda" evento apocaliptico que marcou a mudança na nomeclatura dos anos.
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Atualizado em: Ter 11 Jan 2022

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