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A Melodia Perdida

A primeira coisa que as pessoas notavam em Eva não era o rosto – bonito, mas comum –, nem sua presença, que não exigia nada de ninguém. Era a voz. Uma voz que podia transformar ruídos em silêncio e silêncios em preces. Cresceu ouvindo sua mãe cantarolar baixinho enquanto lavava a louça, mas foi nos bares de beira de estrada que Eva encontrou seu primeiro palco.
Lá, entre bêbados que mal prestavam atenção e músicos frustrados que se revezavam no microfone, ela aprendeu a engolir a insegurança e despejar sua alma em cada nota. Postava vídeos caseiros de covers na internet, sua voz rouca e cheia de emoção crua, esperando que alguém ouvisse. E alguém ouviu.
Não de imediato. Não sem dor. A indústria musical não era gentil com garotas como ela — sem contatos, sem rostos perfeitamente moldados para capas de revista. Rejeição após rejeição, contratos recusados, portas fechadas. Cada “não” deixava cicatrizes invisíveis. Mas Eva era teimosa. Cantar era a única coisa que a fazia sentir que existia.
Então, veio o vídeo. Um cover simples, gravado na sala apertada do apartamento que dividia com a melhor amiga. Algo naquela performance — talvez a sinceridade, talvez a mágoa evidente na sua voz — ressoou com o mundo. Um milhão de visualizações em uma semana. Dez milhões no mês seguinte. A internet explodiu. Eva era a próxima grande coisa.
A ascensão foi rápida, ofuscante. Contratos, entrevistas, sessões intermináveis no estúdio. Seu primeiro single, Bleeding Sky, atingiu o topo das paradas em uma semana. Em turnês, ela cantava para multidões que gritavam seu nome, mas, ironicamente, nunca se sentiu tão sozinha. A fama, diferente do que imaginara, era um peso. Cada movimento vigiado, cada palavra analisada, cada erro transformado em um espetáculo.
No começo, Eva acreditava que podia controlar a própria narrativa. Pensava que, se fosse cuidadosa, se escolhesse bem suas palavras e se mantivesse impecável diante das câmeras, conseguiria preservar ao menos uma parte de si. Mas logo percebeu que não havia escapatória. Os olhares famintos nunca desviavam, os sussurros nunca cessavam. Sua vida não lhe pertencia mais.
Ela aprendeu a sorrir mesmo quando queria gritar. A posar para fotos mesmo quando seu corpo pedia descanso. A manter a compostura enquanto rumores se espalhavam como incêndios incontroláveis. Era um jogo de resistência, onde o menor deslize poderia custar tudo. E então, veio o golpe.
Um segredo.
Não era um erro juvenil, um vídeo embaraçoso ou uma briga de bastidores. Era algo muito mais profundo. Algo que Eva acreditou ter deixado para trás, trancado em um passado que jamais deveria ser revisitado. Mas agora, esse passado voltava para cobrá-la, ameaçando destruir tudo que ela construiu – e, mais do que isso, tudo que ela tentou esquecer.
Seu nome era Samuel.
Eva o conheceu quando tinha dezesseis anos, ainda uma garota perdida na cidade pequena onde cresceu. Samuel era mais velho, um músico frustrado que via nela um talento bruto, uma voz que poderia levá-lo para longe dali. Foi ele quem a incentivou a cantar nos bares, a postar vídeos online. Mas também foi ele quem a manipulou, a controlou, a fez acreditar que ela devia sua música — e sua vida — a ele.
No começo, Eva achava que era amor. A forma como ele falava sobre o futuro deles, como segurava seu rosto depois de cada show e dizia: Você só brilha porque eu te lapidei. Mas, conforme os meses passaram, o carinho se transformou em possessão. Ele ditava o que ela cantava, como se vestia, com quem falava. E, quando ela tentou se afastar, Samuel mostrou seu outro lado.
O medo começou devagar — primeiro, no olhar que se tornava frio sempre que ela discordava. Depois, nas palavras cortantes, nos apertos de braço, nos dias em que ele desaparecia e voltava cheirando a álcool e arrependimento. Eva aprendeu a andar na ponta dos pés, a medir cada respiração para não irritá-lo. Mas sabia que não poderia viver assim para sempre. Então, ela fugiu. Pegou a guitarra, a mochila e desapareceu antes do amanhecer. Mudou de cidade, bloqueou o número dele, apagou qualquer rastro de sua existência. Por um tempo, viveu com medo de que Samuel a encontrasse, mas conforme os anos passaram, a ameaça se tornou um fantasma distante. Ela seguiu em frente. Criou uma nova vida, um novo nome, uma nova versão de si mesma.
Mas Samuel nunca esqueceu.
Quando o nome de Eva começou a aparecer em todos os lugares, ele viu uma oportunidade. Voltou como um espectro vingativo, trazendo consigo histórias distorcidas, verdades quebradas. Ele alegava que havia escrito as primeiras músicas dela, que havia sido o verdadeiro mentor por trás de seu sucesso — e que ela o abandonara assim que ficou famosa. Pintou-se como a vítima, um homem que investiu tudo em uma jovem ingrata que o descartou. A internet amou a narrativa. Os sites de fofoca se alimentaram dela. Vídeos antigos dos dois surgiram, entrevistas de ex-amigos que confirmavam partes da história (sem saber de toda a verdade). Em poucos dias, Eva deixou de ser a cantora promissora para ser "a estrela egoísta que usou e descartou quem a ajudou a subir".
E o pior? Parte dela acreditava que talvez eles estivessem certos.
Sozinha no quarto de hotel, Eva releu as mensagens de ódio, os artigos que diziam que sua carreira estava acabada, os contratos sendo cancelados. Samuel havia vencido. Ele não precisou tocá-la desta vez para destruí-la.
Mas então, pela primeira vez, Eva se perguntou: E se eu contar a minha versão da história? Ela nunca quis ser vista como vítima. Nunca quis expor sua dor como espetáculo. Mas talvez essa fosse a única forma de retomar sua voz — não apenas a que encantava multidões, mas a que gritava dentro dela, sufocada por anos de silêncio.
A questão era: o mundo ainda estaria disposto a ouvi-la?
Eva ficou encarando a tela do celular por horas, observando as mensagens se multiplicarem como vermes se alimentando do caos. Cada notificação era um golpe. Fãs decepcionados. Antigos conhecidos dando declarações vagas. Jornalistas revirando sua vida como se ela fosse um quebra-cabeça a ser resolvido. Mas o pior era Samuel.
Ele estava saboreando cada segundo.
Postagens cuidadosamente escritas, entrevistas carregadas de ressentimento calculado. “Eu acreditei nela. Eu a amei. Mas quando ela conseguiu o que queria, me deixou para trás.” Era um jogo que ele conhecia bem, uma melodia de manipulação que Eva já ouvira antes. Só que, dessa vez, o público era o coro que cantava junto com ele.
Ela podia fugir. Desaparecer. Apagar tudo e começar de novo. Mas sabia que não haveria um novo recomeço se não enfrentasse isso. Samuel não queria dinheiro. Ele queria controle. Ele queria vê-la se dobrar, se desculpar por algo que nunca fez, viver sob a sombra do que ele dizia ser “a verdade”.
Não dessa vez.
Eva abriu o laptop e começou a escrever. Não um comunicado de assessoria, não uma resposta filtrada por advogados. Apenas sua história, nua e crua. Cada detalhe. Cada medo. O abuso emocional, a manipulação, os anos de silenciamento. E, principalmente, a verdade que ninguém sabia: Samuel nunca escreveu uma única palavra das suas músicas. Ela anexou áudios antigos que guardara sem nem saber o porquê. Mensagens de Samuel deixando claro que queria controle, não parceria. Vídeos de bastidores, mostrando que a criatividade vinha dela, que ele apenas ficava à sombra, tomando crédito pelo que não fez. Com o coração martelando no peito, Eva respirou fundo e apertou “publicar”.
A resposta foi um turbilhão.
As redes explodiram. O público se dividiu entre os que sempre a apoiaram e aqueles que já tinham decidido odiá-la antes mesmo de ouvirem sua versão. Mas uma coisa ficou clara: Samuel não esperava que ela falasse. Ele contava com seu silêncio.
E agora, ele precisava responder.
Dias depois, veio a entrevista ao vivo. Samuel, tentando manter a postura de homem injustiçado, mas agora com a máscara rachada. A âncora do programa não o deixava escapar das perguntas certas. Sobre as mensagens, os áudios, as provas.
— Você quer negar que disse isso, Samuel?
O olhar dele endureceu. A tensão na mandíbula, o tique nervoso dos dedos batendo contra a perna. Eva conhecia bem aqueles sinais.
— Ela me provocava. — Ele sorriu de forma ensaiada, tentando inverter o jogo. — Ela sabia o que fazia comigo.
O público assistia. E, pela primeira vez, muitos viram o que Eva viu anos atrás: um homem que não estava dizendo a verdade, apenas tentando manter o controle.
Mas mesmo assim, alguns ainda duvidavam.
E era isso que corroía Eva.
A verdade não era suficiente. Mesmo exposta, documentada, provada, ainda havia quem escolhesse não acreditar nela. Quem preferisse vê-la como uma vilã conveniente, uma ambiciosa sem coração.
Os meses seguintes foram um teste de resistência. A carreira dela sobreviveu, mas não intacta. Marcas recuaram, convites desapareceram. O escândalo passou, mas as cicatrizes ficaram. E então, veio a música.
Não um pedido de desculpas. Não uma justificativa. Apenas um desabafo cru, um hino para todos que já foram silenciados. A primeira nota rasgou o silêncio como um grito contido por anos. E a voz de Eva, mais forte do que nunca, preencheu o mundo.
Samuel desapareceu das manchetes.
Eva permaneceu.
Eva sentia que estava respirando de novo. Mesmo com cicatrizes invisíveis, mesmo com olhares desconfiados ainda a seguindo, ela finalmente estava reconstruindo sua vida. Sua música nova se tornara um hino de resistência, e embora o brilho do estrelato já não fosse o mesmo, ela não se importava. O importante era que sua voz ainda existia.
Mas Samuel não havia sumido.
Ele perdeu contratos. Perdeu credibilidade. Sua tentativa de destruir Eva falhou, e isso o consumia. Os fãs dela ainda estavam lá. A verdade estava lá. E para alguém como ele, que só sabia existir através do controle, isso era insuportável.
A obsessão virou ódio. O ódio virou um plano.
Numa noite chuvosa, depois de um show pequeno e íntimo — o primeiro em meses — Eva saía pelos fundos do teatro quando sentiu o primeiro arrepio. Algo estava errado. Sua equipe já havia ido embora, e ela estava sozinha, atravessando um beco estreito até o carro. Então, a sombra surgiu.
O ataque foi rápido. Uma mão cobrindo sua boca, um empurrão contra a parede. O brilho da lâmina. O cheiro metálico do sangue antes mesmo da dor chegar.
Ele foi direto na garganta.
Eva ouviu seu próprio grito, mas ele veio fraco, rasgado. O desespero tomou conta quando sentiu o calor viscoso se espalhar pelo pescoço. Samuel segurou seu rosto com uma brutalidade quase carinhosa, os olhos ardendo de fúria.
— Agora você nunca mais vai cantar sobre mim.
Ela não lembra como escapou. O som de passos correndo, alguém gritando por ajuda. A chuva misturada ao sangue. Depois, apenas escuridão.
Eva acordou dias depois no hospital. O quarto branco, as máquinas apitando ao seu redor. A primeira coisa que tentou fazer foi falar. Mas nada saiu.
O olhar do médico foi gentil, mas carregado de peso.
— Os danos às suas cordas vocais foram graves. Talvez com tempo e tratamento...
O resto da frase se perdeu. A palavra “talvez” pairava no ar como uma sentença.
Sua voz.
A única coisa que era verdadeiramente sua, a única coisa que ninguém podia tirar. Agora, desaparecida.
A mídia explodiu com a notícia. Samuel foi preso horas depois do ataque, sua fuga patética encerrada por câmeras de segurança e testemunhas. Mas Eva não queria justiça nos tribunais. Ela queria sua voz de volta.
Mas o mundo não esperava. Em questão de semanas, a comoção passou. Novos escândalos, novos rostos, novas manchetes. Eva se tornou um nome sussurrado no passado, uma lembrança trágica de uma estrela apagada antes da hora.
Então, ela desapareceu.
Sem redes sociais. Sem entrevistas. Sem aparições públicas. Apenas silêncio.
Meses depois, numa cidade pequena à beira-mar, Eva olhava para o horizonte. A brisa carregava o cheiro de sal, e as ondas sussurravam uma canção que ela não podia mais cantar.
Mas dentro dela, algo ainda queimava.
Talvez sua voz nunca voltasse. Talvez o palco nunca mais a recebesse.
Mas sua música ainda existia.
E, de alguma forma, ela encontraria um jeito de fazer o mundo ouvir de novo.
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Atualizado em: Qua 5 Mar 2025

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