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Sob as marmóreas palpebras
Foi na mesa de jantar, naquela em que ainda guarda ao canto a cadeira reservada ao terceiro indivíduo da casa, seu lugar à mesa; lugar este que agora já não toma, falta à ocasião para dar espaço à outros. No entanto, sua presença lá se sente, onipresente. Faz-se na circunstância velar penoso ao corpo ausente.
Ao lugar das velas fúnebres, copos de mesmo formato transparecem o alegre laranja do suco pela viúva servido, fazendo-se contrastar com o sem cor daquele velório iconoclasta, sem marmórea defunta imagem a quem se dirigir as preces. Sente-se no entanto ainda, uma presença outra que o ar preenche: é a morte a roçar-lhes o manto negro pelas canelas dos condolentes.
Infortúnia aparição esta sua, que aproveitando o recente furto à vida, espera para roubar-lhe ao desgraçado por alguns minutos, a memória de sua partida aos ali presentes. Pois agora, ao senti-la por perto, cada um sente mais por sua própria vida do que pelo morto, temendo ainda que esta seja levada num arrastão. Talvez seja esse o maior pesar do luto, sentir que a morte errou-te a foice e apunhalou vizinho peito.
Ao sentarem-se à mesa os convidados quietos, a espiarem uns aos outros em busca de palavra amiga a que dizer, calam-se ainda à presença intrusa que lhes rouba o peito. A viúva começa então um discurso em resposta às mudas perguntas, questões por ninguém feitas, porém que todos aceitam em compaixão.
A senhora da casa já bem conhecia a funérea imagem da morte. Esta primeiro visitou-a no chá de bebê, em seu primeiro casamento, para logo abandonar-lhe mãe solteira. Desde então, sentara-se em canto qualquer esquecido da casa, na paciente missão de a manter enviuvada. Não houve falha, adormecida por anos talvez, despertou para descobrir-lhe novo casamento, que não tardou a separar por terra.
E foi em ocasião de seu consecutivo assalto, que a viúva narrou-lhes aos convidados a nostalgia da perda. Pois a morte, ao arrebatar-lhe os maridos, sugou-lhes pelos olhos a alma, para que assim se lembrasse dela. Tomou-lhes aos defuntos aquele órgão como corpo substancial, para que através deles pudesse cravar-lhe-a em vida seu olhar vingativo.
E foi assim que pois, narrou aos atenciosos ouvintes a viúva, sua desgraçada presente situação: pelos olhos. Contou-lhes da dupla lembrança que com pesar guardava dos maridos; De que foi, por debaixo das petrificadas pálpebras, com dificuldade abertas por ela mesma, que pôde descobrir-lhe longínquo o olhar do primeiro esposo. Olhar esse que viajou por anos até encontrar-lhe-se com ela novamente, por debaixo das mesmas marmóreas pálpebras, porém de diferente homem, a íris em igual natureza, a suspirar-lhe adeus.
Atualizado em: Ter 19 Jan 2021