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Pés descalços.

Eduardo de Medeiros era um advogado experiente. Trabalhava com o direito há mais de quarenta anos. No auge de seus sessenta anos, gozava de uma reputação conhecida muito além dos montes de Caxias do Sul. Foi recebido pelo governador, anos destes, em uma homenagem aos advogados da serra gaúcha. Tinha um nome de respeito e era admirado não apenas pelos seus colegas de profissão mas por todos os magistrados com quem diuturnamente, trabalhava e trabalhara.

Dia desses, chegando ao prédio da justiça do trabalho o experiente advogado presenciou, o que aliás, já havia feito mais de um milhar de vezes, colegas e partes instruindo testemunhas. Aquilo o incomodava. Não fazia parte da sua forma de atuar instruir e/ou constranger testemunhas. Muitas vezes inclusive o preposto confessara situações de equiparação salarial e desvio de função. Sua forma de laborar era diversa da pode-se dizer “corrente” hoje.

Pois bem Eduardo resolveu ousar. Escondeu-se entre o meio e o fim da escada e filmou a conversa. O preposto da empresa disse à testemunha:

- O juiz vai te perguntar se as horas extras estão registradas no cartão ponto. E tu vais responder que sim, estão.

- Mas seu Andrade elas não estão. Nós não registramos horas extras.

- É mas tu vais dizer que estão e pronto. Estes juízes não prendem ninguém.

Eduardo chegou a dar uma "espiadinha". O advogado que acompanhava o sr. Andrade era um conhecido seu. Decepção!

Não satisfeito, já que havia se dirigido ao prédio da justiça do trabalho para fazer carga de um dos poucos processos físicos que ainda tramitavam lá, Eduardo resolveu “investigar mais”.

Colocou-se próximo a um trabalhador e “sua testemunha” e ouviu:

- Tu diz pro juiz que eu entrava no galpão de gasolina.

- Mas Marcão o galpão era cadeado.

- Cara não interessa. O juiz não vai ir lá olhar. Tu dizes isso! E mais estes caras não prendem ninguém.

Desta vez estavam apenas os dois.

Eduardo de Medeiros desligou o telefone celular, prosseguiu e terminou de subir as escadas. Fez a carga do processo. Levou-o ao escritório e analisou-o bem. Fez uma petição e o devolveu ainda na tarde deste mesmo dia ensolarado e belo. Que vontade de andar no parque.

Tirou os sapatos e, de terno e descalço, caminhou pelo parque por quase uma hora, fazendo descer toda a energia negativa recebida naquela manha. Os vídeos ainda estavam em seu Iphone5.

Que vou fazer, pensou.

Vou conversar não com o diretor do foro. Vou até o tribunal. Ligou pessoalmente. Marcou hora e, dois dias depois, numa quinta feira chuvosa e cinza, desceu a serra, por São Vendelino, até a capital.

Postou seu Renault Duster no estacionamento do xopin Praia de Belas e seguiu até o tribunal.

Eduardo de Medeiros embora tivesse prestígio nunca foi rico. Para ele basta viver bem. A necessidade de dinheiro escraviza. É bom ser livre dizia ele, frequentemente não aos seus pares, mas a quem ainda poderia entender este discurso, os demais 99% da população.

Anunciou-se ao servidor do saguão.

Dez minutos depois foi feio entrar na sala do presidente.

- Doutor Eduardo, como esta o senhor? A que devo a honra?

- Muito bem doutor e o senhor.

- Bem, muito bem.

- Quantas audiências fizemos juntos, heim... sim... Bons tempos aqueles doutor Eduardo, bons tempos aqueles.

- Ah, me diga, café? Com açúcar ou adoçante?

- Sim, café, com açúcar por favor.

- Mas diga-me a que devo a honra.

- Doutor, sei que o que vou lhe mostrar e pedir foge e muito às competências de vossa excelência. Por isso gostaria que pensássemos juntos sobre este problema crônico, agravado nos últimos anos na justiça do trabalho.

Eduardo mostrou os vídeos. O presidente não mudou sua fisionomia. É só isso doutor, disse ele com um tom de voz límpido e manso.

- Que podemos fazer? Quem sabe uma campanha de conscientização? A instrução de testemunhas é frequente nas escadas e corredores dos prédios da justiça do trabalho.

- Doutor Eduardo estava eu justamente pensando neste flagelo dia desses. Prometo ao senhor que vamos, ainda nesta administração, resolver este problema de uma vez por todas.

Eduardo surpreso percebeu sua própria “cada de espanto”.

- Mas como doutor? Poderia o senhor pelo menos me dar a indicação de como fazer, assim quem sabe posso até ajuda-lo.

- Deixa “pra mim” doutor Eduardo, deixa “pra mim”.

Despediram-se com um forte abraço.

Eduardo saiu do tribunal intrigado. O presidente do TRT vai resolver, sozinho, o problema da instrução das testemunhas, pensou... Quem sabe, disse para si mesmo.

Eduardo, e isso não foi dito ainda, embora tivesse muitos anos de advocacia, ainda acreditava que a magistratura pudesse atuar sozinha e resolver parte dos problemas não apenas administrativos e morais de seu entorno. Sabia que era ingênuo, mas ainda assim, gostava de acreditar que o presidente iria resolver o problema.

Passados alguns meses Eduardo foi fazer carga do mesmo processo. Não frequentara, desde aquele dia das gravações, o prédio da justiça do trabalho. Os processos eletrônicos, o recesso e o recesso da OAB, além de umas pequenas férias destinadas a estudar o movimento sindical francês, o tinham distanciado do prédio da justiça do trabalho.

Notou, ainda que fora do prédio, obras. Estão ampliando o prédio, a final da sexta vara do trabalho precisa mesmo de mais espaço.

Quando adentrou ao portão percebeu que havia apenas rampas de acesso. Seria para deficientes, pensou. No saguão havia um enorme buraco, ao lado da quinta vara, onde antes eram dos banheiros públicos. Ali havia uma placa: cuidado elevador sendo instalado. Virou-se e não vou mais a escadaria. Fila no elevador. Mas o que é isso, pensou...

Pegou o elevador e subiu. Fez carga do processo, voltou ao escritório e, lá, curioso, foi para a internet.

Na capa do sítio do TRT havia a seguinte chamada: “presidência e corregedoria começam a resolver o problema da instrução das testemunhas na justiça do trabalho. Todas as matérias, agora, serão de direito”.

Eduardo desligou o computador, substabeleceu o processo e alugou uma casinha de quarto e sala, naquele mesmo dia, entre Aveiro e a Cidade do Porto.

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Atualizado em: Sáb 12 Mar 2016

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