- Literatura - Contos
- Postado em
Ultimo dia na terra
O vento noturno soprava de forma tão violenta que tudo que eu podia ouvir era um zunido estridente que impedia até o mais recluso de meus pensamentos. A lua brilhava, pálida e fantasmagórica no céu, parecia agora tão distante quanto qualquer outra alma naquele deserto que parecia não ter fim. Vagava já pelo quinto dia na imensidão árida que um dia já tinha sido o estado do Mato Grosso. Há cinco dias, havia partido de minha cidade natal, Sorriso, em direção a capital, levando três cantis de água e uma mochila de enlatados para sobreviver no que agora era conhecido como “o vazio”. A cada passo que dava, uma pegada se formava, e, logo era apagada pelo vento. Aos poucos, o deserto apagava todos os rastros de minha existência. Sabia que no fim, o vazio acabaria por engolir-me.
- Este é meu último dia na terra- digo a mim mesmo, mas quase não posso ouvir por conta do vento ensurdecedor. – Ou será, se não chegar ao meu destino.
Tateio o lado esquerdo do meu grosso casaco de pele em busca do bolso. Quando encontro a fissura, deslizo os dedos para dentro dela e retiro os dois recortes de jornal que carreguei comigo pelos últimos 31 anos. O primeiro continha a foto de dois homens de terno apertando as mãos calorosamente, logo abaixo, havia uma matéria intitulada “projeto de lei 6.299/2002 é finamente aprovado, inicia nova era para os defensivos agrícolas”. A matéria datava do ano 2019. O ano em que passamos a nos alimentar de veneno, a nos banhar em veneno e a respira-lo também. Os campos morreram e o grande potencial agrícola do país sucumbiu, levando consigo toda nossa esperança. As fontes de água foram comprometidas e o ar era carregado de tóxicos. A natureza pereceu diante de nossos olhos e não pudemos fazer nada.
O grande estado do Mato Grosso, referência em desenvolvimento agroindustrial, tornou-se o vazio. As enfermidades apareciam aos montes, o veneno era perspicaz, matava o corpo lentamente e só depois de causar sérios danos a sanidade. Lutas começaram pela sobrevivência e as pessoas fugiram para o deserto. Eu, entretanto, fiquei. Fiquei, na esperança de que a ajuda chegasse, o governo talvez, mas perdemos contato com o resto do território então imagino que não haja mais nada além do vazio. A última notícia do mundo velho estava contida no outro recorte de jornal que carregava comigo há tanto tempo, este dizia “Centro de refugiados aberto na grande Cuiabá, começa o processo de desintoxicação”. Era para lá que estava indo. Minha última esperança.
Os dias eram insuportavelmente quentes e as noites faziam congelar até a mais profunda fibra de meu corpo. Todas as noites, quando o frio atravessava os grossos casacos de pele, eu cogitava incendiar os recortes para me aquecer, mas sempre descartava a ideia. Mesmo tão antigos, eles eram minha única ligação com o mundo velho, e agora, mais uma vez, me fizeram seguir em frente. Enquanto andava, o pacote que estava no meu bolso direito balançava e fazia barulho. Dentro do invólucro, havia sementes, de todas as cores e tamanhos. Esperava que quando encontrasse a última esperança no deserto, pudesse devolver ao vazio a antiga beleza do mundo velho, talvez houvesse alguém lá que soubesse como. As sementes eram a relíquia de um não mais tão jovem colecionador, assim como a arma que eu carregava na cintura. Esta, estava carregada com o que eu havia apelidado de anti-sementes, quando eu tivesse que plantar uma, algo morreria. Se o vazio acabasse por vencer minha fibra, eu alimentaria o solo seco com meu sangue.
No final do quinto dia, me sobrava apenas meio cantil de água e uma pequena quantidade de comida e eu não fazia ideia de quando encontraria algum recurso novamente. Como em tantas outras ocasiões, a ideia de desistir espreita em meus pensamentos. Cerro os olhos com força e minhas pernas fraquejam. As lagrimas não aparecem, meu corpo estava carente de água.
- Não posso mais seguir em frente- digo como em tantas outras vezes- esta viagem não tem sentido. Assinei minha sentença quando resolvi deixar o abrigo.
Mesmo contra a vontade, abro os olhos outra vez e o que vejo me deixa em choque. Havia uma figura encapuzada parada em pé a menos de 20 passos de mim. Fico receoso, as pessoas no vazio não eram mais confiáveis, o veneno podia fazer coisas inimagináveis com a mente. A figura então tira o capuz e revela seu rosto, era um senhor. Além das queimadoras do sol, o homem não aparentava nenhuma enfermidade visível, tampouco parecia representar alguma ameaça. Resolvo então aproximar-me com cautela, todo cuidado ainda era pouco. Quando estou a cinco passos do homem, posso ver seu olhar vazio e não posso deixar de imaginar que o meu rosto deve estar exibindo a mesma expressão.
- De onde veio, meu senhor? – grito para a figura- E para onde vai?
O velho fixa seu olhar vazio no meu e a resposta arrasta-se para fora de sua boca com dificuldade.
- Eu venho do grande cemitério. Parti tem uma noite e busco um lugar onde possa sobreviver.
Reparo que o homem parece estar realizando grande esforço para responder ao meu questionamento, penso em oferecer-lhe um pouco de minha água, sua viagem também não era fácil. Mas, antes que pudesse dizer qualquer coisa, o velho cai ao chão bem em frente aos meus pés. Desesperado viro seu corpo para cima e vejo que o homem não consegue mais manter os olhos totalmente abertos, o vazio o havia alcançado, não lhe restava muito tempo. Eu, contudo, precisava da informação que o senhor tinha.
- O que é o grande cemitério? – pergunto
Aproximo meu rosto ao do velho e ouço seu último sussurro.
-A grande capital cinza, agora é só uma enorme lápide no deserto. Nenhuma alma vive.
Ao desferir essas palavras, o senhor fecha os olhos pela última vez. O choque daquela informação acertou meu peito em cheio.
- Não há nada além da areia e do veneno- digo fazendo com que as palavras ecoem no vazio. Agora os ventos estavam já mais calmos. – FOI TUDO EM VÃO.
Tiro as sementes do bolso fundo e as deposito na areia ao lado do corpo do velho.
- Meu último dia na terra- digo outra vez, agora sentindo o peso dessas palavras.
Deito ao lado do cadáver e das sementes e sinto a areia fina se moldar ao formato do meu corpo. Minhas costas relaxaram ao toque da superfície macia. Retiro a arma do coldre em minha cintura e coloco-a em frente aos meus olhos. O Brilho da lua reflete no cano do revólver e eu entendo a mensagem. Olho para o céu e percebo que a aurora começa a pintar-se em um tom avermelhado.
-Meu último dia na terra.
Engatilho a arma e aponto-a para meu queixo com a mão direita. Com a mão esquerda, pego um punhado de areia e deixo-a escorrer entre os dedos. A terra estava morta e eu logo iria me juntar a ela. Vislumbro as estrelas mais uma vez e penso se existe algo lá em cima observando, esperando algo de mim. Com certeza estava decepcionado. Cerro os olhos com força e respiro fundo. Em um último ato desesperado, vou de encontro a paz que tanto buscava. O estrondo da arma ecoa pelo deserto e se dissipa no vento, levou consigo minha alma. Meu sangue regou a solo, morto há tanto tempo. Havia plantado a última semente, e o fruto agora alimentaria a terra por muito tempo.
Atualizado em: Qui 21 Nov 2019