- Literatura - Contos
- Postado em
Olhos de sangue
A vingança é algo que se come frio, gelado, e na vida de Jack, até congelado. Ultimamente sua obsessão tem sido a caça, mas não qualquer tipo de caça. Neste momento ele dirigia a toda sobre a ponte Golden Gate em São Francisco, rumo a essa caçada. O som do carro, estourava no máximo, o que lhe rendia algumas buzinadas de motoristas incomodados. Ao seu lado, no banco de passageiros, descansava praticamente um arsenal: armas de fogo e brancas, entre elas, pistolas 380, fuzis, munição de todos os tipos e facas, muitas facas.
O americano acompanhava a música, cantando se não na mesma altura que o som, talvez mais alto. Estava feliz, sentimento que não o invadia há muito tempo. A causa de tamanho êxtase, se devia a que agora, ele finalmente encontrara o esconderijo de sua caça: o assassino de sua família. Sabia que tinha de matar e vingar-se do sangue derramado de sua esposa e de seus filhos. E ele sabia que o assassino, era um ser sobrenatural e maligno. Ele sabia que o assassino, era um vampiro.
Jack demorou a aceitar este fato. Sua sina começou a um ano e meio quando se mudara com a família para São Francisco, vindos então de Nova York. O professor universitário de história, havia recebido uma proposta de trabalho e ganharia o dobro de onde já dava aulas a 15 anos. Convenceu a esposa Cat, e embarcou com a família algumas semanas depois de recebida a proposta. A mulher não gostou nenhum pouco disso, mas o argumento usado pelo marido era de que ela também poderia ganhar melhor nos jornais da cidade e que sua carreira de jornalista seria melhor valorizada e assim, ela aceitou. Difícil mesmo fora convencer os filhos, que tentaram de todas as formas, persuadir os pais a não irem para São Francisco no exato momento da viagem. Os gêmeos se recusavam a entrar no carro, e sempre diziam que os dois tiveram o mesmo pesadelo a noite e que nesse pesadelo, aparecia um monstro com dentes pontiagudos. Estavam pressentindo o perigo. Mas, Brandon e Bran eram crianças e Jack e Cat não levaram isso a sério, como adultos que eram. Severamente, ordenaram aos garotos que entrassem no carro. Assim, a viagem aconteceu, e o destino da família, começaria a ser selado.
Alguns meses se passaram desde que a família chegou em São Francisco e viveu tranquilamente até o momento em que a tragédia se anunciaria. Em um certo dia, Jack precisou ficar no trabalho além do horário para ajudar um aluno com dificuldades na matéria. Telefonou para Cat para avisá-la. A esposa por sua vez, disse que estaria em casa em meia hora, com os filhos. Assentindo, o professor voltou ao trabalho com seu aluno. Mal sabia ele o que encontraria quando chegasse em casa.
Cat chegara em casa por volta das oito horas da noite. Entrou com o carro na garagem e observou sorrindo, seus filhos saírem correndo do veículo e, gritando, abrirem a porta da casa com euforia. Em alguns meses, eles esqueceram o pesadelo com o ser demoníaco e começaram a gostar da cidade e da casa.
- Hey! – gritou a mãe desafivelando o cinto de segurança – nada de correr pela casa!
A mulher girou a chave na ignição, fechou os vidros e abriu a porta do veículo. Ela se preparava para fechar a porta, quando de repente uma mão forte se fechou na sua garganta, pressionando Cat contra o carro. A jornalista começou a sentir o ar faltar dos pulmões e o coração acelerou. A criatura apertou mais e Cat soube que seu pescoço se quebraria, soube que iria morrer. Conseguiu olhar o rosto do agressor e achou que estava delirando pela tontura que a falta de ar causava, pois, viu olhos vermelhos e dentes afiados e muito brancos na boca do homem. Apesar disso, ele era bem sedutor e bonito.
Cat sentiu a vida se esvair de seu corpo quando aquela criatura cravou aqueles dentes em seu pescoço e sugou seu sangue. E enquanto morria, pensou nos filhos e uma lágrima se permitiu sair quando ela soube que seus pequenos também morreriam, que nunca chegariam à adolescência, nem à vida adulta, não realizariam seus sonhos, não conheceriam o amor de uma mulher. Mas, em segundos, esses pensamentos sumiram e tudo se enegreceu. Cat estava morta. Logo mais, Brandon e Bran se juntariam a ela no outro mundo.
Jack chegou em casa as nove da noite e no escuro da garagem, não pôde ver Cat caída ao lado do carro. Viu apenas a silhueta da porta do veículo aberta e se perguntou o que Cat estaria fazendo que a esquecera escancarada. Será que ela não sabia que poderiam roubá-lo? Se isso acontecer, não vou te emprestar meu carro, senhora, pensou, sorrindo em seguida.
O homem avançou mais alguns passos e agora viu o amontoado perto do automóvel. Jack sentiu seu estômago embrulhar. Mas não poderia ser sua mulher ali, poderia? Talvez seja alguma coisa que ela carregava e deixou cair. Talvez compras. Sim, tinha que ser isso. Mas se fosse esse o caso, Cat havia se esquecido, pois a casa estava às escuras. Afinal, porque a casa estava às escuras? Não, a luz do quarto dos meninos estava ligada. Cat deveria estar preparando-os para dormir, deveria estar lendo uma história, As Crônicas de Narnia, como sempre. Mesmo sabendo o livro de cor do início ao fim, os gêmeos faziam a mãe ler algum capítulo toda noite.
Sacudindo a cabeça e deixando os pensamentos de lado, Jack aproximou-se mais e foi aí que viu um brilho amarelado junto ao amontoado perto do carro. Não teve dúvidas de que era o cabelo loiro de Cat. O professor petrificou. Não sabia se corria ou ficava ali. Teve medo de ver sua esposa dilacerada ou cheia de sangue com uma bala alojada no peito. Olhou em volta com medo. E, se quem fez aquilo, ainda estivesse por ali? E onde estavam seus filhos? Oh, Deus, o que aconteceu?!
Demorou para que despertasse do transe e quando isso aconteceu, disparou até onde Cat jazia. Caiu de joelhos ao lado do corpo da esposa e ficou quase feliz por não haver sangue. Cat tinha passado mal e desmaiara, foi isso. Ele deitou a cabeça dela em seu colo e deu tapinhas em seu rosto. Ela estava gelada. Oh, Deus! Porque ela estava gelada?
- Cat, Cat – chamou Jack desesperado – Cat, acorde! Pelo amor de Deus, Cat! Não faça isso comigo! Brandon! Bran! – gritou chamando os filhos embora seu coração dissesse que eles também estavam caídos em algum lugar lá dentro – me ajudem aqui! Por favor, Deus! Não!
Dando-se conta de que a mulher estava mesmo morta, o homem chorou copiosamente abraçado ao corpo. Seu cabelo preto e liso contrastando com o loiro dela.
- Não! – gritou com toda fúria e tristeza que emanava de si. Toda a raiva e revolta, embaçavam suas vistas e o tornava cego para o que realmente tinha acontecido, por isso, não percebeu os dois furos no pescoço da esposa morta. Deduzira que Cat fora vítima de algum assalto e levou pancadas até a morte. O fato de ela não ter hematomas em nenhuma parte do corpo, nem lhe passara pela cabeça.
Mas agora não tinha tempo de pensar nisso. Seus filhos ainda estavam em algum lugar lá dentro, talvez correndo perigo. Deitou gentilmente o corpo de Cat no chão e esfregando as lágrimas com as costas da mão, entrou em casa, atento a qualquer barulho. Mas o que viu quando ultrapassou a porta da sala, foram os corpos de Brandon e Bran, caídos na porta do quarto ainda com as mochilas nas costas. O coração de Jack murchou feito uva passa. Ele correu até os filhos mortos e chorou abundantemente, gemeu, gritou, sacudiu os corpos numa tentativa vã de acordá-los. Foi nesse ato, que o professor percebeu os furos nos pescoços dos filhos. Os buracos perfuravam perfeitamente a jugular e eram arroxeados nas bordas. Mas dali não saía nem uma gota de sangue. Jack franziu o cenho. Que negócio era aquele? O homem olhou para aquilo por um longo tempo e de repente, a palavra vampiro veio em sua cabeça. Como estudante e professor de história e também como leitor voraz e curioso, ele tinha lido várias coisas sobre vampiros. Sabia que eram eles que faziam aqueles buracos nos pescoços das pessoas para sugar o sangue. Mas isso é lenda, não é? Vampiros não existem. Conde Drácula é só um mito, não é? Jack tinha plena convicção disso. Mas então quem fizera aquilo a seus filhos?
Imediatamente, o professor se lembrou de Cat e correu até a garagem novamente. Examinou o pescoço da mulher e viu nele os mesmos furos. Jack sacudiu a cabeça desesperado com um misto de dor e fúria. Girou sobre os calcanhares olhando em volta da casa, procurando o assassino – humano, sim ele sabia, foi um humano que fizera aquilo um humano bancando o ser das trevas – que ainda poderia estar por ali, escondido. Lembrou-se que tinha uma arma no porta-luvas do carro, uma que havia comprado com licença e tudo. Deu a volta no veículo, abriu a porta e pegou o revolver. Checou o tambor. Estava carregada com uma única bala. Nervoso e desesperado, começou a apontá-lo para todas as direções.
- Hey! – gritou desesperado, as lágrimas embotando a visão – apareça desgraçado! Venha me enfrentar. Ou você só mexe com mulheres e crianças indefesas?!
Ele não obteve respostas. Então, desorientado, apontou a arma para a própria cabeça, fitando sua esposa morta no chão. E teria atirado se não fosse detido por vizinhos que chegaram ali devido a seus gritos.
A polícia foi chamada. O IML também. Jack foi consolado por alguns amigos, teve que responder perguntas dos policias, dar depoimentos e toda essa coisa que ele odiava. Como poderiam pensar que ele havia matado a esposa e os filhos? Será que não viram que não havia nem sangue ali? Será que não viram os furos nos pescoços? Como ele poderia ter feito aquilo? Como qualquer ser humano poderia ter feito aquilo? Ele foi deixado em paz em casa depois de ver sua família enrolada em sacos plásticos pretos, ser colocada naquele carro frio do IML. Chorou, se embriagou e no dia seguinte compareceu à delegacia para mais um depoimento, sujo, com a mesma roupa do dia anterior, os cabelos emaranhados e a barba por fazer. A polícia o considerou inocente. Claro, como um homem naquele estado, com os olhos fixos, em estado de choque, poderia ter matado alguém? Voltou para casa ansioso pelo laudo cadavérico dos corpos de Cat e dos meninos que revelaria a causa da morte. Mas sabia que não conseguiriam resposta para a fatalidade. O que será que pensaram ao ver os furos no pescoço e perceberam os corpos vazios de sangue? Jack não conseguia parar de pensar na reação dos agentes do IML. Deviam estar desorientados. Mas Jack não. Jack sabia o que tinha matado sua família, só não conseguia acreditar ainda.
Daniel se encontrava sobre o pináculo da ponte Golden Gate, com seu sobretudo esvoaçando como se ele fosse uma criatura de cinema. Dramático demais pensou ele, e riu. A criatura olhava atentamente para baixo, o tráfego de pessoas e carros, a procura de uma vítima. Estava com fome e sabia que só o sangue humano poderia saciá-la. Ah! A fome eterna que corroía seu corpo todos os dias. Era uma maldição, ele sabia.
Nem sempre ele gostava de matar inocentes. Muitas vezes procurava malfeitores. Ladrões, estupradores, drogados, traficantes. Esse tipo de gente nunca escapava de suas presas. Mas não se sentia um justiceiro ou algo do tipo. A verdade é que parecia que o sangue dessas pessoas era mais saboroso, principalmente quando ele o conquistava com uma luta contra o humano. Mas se não encontrasse nenhum malfeitor em alguma noite – o que era raro – ele matava quem cruzasse seu caminho. Não podia negar sua natureza e nem ignorar sua fome. Era um vampiro, um assassino que precisava matar para sobreviver. É a lei da vida, a cadeia alimentar. Os animais estavam abaixo dos humanos e estes, abaixo dos seres da noite.
Algumas mortes ficavam por muito tempo na memória de Daniel. Há alguns meses, ele se viu obrigado a matar uma jovem mulher e seus filhos gêmeos. Ele não era um vampiro novato – tinha cerca de 500 anos de vida – mas esse ataque em especial o marcou. Não porque tivesse sentimentos, não isso não, mas porque aquela mulher o fizera se lembrar de sua mãe, morta por outro vampiro – seu criador – séculos atrás.
Em tantos séculos de vida, era apenas por ela que Daniel nutria um sentimento de perda e saudade. E olha que ele havia visto muitos amigos e familiares morrerem ao longo dos anos. A mãe dele fora morta por aquele vampiro de aparência rude, que já era um cara de idade quando fora transformado, tendo os cabelos brancos e a pele com rugas. Daniel na época com 20 anos chamou a atenção do vampiro que decidiu transformá-lo no que ele é agora, apenas porque o rapaz inglês lembrava seu filho que estava morto. Mas Daniel não aceitara isso muito bem e nunca perdoara seu criador pelo assassinato de sua mãe e muito menos, por ter lhe dado o abraço noturno. Assim que viu que conseguiria viver sozinho, o vampiro novato fugira do mais velho. Nunca mais tornou a vê-lo. Mas a magoa permaneceu, mesmo tendo passado séculos. Lembrava-se do rosto de sua mãe claramente, como se fosse ontem que a tivesse visto pela última vez. E como ela se parecia tanto com aquela moça que ele havia matado! Mas o vampiro atraíra problemas para si por essa morte. Daniel sabia que o marido viúvo estava caçando-o como a uma raposa e diversas vezes, chegava bem perto do seu rastro, o que acabava revelando-o para os humanos, algumas vezes, ou fazendo suas presas fugirem. Mais tarde, o vampiro descobriu o nome do humano e começou a planejar como iria derrotá-lo. Isso para ele, era divertido. Fazia muito tempo que ele não enfrentara um caçador de vampiros e francamente, sua vida estava um tédio nesse novo século. A Idade Média era mais divertida.
O vampiro sabia que o humano tinha descoberto sua casa, seu esconderijo e, deixaria que ele chegasse até lá. Talvez isso o tirasse do tédio, da mesmice de uma vida de vampiro que consiste em sair do caixão todas as noites e matar para se alimentar. Claro, Daniel esperava que Jack fosse um bom guerreiro e não aparecesse em sua mansão portando armas de fogo que são completamente inúteis contra um imortal. Mas inteligente era. Daniel sabia que o homem fora esperto para saber que as superstições de que os vampiros morrem ao ver um crucifixo ou alho, realmente são superstições e das mais idiotas. Coisa dos povos da Idade Média que Daniel conhecera bem de perto. O vampiro esperava que a luta fosse boa e que ele precisasse fazer mais do que esmagar o pescoço de Jack.
A criatura da noite afastou os cabelos louros dos olhos azuis e, finalmente escolhera sua vítima que passava a pé na área para pedestres da ponte. Saltou, caindo de pé na frente dela, uma moça de uns 18 anos no máximo. Ela se assustara, e antes que gritasse, Daniel lhe deu um golpe no pescoço que fez com que ela perdesse a consciência. Rapidamente, ele saltou novamente para o pináculo da ponte, impedindo que qualquer humano o visse, tamanha sua velocidade. Ali em cima, cravou as presas no pescoço da garota, sentindo o sangue invadir seu corpo, aliviar sua fome. Ah, a sensação era maravilhosa, inexplicável! Depois de drená-la, jogou seu corpo no oceano, despertando finalmente a atenção das pessoas que passavam. Mas Daniel ignorou-as e caminhou de volta para sua casa. Tinha que receber uma visita.
Jack acabara de atravessar Golden Gate e agora dirigia pelas ruas da cidade com energia suficiente para cinco homens. O aparelho de som do carro ainda berrava e ele cantava junto. O professor olhou para as armas no banco de passageiros e se lembrou de como foi fácil consegui-las. Na fúria e no desejo de vingança pela morte de Cat e dos filhos, ele faria qualquer coisa para conseguir armas poderosas que pudessem destroçar um vampiro. E nem sequer se preocupou com uma licença ou um registro. Se fosse preso por porte ilegal de armas, ele não se importava desde que já tivesse matado o desgraçado. Iria explodir a cabeça do vampiro. Era o que faria, o que tinha que ser feito.
Nos meses que se seguiram à tragédia em sua vida, Jack recusava a acreditar que o IML não tivesse um laudo sobre o motivo da morte de seus familiares. E pior, se recusava a acreditar que, em toda a cidade, mortes semelhantes ocorreram. Vários corpos sangrados com furos nos pulsos ou pescoço foram encontrados. O país, a cidade, a mídia, tudo estava uma loucura. Os casos, inclusive o dele, foram parar nas mãos do FBI. Com o tempo, o homem fora obrigado a aceitar o fato de que um vampiro de verdade estava atacando São Francisco.
O professor ficou louco. Parecia que seus pesadelos de infância estavam voltando. Via-se como um garoto de oito anos quando corria para o quarto da mãe, chorando, dizendo que havia alguma coisa em seu armário. Bem, talvez realmente houvesse, pensou Jack.
Ele começou a pesquisar mais sobre os vampiros. Leu de tudo desde lendas como Drácula de Bram Stoker, a fatos históricos e documentários que pareciam provar a existência de vampiros no passado. Sua casa ficou abarrotada de livros velhos comprados em sebo ou pegos nas bibliotecas da cidade, além de jornais, todos espalhados pelos móveis e até no chão. Se Cat visse aquela bagunça, teria um surto psicótico. De vez em quando, ele também usava a internet. Não gostava muito, pois a rede é cheia de mentiras e baboseiras, mas às vezes, via que era necessário.
Jack estudou por meses, descobrindo que alhos, crucifixos e água benta não iriam salvá-lo. Vampiros não são demônios. Ele precisava cortar a cabeça do sanguessuga fora e para isso, precisava de alguma arma potente. Quando achou que estava preparado para enfrentar a criatura, comprou um arsenal de facas, grandes e pequenas. Nem sabia por que tantas e nem se conseguiria usá-las, mas era melhor prevenir-se. Depois, foi até um amigo que era um politico importante e disse a ele que queria algumas armas e que estava disposto a pagar qualquer preço por elas.
-Você está louco, Jack? – perguntou confuso o deputado Ryan – vai fazer alguma besteira, eu sei. Não posso conseguir armas para você. Não posso fazer isso. Estarei colocando minha carreira em risco.
Ryan observou seu amigo, calado e fitando-o do outro lado da mesa de seu gabinete. Jack estava muito estranho desde que perdera Cat e os meninos. Não fora mais trabalhar e sinceramente, Ryan não sabia como ele estava vivendo. Andava descabelado, com jeans rasgados nos joelhos, tênis All Star e uma camisa preta surrada. O deputado sabia que seu amigo estava obcecado com alguma teoria maluca sobre vampiros. Botou na cabeça que uma criatura dessas matara sua família e que iria se vingar. Jack estava louco, Ryan sabia. E mesmo que tudo isso fosse verdade, como aquele homem franzino, iria enfrentar uma criatura com a força de cem homens? Não, o deputado não poderia fazer aquilo. Seu amigo iria se matar e Ryan teria seu nome manchado. Nunca mais seria eleito para nenhum cargo, mesmo que tudo fosse feito às escuras. Ele sabia que na política não havia algo que não fosse descoberto, ainda mais nos Estados Unidos. O deputado pegou um cigarro no bolso da camisa e tremendo, o acendeu com um isqueiro Bic.
- Jack, não posso...
-Sim você pode, Ryan – interrompeu Jack alto o suficiente para assustar o amigo.
Ryan viu seus olhos injetados e percebeu que o homem não mudaria de ideia. Ele estava decidido.
- Escute – continuou Jack curvando-se sobre a mesa e fitando Ryan secamente - minha mulher e meus filhos estão mortos. Várias pessoas nessa cidade estão mortas, Ryan. Amanhã poderá ser você ou eu se ninguém deter essa coisa sugadora de sangue. E eu vou detê-la. E para isso, preciso de sua ajuda. Preciso de um fuzil AR15 para estourar a cabeça desse demônio. E preciso de munição, além de pistolas extras. 380 se não for pedir muito.
Pedir muito? Ryan gargalhou de puro nervoso com essa última frase do amigo. Ao perceber que Jack permanecia serio e fitando-o, se conteve, suspirou e soltou um jato de fumaça pelo nariz. Bateu as cinzas do cigarro no cinzeiro de metal sobre a mesa e fitou o professor que estava de braços cruzados e de posição firme.
- Está bem, Jack – cedeu ele – se é isso que você quer. Vou entrar em contato com algumas pessoas. Te ligo assim que obter tudo.
O professor sorriu vitorioso e o deputado viu naquele sorriso, muito mais do que gratidão. Era um sorriso maníaco, de quem está pronto para matar qualquer coisa que tentasse cruzar e impedir seu caminho. Era o sorriso de um assassino com sede de vingança. Ryan pensou que nunca mais veria esse sorriso no rosto de Jack. E estava certo. Ah ele estava muito certo.
As armas chegaram algumas semanas depois. Ryan deu alguns telefonemas para pessoas perigosas, correu riscos, mas mesmo assim ajudou o amigo. Nunca sentira medo de Jack. Mas depois do olhar e do sorriso maníaco do homem, o político realmente ficou preocupado. E se o professor tentasse algo contra ele por não ter ajudado? Não, Ryan não correria esse risco. Seu filho e sua mulher precisavam dele. Se ele morresse, o que aconteceria com sua família? Não, isso não poderia acontecer. Por isso, naquela manhã, o deputado estava telefonando para Jack, para avisá-lo da chegada das armas. Os traficantes cobraram caro e Ryan teve que pagar porque o dinheiro que seu amigo deixara, não pagaria nem um pente de munição. E ele não cobraria isso de Jack. Não, de jeito nenhum. Estava realmente com medo do homem.
Em casa, o professor atendeu ao telefone e ficou feliz em ouvir a voz de Ryan. Ele realmente chegou a pensar que o deputado iria deixá-lo na mão.
- Já tenho o que você pediu, Jack – informou Ryan com um tom de voz que denunciava o medo de que seus colegas o ouvissem e tentassem descobrir do que se tratava aquele telefonema – venha ao meu gabinete buscar. E venha rápido. Não sei o que pode acontecer se alguém encontra essas coisas aqui.
O professor sorriu triunfante.
- Vou imediatamente, meu amigo.
Em alguns minutos, o vingativo Jack, saía do gabinete de Ryan, carregando uma bolsa de couro nas mãos, recheada com um fuzil AR15, duas pistolas 380 e munições.
-Obrigado, Ryan – ele dissera ao amigo – estou te devendo uma.
Ryan acendeu um cigarro, tremendo. Ele queria largar esse terrível hábito, mas sempre que ficava nervoso, era o cigarro que aliviava sua mente. E agora ele estava nervoso. Terrivelmente nervoso. Olhou para Jack e depois de soltar um jato de fumaça, deu uma gargalhada, como se o amigo tivesse dito a maior piada do mundo. Jack franziu o cenho sem entender. Ele que perdera a esposa e os filhos para um vampiro, e Ryan é que estava louco.
- Vai continuar devendo – disse Ryan depois de se acalmar um pouco – nunca terá como me pagar se for mesmo enfrentar esse vampiro.
Dessa vez foi Jack que gargalhou.
- Se eu morrer, um dia nos encontramos do outro lado, e aí você me cobra, que tal? - Ironizou
Ryan sacudiu a cabeça dando uma tragada no cigarro. Dessa vez fitou seriamente o homem à sua frente.
- Não brinque com a morte desse jeito, meu amigo. Não brinque.
- Não estou brincando, Ryan. Estou me vingando dela.
Daniel chegou em sua mansão alguns minutos depois de se alimentar. O vampiro achava aquela casa muito grande para ele sozinho, mas era a única que possuía um piso inferior abaixo do nível do porão que ele encontrara na cidade e gostou dele para usar como esconderijo do sol durante o dia. Um dia ele pretendia encher o lugar de vampiros e não mais se sentiria tão solitário.
O vampiro sabia que Jack estava chegando, sedento para matá-lo, sem saber que não tinha nenhuma chance de vitória. Ou talvez, ele até sabia. Daniel achava mesmo que Jack sabia onde estava se metendo, mas iria em frente mesmo assim, mesmo com todo o perigo pela frente. O que ele queria era vingar sua família e Daniel sabia que o humano faria qualquer coisa para isso. Até morreria, para depois ir para junto de seus entes queridos do outro lado. O vampiro gargalhou.
De qualquer forma, admirava essa qualidade nos humanos. Faziam de tudo por seus amados familiares. Enfrentavam de frente a morte por eles. Daniel não sabia na verdade, se isso é uma qualidade ou defeito, inteligência ou tolice. Ele mesmo tentara salvar sua mãe do vampiro idoso, e agora, veja onde estava.
E é claro, isso seria bom para Daniel. Finalmente sua vida teria alguma ação e ele estava louco para dar uma lição no humano atrevido. O vampiro sorriu maliciosamente, tirou seu casaco e o jogou sobre uma cadeira. Sentou-se num dos sofás de couro de sua sala escura e esperou Jack chegar. Tinha planos para aquele corajoso rapaz. Matá-lo seria fácil demais. Ah sim, seria. Daniel queria dar uma lição no professor. Uma bela lição.
Jack descobriu onde o vampiro vivia, com uma série de pistas. Estudou durante meses as mortes misteriosas da cidade. Seguiu o rastro do demônio pelo inferno como um caçador segue sua presa. Muitas vezes o encontrou em alguns becos, mas o imortal sempre fugia. Além disso, entrevistou pessoas que testemunharam a morte de alguns humanos, passou a ler o jornal todos os dias e sempre recortava as notícias que destacavam essas mortes e as colava num caderno. O homem procurou pistas com a polícia, os bombeiros, o IML, fez tudo que podia. Estava se sentindo num filme, num seriado. Era tudo muito estranho para ele.
Em um certo dia em especial, uma senhora idosa foi morta perto de sua casa. O marido dela, um senhor de 60 anos, chamado Ben, viu tudo, pois se escondeu, e jurou ter visto o assassino de sua esposa, com uma faca na mão, cortando o pescoço dela. Enlouquecido, ele perseguiu o desgraçado que fizera aquilo sem que ele percebesse. Sabia que era um homem louco. Homens loucos é que saem matando as pessoas a troco de nada. O velho senhor, não acreditava em toda essa história de vampiros circulando pela mídia e muito menos podia acreditar que as pessoas estavam tão enlouquecidas com toda essa história. Como podiam acreditar em tudo isso? Para ele, aquele cara que matara sua esposa, era um louco que precisava de uma camisa de força. Ben cuidaria disso, já que a polícia não cuidava.
Como Jack estava fazendo agora, Ben fizera antes, procurando pistas do maluco e por fim, descobriu onde ele vivia. Ainda desorientado pela morte da esposa, o senhor aposentado, armou-se de uma faca e se dirigiu para a mega mansão do outro lado da ponte na cidade de Sausalito. Mas mal chegou e saiu do carro, viu o homem louco no portão da casa. Viu um rosto pálido, olhos vermelhos e dentes pontiagudos. Em nome de Deus, o que era aquilo? Ben sentiu sua calça ficar molhada na região da virilha. Super amedrontado, deixou a faca cair e voltou correndo para seu carro, pisando fundo no acelerador. Estava pálido feito um fantasma. Nunca mais voltou nem sequer para aquela cidade.
- Nunca senti tanto medo – disse ele a Jack quando este fora visitá-lo – era o demônio, Jack, estou lhe dizendo.
Serviu a Jack um chá e pegou uma xícara para si que balançava o tempo todo graças aos tremores que adquiriu depois do encontro com a criatura maligna. Derramando gotas do líquido pelo pires e pelo chão, Ben estava quase desistindo de tomar seu chá, pois mal conseguia levar a xícara até a boca. Jack observou o vizinho e reparou que desde o ocorrido com sua esposa, ele parecia ter envelhecido 20 anos e adoecido bastante. Os tremores e a palidez eram apenas alguns dos sintomas que externavam pelo seu corpo.
- Eu acredito, Ben – respondeu ele tomando um gole do chá – vi o que ele fez com minha família. Só o demônio poderia ter feito aquilo. Mas eu vou matá-lo.
Ben fitou o vizinho com as sobrancelhas arqueadas, segurando a xícara a meio caminho da boca.
- Não pode matá-lo. Jack! – Exclamou assustado – como você vai matar um demônio? Tenho certeza que ele pode te quebrar ao meio só com o olhar.
O professor fitou o homem com um riso que expunha sua alto confiança exagerada.
- Isso é o que vamos ver, Ben – emendou colocando a xícara de chá de volta à bandeja – é o que vamos ver.
No dia seguinte à essa conversa com o vizinho, Jack já se sentia preparado para caçar o vampiro. Tirou as armas da sacola de couro, municiou-as e as colocou sobre o banco do carro, junto com as facas, partindo para a mansão onde vivia o imortal. Ben lhe explicara onde era e Jack achou que conseguiria encontrá-la facilmente. Realmente encontrou. Agora, ele acabava de virar uma esquina de um bairro nobre e se deparar com a mansão descrita por seu vizinho. Era linda, isso Jack tinha que admitir. O sanguessuga tinha bom gosto. A arquitetura era gótica. Possuía duas torres e janelas grandes com vidros escuros no melhor estilo romântico. Havia um portão enorme de ferro rústico que curiosamente estava escancarado. Jack sentiu um frio subir por sua espinha. Será que estava caindo numa armadilha? O professor ficou longo tempo parado na frente da casa, olhando para aquele portão aberto, aflito. Era a primeira vez que sentia medo desde que começara a planejar sua vingança.
Jack balançou a cabeça numa careta de repugnância por estar com esses sentimentos tolos, fez um muxoxo e resmungando, estacionou o carro, fechou a janela do veículo e desligou o aparelho de som.
- Bobagem – murmurou – a única coisa que vai acontecer é que vou matar aquela coisa.
Claro, ele não podia recuar agora e por isso tinha que jogar fora seu medo. Chegara até ali e não iria desistir tão facilmente. Respirando fundo e lembrando-se de sua família morta para lhe dar coragem de continuar, enfiou as pistolas em coldres improvisados nas pernas, colocou duas facas presas em tiras de panos nas canelas embaixo da barra da calça, pegou o fuzil e saiu do carro, adentrando a casa sem pestanejar, sem fraquejar, sem hesitar nenhum passo. Era agora ou nunca. Soltou a trava de segurança do AR15 e começou a mirar para todos os lados, estranhando o peso do armamento em seu ombro.
Apesar da beleza da casa, o lugar era sinistro. Tudo estava escuro ao redor, não havia uma lâmpada sequer acesa nem no jardim cheio de árvores de tronco grosso, nem dentro da casa. O pouco que Jack conseguia enxergar, vinha dos postes de energia na rua, que lançavam sua fraca luz para o jardim. Foi nesse momento que ocorrera a ele o quanto tinha sido imprudente. Deveria ter ido ali durante o dia, surpreendido o vampiro em seu caixão e dado uma de Van Helsing, arrancando fora sua cabeça. Mas claro, no êxtase de finalmente ter descoberto a residência do vampiro, ele sequer cogitara essa hipótese. Perdera tempo demais planejando sua viagem para lá e conversando com Ben, naquele dia. Mas não era hora de chorar o leite derramado. Ele estava ali, era isso o que importava. No fundo ele sabia que queria mesmo era ter um confronto com aquela coisa. Seu corpo e sua alma ansiavam por isso. Seria a melhor forma de se vingar: causando dor ao vampiro.
À medida que Jack se aproximava da casa, sentia seu coração praticamente querendo sair do peito. O estômago embrulhou e o suor escorreu por seu rosto. Tremia de medo. Sinceramente não sabia se conseguiria atirar com suas mãos tremendo e suando tanto. Onde estava sua coragem agora? Não sabia responder. Não mesmo. Principalmente depois que um forte estalo quase o enfartou. Seu coração quase explodiu. Ele olhou para trás encolhido pelo susto e viu que o barulho veio do grande portão da mansão que acabara de ser fechado. Jack engoliu a seco. Não tinha sido o vento, até porque não havia nem uma leve brisa naquela noite.
- Deus me ajude – murmurou passando a mão na testa para enxugar o suor.
Sentiu que estava sendo observado. Ah sim, claro que o vampiro sabia que ele estaria ali desde o início. Porque foi que ele não pensou nisso antes?
- Porque sou um idiota – disse consternado. Depois, muito depois, o professor saberia o valor de nunca agir pela emoção.
O homem suado e de pernas bambas, caminhou até a porta, mirando com o fuzil o tempo todo. O mínimo ruído o exasperava. Encostou-se na parede ao lado da porta e girou a maçaneta, que se abriu facilmente com um rangido. Oh, Deus! Isso não é bom, não é? Jack sabia que não era bom. Como era mesmo que os mocinhos se enrolavam nos filmes de terror?
Respirando rápido e suando muito, ele entrou na casa. Não havia ninguém ali. Ou pelo menos ele achava que não havia, porque não enxergava nada. Estava tudo escuro, não havia sequer um abajur ligado. Jack suspirou. Onde ele estava se metendo? Piscou várias vezes tentando adaptar sua visão na escuridão, até que pôde ver o contorno dos móveis. Se postou no meio deles e esbarrou em algo estofado, o que ao toque de sua mão, se revelou um sofá. Olhou para os lados e conseguiu ver os contornos de uma escadaria dupla que adornava a sala. Avançou lentamente, suando, quase vomitando ante a tanta náusea que sentia. Parecia que seu estômago tinha dado um nó. O medo o dominou por completo. Sentiu-se novamente observado e enfim, ouviu uma gargalhada sinistra vinda do alto. Ele apontou imediatamente o fuzil para cima se guiando pelo som. Subitamente a risada parou e Jack não soube se atirava ou não. Ficou lá com o fuzil apontado para o nada, para o breu. Ele arfava, tremia, suas pernas pareciam feitas de borracha e as entranhas se dissolviam em água. Sentiu que acabaria como Ben, urinando nas calças e fugindo desesperado.
Então, de repente, uma voz grave e poderosa encheu a casa e os ouvidos de Jack, fazendo-o girar o corpo e o AR15 para todos os lados.
- Olha só o que temos aqui. Um belo e jovem professor. Que bom que veio me ver, Jack – soou a voz e o professor pensou que nunca ouvira um tom tão irônico – a muito tempo não recebo visitas. Você não sabe como é ruim viver solitário por tantos anos.
Jack sentiu que ia enfartar. A coisa sabia seu nome, sabia sua profissão. Como aquela criatura poderia saber isso, como?
- Eu sei de muita coisa, Jack – disse o vampiro de repente, dando-lhe um susto. Agora ele estava lendo sua mente. Que beleza, hein professor? – Estou admirado com sua coragem, rapaz – continuou Daniel. Vir até aqui, nessa casa sinistra e medonha, para me enfrentar, para vingar o sangue de sua família. Isso realmente, me causa muita admiração por você.
Jack não conseguia falar. Um nó se formou em sua garganta e parecia que suas cordas vocais tinham se fechado. Respirou fundo para tentar acalmar o coração disparado, o que não surtiu muito efeito. Onde ele havia se metido? Queria desesperadamente sair daquele recinto de loucos mas ao mesmo tempo, não podia deixar sua missão sagrada de lado. Lentamente sua coragem foi voltando e ele soltou um grito:
- Vou acabar com você, assassino!
Daniel deu uma gargalhada alta, que preencheu tudo ao redor. Era assustador. Era como se ele fosse uma espécie de deus.
- Acabar comigo? Como? Com essas armas? – zombou ainda rindo alto – Escute uma coisa, rapaz: você nunca vai conseguir atirar em mim. Sou muito mais veloz que suas balas. No segundo em que apertar o gatilho, eu já sai de sua mira. Além disso, acho que você se esqueceu que humanos não enxergam no escuro como nós, então, você não tem como atirar em mim de forma alguma. E o que pretende fazer com essas facas? Posso desmembrar você antes que as tire de debaixo da roupa.
Claro que Daniel tinha razão e Jack sabia disso. Era um estúpido, porque não havia pensado nisso antes? Onde estava com a cabeça? Ryan tinha razão. O viúvo não tinha a menor chance contra aquela criatura. Iria morrer ali nas mãos daquela coisa.
- Não, Jack. Não pretendo matar você – falou o vampiro assustando nosso amigo novamente – tenho uma proposta para lhe fazer.
Jack abaixou o fuzil que já pesava em seu braço e engoliu em seco, tentando de todas as formas enxergar o vampiro em algum lugar naquela escuridão. De repente seu desejo de vingança se esvaiu juntamente com sua coragem. A curiosidade falou mais alto.
- Proposta? – Gaguejou no que restava de sua voz
Daniel sorriu diabolicamente. Estava sentado no corrimão da escada, bem acima de Jack, as pernas balançando no ar. O vampiro gostava quando os humanos se interessavam por suas propostas. Dependendo da resposta, o destino deles estava traçado da forma que o vampiro achava que mereciam. E claro, a reposta de Jack, Daniel sabia que seria a melhor.
- Sim, professor. Uma proposta – continuou – como eu disse, me admirei por sua coragem, sua determinação. Nós vampiros gostamos de humanos assim, que enfrentam tudo de peito aberto. A proposta é a seguinte: você sabe que não pode me destruir, então não posso deixar que saia vivo da minha casa e volte aqui durante o dia com metade da população da Bahia de São Francisco para cortar meu pescoço e transformar meu lar em uma atração turística. Claro que não. Não sou tolo de fazer isso. Então, existem duas opções: ou você morre, ou se transforma em um vampiro, o que dá no mesmo de certo ponto de vista. Estou disposto a transformá-lo, te dar imortalidade e poderes que você nem imagina que existem. E então, o que me diz meu caro amigo?
Jack ficou aturdido. Esfregou as mãos no rosto para limpar o suor que insistia em cair pelo seu puro nervosismo. Começou a cogitar a hipótese de ser um imortal. Parecia que estava sendo persuadido pelo vampiro a aceitar tal proposta. O rapaz sacudiu a cabeça, passou a mão pelos cabelos e considerou o que estava pensando. Ele estava ficando louco. Definitivamente estava. Ser vampiro? Nunca, isso jamais. Jamais seria como aquela coisa assassina e diabólica.
O sorriso malicioso persistia no rosto de Daniel. Ele queria justamente isso do humano. Sua negação. Ela seria seu castigo. Se ele aceitasse ser transformado, não teria a mesma graça, não é?
- Não! – Explodiu Jack de repente, novamente levantando o fuzil e o mirando para o alto, ignorando o cansaço e a dor dos braços – eu me nego. Prefiro a morte.
Então ele começou a atirar por todos os lados. As balas poderosas do fuzil perfuraram as paredes da casa, ricochetearam pelo corrimão da escada, acertaram até mesmo o teto. Mas o homem não conseguiu acertar o vampiro. Se deu conta disso quando a criatura que aparentemente eram apenas olhos vermelhos brilhantes naquela escuridão, pulou na sua frente e o agarrou pelo pescoço, sem dar tempo de que pudesse se defender. Jack gritou e tentou levantar o fuzil, mas como um raio, o vampiro lhe apertou o pulso com a outra mão e o humano gritou de dor, deixando a arma cair no chão. A mão se fechou mais em sua garganta impedindo a voz e o ar de saírem. Soube que morreria naquele momento e pensou em Cat e nos garotos. Talvez morrer não fosse tão ruim assim. O que dizem mesmo sobre se encontrar com seus entes queridos em outro lugar depois da morte? Ah sim, Jack se lembrava das aulas de Catecismo que teve quando era criança, quando sua mãe o obrigava a ir e ele odiava aquilo. Nunca foi muito religioso, mas agora, era à religião que ele se apegava.
Daniel cravou as presas afiadas no pescoço do humano e bebeu do fluido precioso que mantinha os dois vivos, de alguma forma. O professor ainda tentou lutar quando a dor daquela mordida chegou de uma vez. Tentou soltar o braço preso pela mão forte do vampiro, e pegar a faca na perna, ou uma das pistolas no coldre em sua perna, mas seu esforço foi inútil. Sua visão começou a ficar turva. Ele sentia seu sangue sendo sugado até que tudo escureceu e ele caiu no chão, inerte. Estava morto.
Ele acordou com a cabeça latejando e uma fome devastadora. Parecia haver um buraco no lugar do estômago. Devia ter passado a noite bebendo de novo, sim claro, por isso sua cabeça doía tanto. A bebida, no entanto, lhe dera uma boa noite de sono. Ele até sonhara. Um sonho bem esquisito, diga-se de passagem. Um vampiro louro o havia mordido, foi isso que sonhara. E depois, ainda mordera o próprio pulso e deixara seu sangue escorrer para dentro da boca daquele homem. O homem que era ele. Era Jack. O mais estranho de tudo, era que o professor havia gostado de tomar aquilo depois de um tempo. Parece que o sangue do vampiro lhe dera forças. Muito estranho. E pareceu muito real. Mas claro, foi só um sonho, nada além disso. E Jack se sentiu aliviado.
Ele sentiu que o gosto da bebida com que enchera a cara, não era dos melhores. Tinha um gosto de ferrugem horrível. Quando foi que ele perdeu o paladar assim, até mesmo para a bebida? Ah claro, quando sua família morreu. Fechou os olhos ignorando a tristeza que estava vindo e se levantou para tomar um copo d’água para aliviar a ressaca. Foi aí que viu que não estava em sua cama. Aliás, não estava em cama nenhuma. O que era aquilo no chão? Terra? Ah, Deus, não! Devia ter bebido demais no bar e o dono do local o jogou para fora.
Jack sentiu uma fisgada de dor no corpo quando ficou de pé e mordeu os lábios sem querer. Seu lábio inferior sangrou e ele pareceu não notar. Sentiu apenas uma picadinha, mas aquilo não era nada. Ele a ignorou. O debilitado homem olhou em volta e viu que não estava na rua, na porta de um bar. Estava em um local fechado e bem pequeno, sem nenhuma porta a não ser um tipo de alçapão no teto baixo.
- O que é isso? – Indagou confuso – onde estou?
Ele puxou uma correntinha que pendia na portinha do teto e ela se abriu um pouco. O suficiente para ele passar. Jack segurou-se na borda e ergueu o corpo para sair. Surpreendeu-se com a facilidade com que fizera aquilo. Seu corpo parecia não ter peso nenhum. Ele se viu em um tipo de porão praticamente vazio. Viu a escada que levava para cima e resolveu subi-la. Não ia mentir, estava com medo. Com muito medo. Não conhecia aquele lugar e a memória o estava traindo. Não se lembrava de nada do que aconteceu a ele no dia anterior.
No topo da escada, ele abriu a porta com cuidado e saiu em um longo corredor. Ah, ele odiava corredores, ainda mais num lugar desconhecido. No fim dele, Jack encontrou-se numa sala ampla, com uma bela escadaria dupla, janelas com cortinas vermelhas que estavam cerradas, e lindos móveis, entre eles sofás de couro, uma mesa de centro em madeira finamente trabalhada, e num canto encostada na parede, uma prateleira recheada de livros. Ele ficou encantado. Sempre adorou ler, e aquilo parecia um paraíso, se não fosse a situação tão grotesca na qual se encontrava. Ignorou os livros por hora. Tinha que descobrir onde estava.
- Olá! – chamou o homem deixando a voz ecoar no teto da casa. Assustou-se com sua potência. Desde quando ele tinha uma voz tão grave?
Como era de se esperar, ninguém respondeu. Tudo era silêncio, a não ser talvez pelo barulho das asas de alguns insetos e da corrente de ar. Jack andou pela sala e viu buracos na parede, alguns deles, estando perto da porta, levando para o lado de fora, não deixavam nenhum facho de luz entrar. Jack achou aquilo muito estranho. Que horas eram? Era para ser de manhã, não? Ele se aproximou da porta e tentou abri-la, mas estava trancada. O pânico tomou conta de seu ser. Estava preso em um lugar desconhecido. Desorientado, voltou-se para o centro da sala e desabou no sofá. Deste modo, após encostar a cabeça para trás no encosto do sofá, olhou para cima e não viu nenhuma lâmpada ou lustre ali. Franziu novamente o cenho.
Que diabo de lugar estranho é esse? pensou
Neste momento, seu celular tocou no bolso de sua calça. Jack levou um susto. Nem se lembrava mais de ter um celular. Pegou o aparelho e viu o nome de Ryan no visor. Sorriu e quando ia atender, acabou notando as horas antes. Eram nove e quinze da noite. Ele ficou muito tempo olhando para as horas e o telefone parou de tocar. O homem ficou aturdido. Largou o celular na mesa de centro da sala e se levantou.
- Nove e quinze? – murmurou. Coçou os cabelos sujos de terra e olhou à sua volta, nervoso, confuso. O que estava acontecendo? Achou que ficaria louco até que andando pela sala, acabou tropeçando em algo no chão. Já ia xingar quando percebeu o que era. Era um fuzil AR15. De testa franzida, pegou a arma nas mãos e subitamente, sua mente clareou. Seus olhos se arregalaram. Lembrou-se do vampiro e soube imediatamente que o que aconteceu não foi sonho coisa nenhuma. Tudo se encaixou naquele momento. O gosto de ferrugem na boca, a picada no lábio inferior, a leveza de seu corpo. A sala sem lâmpada ou lustre que antes permanecia na escuridão e o impedia de enxergar qualquer coisa. Agora via tudo com a maior clareza, como se fosse dia. Jack se deu conta de tudo. Ele não matara o vampiro. Ele bebera o sangue do vampiro. Claro, como fora tão relapso de não perceber isso antes? Como não percebeu que estava ouvindo até a corrente de ar passar por ele, e o bater das asas dos insetos?
Desesperado e ainda sem acreditar direito, o novo vampiro levou a mão à boca e sentiu seus caninos salientes. Não! Não podia ser verdade! Estava sonhando, tinha que acordar! Jack procurou um espelho. Numa sala daquele tamanho, tinha que ter um em algum lugar. Acabou encontrando um pendurado na parede abaixo da escada, numa moldura redonda totalmente trabalhada. Ele caminhou trôpego até o objeto e ao se apoiar na parede, gritou quando viu seu reflexo. Olhos rubros, dentes afiados e veias azuis, agora faziam parte de seu rosto. Arfando, Jack começou a chorar e viu desesperado que suas lágrimas estavam vermelhas. Esfregou as mãos no rosto, lambuzou-o com as lágrimas rubras e tentou limpar na camisa, e assim foi que sentiu seu coração, parado. Ah sim, claro que seu coração estaria parado. Ele era um vampiro agora, não era? E vampiros não tem o coração batendo porque não precisam da circulação do sangue no corpo. Seu sangue está morto. Seu corpo está morto.
- Não! – ele gritou desesperado – não! Não, eu disse que não queria seu desgraçado! Não!
O celular tocou novamente. Jack olhou para a mesa, e quando pensou em ir até o aparelho e atendê-lo, Daniel apareceu do nada na sua frente. Com o susto, Jack gritou. Daniel gargalhou, vendo sua criatura se descabelar de desespero. Era isso mesmo o que ele queria.
- Olá, Jack! – disse num tom zombeteiro – porque está tão desesperado? Você não disse que preferia a morte? Pois bem, você está morto. Bem vindo à vida noturna, Jack. Bem vindo à morte.
Então Jack gritou mais ainda sentindo que suas cordas vocais se arrebentariam. A casa ficou cheia do grito de dor e desespero de Jack, da gargalhada vitoriosa de Daniel e do som do celular tocando sobre a mesa da sala.
Atualizado em: Qua 5 Dez 2018