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Labirinto

Aquela foi a minha primeira viagem de barco. A saída de Manaus é muito bonita, as águas do Rio Negro e Solimões não se misturam, o rio fica dividido, escuro de um lado e claro do outro. O barco, chamado São Pedro, santo protetor dos pescadores e navegantes, tinha uma carranca na proa. A carranca, muito bem esculpida, era uma harpia com feições humanas. Contaram-me que estas carrancas servem para espantar os maus espíritos que vivem nas águas e teimam em virar as embarcações. Dentro do barco, no primeiro andar havia alguns móveis; duas geladeiras; muitas malas e mochilas; dezenas de cães; e mais ou menos duas centenas de redes amontoadas, onde dormiam a maior parte dos passageiros. Subindo uma escadinha, chegava-se ao segundo andar, onde havia alguns camarotes, eu fui um dos que acabaram por pagar um pouco mais por aquele luxo. No terceiro andar ficava a cabina do capitão, uma cozinha, e um pequeno bar com cadeiras de plástico onde nos sentávamos para apreciar a bela vista proporcionada pela Amazônia. Na segunda noite de viagem, eu já me encontrava bastante entediado, e decidi juntar-me a um pequeno grupo no bar, para beber cerveja quente, ouvir música sertaneja e brega, jogar cartas e contar histórias. Eu e o capitão éramos os únicos brasileiros, havia um outro uruguaio, um alemão - que suponha exercer alguma função eclesiástica, pois ia para cima e para baixo carregando sempre uma enorme bíblia - , dois franceses, e um outro sujeito que não pude precisar sua origem pois permanecia todo o tempo calado. Em determinado momento da conversa, o Capitão contou-nos, enquanto dava tapas no ar tentando inutilmente afastar as carapanãs, sobre os piratas da Amazônia, que constantemente atacam as embarcações que singram aqueles rios que funcionam como artérias, alimentando as duas metrópoles amazônicas, Manaus e Belém. Eram, os piratas, o maior perigo que teríamos durante a viagem, mas que não nos preocupássemos, pois ele, o Capitão, era um navegador experiente. Sua fala era simples e recheada de expressões regionais, sua voz, porém, guardava certo timbre próprio dos homens que exercem algum cargo de comando. Os franceses começaram a contar como agiam os piratas somalis, e logo todos estávamos envolvidos por animada conversa. O tema dos piratas adquirira caráter quase fantástico, pois todos íamos aos mais esquecidos rincões de nossas memórias, buscávamos alguma história de piratas que havíamos lido quando crianças, alterávamos alguns detalhes para deixá-las mais realistas, e compartilhávamos com os companheiros de viagem. Porém, logo minha atenção se voltou para o homem que permanecia calado. O rosto humano é uma bela paisagem, toda a história de um homem encontra-se estampada em sua face, à vista de todo aquele que for dotado de um aguçado senso de observação.  A testa, sim, a testa é onde se percebe se um homem tem uma vida cheia de preocupações. A testa daquele sujeito tinha uma porção de rugas bastante profundas, indicando uma vida cheia de atribulações. Esqueci-o por alguns minutos, o uruguaio contava como os corsários ingleses, em meados do século XIX, aterrorizavam Montevidéu, quando, inesperadamente, fora interrompido pelo homem silencioso. Senhor M., como se apresentou, pareceu-nos bastante rude, desconhecedor das normas mínimas que regem uma boa conversação, interrompia os demais interlocutores, às vezes gritando, às vezes praguejando em demasia. Recordo-me que era impossível determinar a origem daquele sujeito, pois falava um português com um sotaque que remetia a todas as línguas do mundo. De repente, todos nos calamos, e a única voz que se escutava era a de M., que iniciou o que mais parecia um solilóquio macabro: 

-Falam de piratas, aventuras, eu já viajei por todo o mundo, porém, minhas viagens não foram motivadas por negócios, tampouco por prazer. Viajei e viajo para fugir da maldita Bruxa! A Bruxa que eu amei e hoje me aterroriza. Fomos, eu e a Bruxa, casados por sete anos. Tínhamos um casamento feliz, porém, sem filhos. Um dia, minha amada esposa decidiu passar algumas semanas em uma de minhas propriedades no interior, para curar-se das terríveis enxaquecas que a torturavam. Quando regressou, estava diferente. Mais introspectiva, calada, evitava-me, até que a verdade foi revelada: minha esposa, a qual amei e cuidei por sete anos, estava grávida. Eu, senhores, fui abençoado por Deus com uma imensa fortuna em dinheiro, porém, nem tudo são graças, também sou amaldiçoado. Sou estéril. Como podia ela estar grávida? Tranquei-me em minha biblioteca e me pus a refletir. Depois de algumas poucas longas horas, tudo fez sentido em minha cabeça. Aquela sua estadia no interior, naquela quinta que herdei de meu avô, espremida entre gigantescas montanhas, era, já todos sabiam, habitada por inúmeros demônios. A criança concebida naquele maldito lugar, bastardo que habitava como parasita as entranhas de minha mulher, tinha como pai o próprio Diabo! Minha esposa, sem poder lutar contra o instinto materno que a escravizava, acabou por aceitar o Diabo em seu leito para assim poder engravidar. A princípio foi o que pensei, amava-a e a tratei como uma vítima, cometera o pecado por simples fraqueza de caráter. Engano! Descobri que ela era uma Bruxa, um ser maligno, no dia em que a matei com uma martelada no crânio - ainda me lembro bem do barulho oco que seu corpo emitiu quando caiu no assoalho. Matei. Na noite em que cometi o crime, tive o mais terrível pesadelo que já habitou as noites de qualquer homem em qualquer época. Quando acordei, os raios de Sol levaram parte do pesadelo para longe de minha alma, contudo, o que me recordo contarei: a minha mulher aparecia mostrando suas mãos, porém já não eram as mãos que tanto havia beijado, que tanto me haviam acariciado, suas mãos haviam se tornado garras horrendas! Depois, abaixou as mãos, zombava de mim, e dizendo ser uma Bruxa - algo que parte de minha mente já sabia - disse que todos que eu amava seriam mortos por suas garras, e quando já não restasse mais ninguém, eu seria o assassinado. No mesmo dia morreu um tio que eu mal conhecia, no dia seguinte morreram meus dois primos, no terceiro dia morreu minha querida irmã que morava no estrangeiro, e assim continuou, todos os meus familiares morreram, depois todos os meus mais estimados empregados. A morte é algo natural, mas como aqueles pobres coitados morreram...só poderia ser obra da Bruxa! Precisava escapar, eu não queria ser mais uma, a derradeira, vítima da Bruxa. Que fazer? Que fazer?! Lembrei-me de quando criança, sempre que tinha medo corria ao leito materno. Minha mãe era uma mulher frágil e muito doente, não me seria muito útil caso fosse atacado por algum dos muitos monstros que habitavam minha imaginação infantil, eu procurava esconderijo nos aposentos de minha mãe, pois era o sítio que se localizava mais no fundo da casa. Eram tantos os corredores, salas e quartos que se entrepunham entre a entrada de nossa casa e seus aposentos, que, certamente, nem mesmo a mais astutas das criaturas poderia encontrar-me. Precisava embrenhar-me em um gigantesco labirinto, onde a Bruxa jamais pudesse chegar até mim. Mais ou menos como o Minotauro, cativo e liberto em seu labirinto. Dei-me conta de que não havia labirinto mais formidável que o mundo! A Bruxa jamais me encontraria! Passei os últimos anos de minha vida viajando pelo mundo: cruzando as escaldantes areias dos desertos; as densas florestas dos trópicos; percorrendo as mais altas montanhas que mais parecem majestosos gigantes dorminhocos e as neves eternas que lhe cobrem os cumes são como vastas cabeleiras alvíssimas; naveguei pelos oceanos, rios caudalosos que muito se parecem a mares; escondi-me mesmo nos mais sombrios becos de todas as metrópoles dos dois hemisférios. Sei que a Bruxa segue em meu rastro, mas até agora, eu, EU ainda não fui alcançado pela maldita! 

Depois de tão sinistro relato, o homem afastou-se. O alemão acendera um cachimbo e fumava pensativo; os franceses conversavam entrei si em sua própria língua; eu, o Capitão e o uruguaio bebíamos a última cerveja. O dia já estava amanhecendo, o Sol surgia desde o Leste, e seus primeiros raios dourados avançavam sobre as águas tranquilas, dando-nos belo espetáculo. 
Durante todo o restante da viagem evitei o máximo que pude a presença de nosso estranho companheiro de viagem. Alguns dias depois, chegávamos a Santarém, conhecida como A Pérola dos Tapajós. Neste trecho do rio as águas são cristalinas, e a cidade tem uma enorme extensão de belas praias que lembram um pouco o Caribe. Justamente em tão belo lugar, o Senhor M. - autor daquele fantástico relato que ainda me assombra, sobretudo durante as noites - tornara-se assunto das conversas do barco São Pedro: o homem desaparecera sem deixar vestígios. Evaporou-se. Devo confessar - ainda que me envergonhe por tecer tão absurdas e ridículas conjecturas a respeito do desaparecimento - acredito que, por fim, a Bruxa o apanhou, ou que temendo que a terrível criatura o aguardasse em Santarém, decidira-se por abandonar o barco na véspera da chegada, quem sabe, arrojando-se no rio. O Capitão, homem sensato, acreditava que o homem houvesse sido raptado pelos temidos piratas da Amazônia. De qualquer maneira, seguimos sem outros incidentes de qualquer natureza até o nosso derradeiro destino, Belém do Pará. 
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Atualizado em: Qui 9 Jul 2020

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