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NATAL DO FILHO DE UM PRESIDIÁRIO - CONTO

NATAL DE 2001

         Faz dois meses que Samuel está preso. Ele tem um filho. Mesmo assim é Natal, e Rodriguinho, o filho, vai ver o pai em uma delegacia qualquer na ‘mega’ cidade que tem nome de santo. O pai, a mãe, a companheira e o filho de Samuel vão visitá−lo numa delegacia qualquer de São Paulo.

         Chove muito nesse Natal de uma família temente a Deus, que teve um filho amado e criado à luz de todos os deveres e de toda honestidade.

         Samuel, 24 anos, solteiro, desempregado, cedeu ao desespero das faltas e lamentos, curvando−se e embrenhando−se no desatino do dinheiro fácil e sujo das drogas. Perdeu−se.

         Sr.Gaudêncio, o pai, e Cacilda, a mãe, abatida, levam pelas mãos o neto Rodriguinho, inocente e feliz, porque vai rever aquele que tanto ama.

         Vamos visitar o papai? – Será que o Papai Noel deixou com ele o meu presente de Natal?

         Em 24 de dezembro de 2001, arrancou−se de casa o pai de Samuel, Sr. Gaudêncio, arquiteto aposentado, dedicado à família, que mal ficara sabendo dos atos ilícitos cometidos pelo filho; a companheira, Gisele, mãe do garotinho; a mãe, D. Cacilda, e Rodriguinho, a fim de fazerem a tradicional visita de Natal, já que estavam às vésperas daquela festa tão significativa.

         Chovia bastante naquele dia. Uma enorme fila formava−se na porta da delegacia. Guarda−chuvas e sombrinhas se atropelavam e mal protegiam as pessoas aflitas, castigadas por uma forte tempestade acompanhada de um vento terrível. Ouvia−se o choro de várias crianças, e era possível perceber a fisionomia carrancuda e revoltada dos funcionários que controlavam a entrada e a saída dos visitantes. Manifestavam−se de forma agressiva e com total descortesia. O ambiente, que deveria ser de alegria, pois era a oportunidade de se visitar o familiar preso, estava carregado de angústia e tristeza. A ausência do interno em seu lar, num dia tão significativo como aquele, entristecia as pessoas. Presentes debaixo do braço, principalmente das crianças, embrulhados com papéis especiais, coloridos, como de praxe. As crianças, cujos pais estavam detidos, perguntavam:

            Será o que o papai vai me dá? Que presente ele comprou pra mim?”

            Uma senhora, com seu filho, aparentando uns dois anos de idade, vestido de camiseta, toda molhada, dirigiu−se à mãe de Samuel. Percebendo pelas aparências que se tratava de uma família de situação financeira mais abastada, julgou que poderia conseguir uma roupinha para o nenê, todo molhadinho e com o narizinho escorrendo. Provavelmente o pai da criança deveria estar preso também, pensou ela. O coração de D. Cacilda condoeu−se e, abrindo sua bolsa, retirou dela uma camisa amarelinha, com o símbolo da Seleção Brasileira de Futebol, que serviu para proteger o corpinho frágil de mais um infeliz que sofria naquele lugar. Refletia a D. Cacilda, sensibilizada, que a criança poderia estar em casa, tranquila, sem ter que passar por aquele sofrimento, devido a algum ato criminoso do pai. Além disso, padecia com os efeitos da chuva fria naquele lugar tão inóspito.

         De repente, eis que surge uma senhora gorda, de baixa estatura, nervosa, gritando com todos e humilhando os familiares que ali estavam, como se os presos fossem culpados de suas desventuras. Era funcionária da cadeia e estava acompanhada de um detetive. Bruscamente, pediu silêncio às pessoas que estavam na fila e informou que os internos, cujos nomes estivessem relacionados na lista, em suas mãos, haviam participado de uma indisciplina. Estavam, portanto, as famílias impedidas de manter o encontro com o familiar preso. Acrescentou, ainda, que a visita estava adiada para outra data, a ser definida posteriormente. O pior é que da lista constava o nome de Samuel, pai de Rodriguinho, para decepção e copioso choro dos familiares que, tão ansiosamente, esperavam por aquele momento tão importante.

         Alguma coisa tem que ser feita. – Disse o pai de Samuel retirando do bolso seu celular, enquanto ouvia o choro desesperado de Rodriguinho e da esposa, D.Cacilda.

       Que absurdo! – manifestou D. Cacilda. Depois de tantas horas na fila, com criança no colo, faminta, molhada pela chuva, uma notícia como essa só serve para revoltar a gente.

         Calma, calma! Vou ligar para o diretor. Quem sabe se eu conversar com ele a situação pode ser revertida? Ainda mais que estamos em pleno Natal. Um momento tão significativo: a comemoração do aniversário do menino Jesus...

            Ao mesmo tempo em que pretendia pedir ao diretor que abrisse uma exceção, o Sr. Gaudêncio pensava em seu íntimo: “Vai ser difícil, mas não vou desistir”. Provavelmente, o Dr. Alcebíades, homem de bom coração, como ficara sabendo, não atenderia à sua reivindicação, pois havia outras pessoas em situação idêntica.

         Procurando manter a calma, o pobre senhor caminhou devagar para um local, onde não havia barulho, e, sabendo de cor o número do telefone da delegacia, fez a ligação, com o coração miudinho, mas esperançoso.

           Alô! Eu gostaria de falar com o Dr. Alcebíades.

           Quem gostaria de falar com ele? − indagou alguém do outro lado da linha, com uma voz grossa, dizendo tratar−se do Inspetor Almeida, conhecido como sendo um homem mau e que só se dirigia aos familiares dos presos com deboche e, muitas vezes, dava a entender que gostava de ganhar “unzinho por fora”.

         Meu nome é Gaudêncio. Sou pai de Samuel... que está preso...

         O que o senhor quer com ele? − perguntou.

         É assunto particular.

         Provavelmente ele não vai atender, mas vou passar a ligação. Quem sabe?

         Depois de alguns minutos, um senhor de voz serena atendeu ao telefone, indagando o Sr. Gaudêncio do que se tratava.

         Dr. Alcebíades, sei que o senhor é uma pessoa compreensível e de muita sensibilidade. Meu filho está preso e... não sei o que aconteceu precisamente. Uma funcionária dessa delegacia me informou que não poderemos visitá−lo uma vez que ele está de castigo por ter participado de uma indisciplina. Não me esclareceu de que se tratava. Peço−lhe, pelo amor de Deus, doutor, que nos autorize visitar nosso filho Samuel. Já são três e meia da tarde. Chegamos aqui ao meio−dia e estamos todos ansiosos, encharcados pela forte chuva que caiu, o menino com fome... Meu neto, o Rodriguinho, de três anos, está aqui chorando sem parar, querendo, a todo o custo, ver o pai. Ajude−nos, doutor.

         Não posso, Sr.Gaudêncio. Muitos, na mesma situação, já até foram embora. Não é justo autorizar a entrada de vocês sem ter atendido a outros na mesma situação.

         Doutor, hoje é Natal, o senhor tem família... Pense em nosso sofrimento... Ajude−nos, por favor.

         Um silêncio se fez e... de repente, o Dr. Alcebíades perguntou ao Sr. Gaudêncio:

         Quem está aí fora com o senhor?

         Eu, o pai; minha esposa, Cacilda, a mãe do Samuel; a Gisele, esposa do Samuel, e o Rodriguinho, meu netinho.

         Olhe, meu senhor, eu vou autorizar que vocês vejam o Samuel, mas somente através do parlatório (local semelhante a um guichê: do lado de fora fica a visita e do outro o preso. Existe apenas um orifício no vidro que separa as pessoas), durante dez minutos. Não vou autorizar a entrada da esposa. Somente o senhor, sua esposa e a criança poderão entrar.

         Que Deus o abençoe, Doutor. Muito obrigado! Bem que muitas pessoas me disseram que o senhor era uma pessoa especial.

         Depois do agradecimento, o Dr. Alcebíades, para surpresa dos funcionários do presídio, comunicou que estava autorizada a entrada das três pessoas para, através do parlatório, ver o jovem que ali se encontrava preso.

            Quando os familiares de Samuel começaram a subir a rampa para chegar até o local indicado, um funcionário, grosseiramente, perguntou:

            − “Aonde o senhor pensa que vai?”

         − Vou ver meu filho, o Doutor Alcebíades autorizou.

         Não acreditando na palavra do Sr. Gaudêncio, pessoa séria que jamais inventaria uma mentira que pudesse denegrir sua imagem, o homem imediatamente ligou para o Inspetor Almeida que lhe informou:

            − Pode deixar o Sr. Gaudêncio subir com a esposa e o menino. O Diretor autorizou.”

         Decorridos alguns instantes, o Dr. Alcebíades, um homem moreno, muito simpático, bem vestido, com um terno verde−oliva, de cabelo crespo, bem cortado, passou em um carro oficial pelos parentes do preso. O pai não se identificou perante o diretor, mas abençoou, em nome de Deus, aquele homem que acabara de praticar uma ação digna de uma pessoa de bem.

            O momento mais importante havia chegado. Eis que, algemado, atrás de uma vidraça a prova de bala, estava o Samuel, com os olhos cheios de lágrimas, sem poder ao menos dar um abraço e esclarecer os mal−entendidos. Estava escoltado, e o policial prestava muita atenção ao diálogo que se travava entre os quatro.

            De repente, Rodriguinho enfiou seu dedo magrinho no orifício do vidro e, para comoção daquele grupo ali reunido, disse com clareza, de forma muito carinhosa:

         “− Papai, eu queria ser bem pequeno para poder passar neste buraquinho e abraçar e beijar você, pois eu te amo muito! Não podia ir embora sem te ver. Aqui está o seu presente.”

                   O policial deu a volta por fora do parlatório e pegou das mãos do garotinho o presente para o preso, entregando também ao menino o presente do pai, um pequeno pacote embrulhado com papel azul. Dentro, um carrinho que o avô teria comprado como se fosse presente de Samuel para o filhinho.

         Aquele gesto marcou profundamente o momento e a vida daquelas pessoas. Todos choraram muito e, para surpresa, até mesmo o policial que escoltava o preso, possivelmente já acostumado com cenas de todos os tipos, curvou a cabeça e deixou rolar pela face suada e com mostras de cansaço, duas gotas de lágrimas, uma de cada lado, dizendo, com dificuldade:

         − É, moço, já pensou o que você fez? Essa criança me emocionou e nos deu uma lição. Pelo tempo que trabalho aqui, há mais de dez anos, nunca presenciei uma cena como essa. Pense bem. Não faça outras bobagens em sua vida. Criança sofre muito com essas situações e nos dá lições que ficam para sempre. Olhe também o estado em que se encontram seus pais!

         Samuel, chorando bastante, entregou, com autorização do policial, um bilhete ao Sr. Gaudêncio, explicando a tal indisciplina de que estava sendo acusado e castigado. O pai colocou o papel no bolso da camisa e, no caminho, parou o carro para ler os escritos do filho.

            JANEIRO DE 2002.

         No dia 22, às 16 horas, no Fórum da Capital paulista, Samuel, embora assistido por uma ótima advogada, foi condenado a cinco anos de prisão em regime fechado. Do lado de fora da sala de audiência, estiveram, apreensivos, os pais de Samuel, bem como pessoas amigas que foram dar força aos familiares do réu, naquele momento tão difícil. A advogada, seguindo os trâmites legais, recorreu da sentença, mas não logrou êxito.

         Cumprida a pena, com muito sofrimento, disse o Sr. Gaudêncio ao filho quando ele chegou a casa, retornando da prisão, em liberdade provisória:

         − Há males que vêm para bem, meu filho. Se não fosse essa lição, talvez hoje você estivesse em uma sepultura, vítima de um assassinato, como vem ocorrendo com a maioria dos jovens que se embrenham nesse mundo das drogas.

            Samuel pediu perdão aos pais e lembrou−se daquele Natal, quando seu filho o fez chorar, comovendo até mesmo o policial que trabalhava naquela delegacia. Abraçou o pai e a mãe com muita emoção e, após ter refletido muito, todos se deram as mãos e rezaram em voz alta o “Pai Nosso”, agradecendo a Deus aquela etapa tão difícil da vida, agora superada. Na oportunidade, o Sr. Gaudêncio abriu a Bíblia Sagrada em uma página, previamente marcada, lendo para todos que estavam em sua casa a parábola do filho pródigo, contada por Jesus quando de Suas andanças aqui na Terra. Foi um momento de profunda emoção, provocando lágrimas nas pessoas que ali estavam reunidas.

         Depois daquela experiência, Samuel virou outra pessoa. Com quase trinta anos de idade, podia−se perceber a transformação daquele menino desajuizado. Homem de verdade, limpo e em paz com a sua consciência, já que lhe custara muito caro o erro cometido.

                 Doravante, disse Samuel, quero apagar de minha vida essa triste lembrança e mostrar a todos que, quando uma pessoa quer se regenerar, basta força de vontade e crença na misericórdia de Deus.

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Atualizado em: Qui 28 Jan 2021

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