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Uma vida, uma história - Capitulo I
Era primavera, exatamente Outubro de 1963. Luiz Henrique com 19 anos prestes há completar 20, começava a sentir o desabrochar da flor ainda em botão, estava cruzando a tênue linha que separava a puberdade da juventude. O signo de Libra estava regendo, sua balança parecia influenciar o jovem e imaturo rapaz á tomar decisões que jamais poderia imaginar o que desencadearia no decorrer da longa estrada e que ainda nem começara á trilhar.
O destino parecia estar ansioso para que aquele calouro, com a alma repleta de sonhos e ilusões como qualquer um em tenra idade, começasse a caminhar com suas próprias pernas. Tinha o coração apertado e a mente confusa; se via muito diferente dos seus e, portanto convivia com pequenos problemas familiares devido a sua forma de pensar.
Nada que desabonasse sua moral como um cidadão honesto, que desde cedo aprendeu a ser; com plena certeza da herança que havia recebido da educação e bons costumes, de seus humildes pais. E sim, por culpa de uma sociedade que até então reprimia a todos que fugissem a regra do igual.
Seus desejos de liberdade e independência eram as engrenagens que movimentavam sua vontade de seguir novos caminhos. A incerteza do futuro não o intimidava, destemido, o que mais o angustiava eram seus próprios desejos e a tortura psicológica, na qual não conseguia imaginar uma solução em que pudesse se libertar sem que magoasse aqueles que tanto o amavam e no quando a própria situação financeira também o impossibilitava.
Não lhe era permitido uma vida, em que ele achava ser normal, como na vida dos que com ele, regulavam a mesma idade. Trabalhava e estudava a semana inteira e quando chegava o final de semana não podia sair com os colegas do trabalho, com seus amigos pessoais e nem mesmo com parentes. A não ser que fosse para a igreja.
Fora entregue a um berço evangélico. Os hormônios afloravam-lhe e sua mente começava a questionar certos dogmas religiosos e as condutas das pessoas de uma religião em que tudo era proibido em que tudo era pecado. Começara a despertar dentro de si o desejo físico.
Numa de suas poucas conquistas, conseguiu a permissão de seus pais para sair, com a seguinte recomendação:
_ Que seu retorno seja no máximo até às 23 horas.
Foi como se jogasse, num inverno tenebroso, um balde de água fria no pobre rapaz.
_ Mas, na hora em que as pessoas costumam chegar para se divertir, eu tenho que estar em casa?
_ Em quanto morares debaixo deste teto, siga as regras desta casa, pois a vida que queres conhecer é puramente uma ilusão.
_ Esta mesma vida em que apenas quero conhecer, o senhor não viveu?
_ Sim vivi, por isso, acho-me no direito de alertá-lo e poupá-lo.
Luiz Henrique decepcionado resolveu sair, já tinha marcado com seus amigos, mesmo sem saber se conseguiria a permissão, de se encontrarem. Sentiu naquela noite como se estivesse descobrindo a América, a alegria de um ser inexperiente como ele, era visível até mesmo a um cego. Aproveitou a sua maneira, o pouco que pode, e a alegria que teve ao chegar se transformou na tristeza de partir. Naquela noite chegou na hora marcada.
Por algumas vezes mais conseguiu o “indulto” para sair e poder desfrutar da companhia de seus semelhantes. Eram momentos de descontração, onde passeavam pelas ruas, comentavam sobre banalidades, riam muito e por vezes sentavam num bar para beber algo e retornavam as suas casas. Pessoas simples são felizes com coisas simples e nada mais. Até que um dia, ou melhor, uma noite, rodeado de amigos, foi visto na cidade vizinha por um parente que comentou em família, sobre seus companheiros. Pronto, estava formada, alimentada e inflamada a confusão em seu lar; como se, não bastasse o que já vivenciava entre os seus familiares.
_ Diga-me com quem tu andas que te direi quem tu és. Os semelhantes se atraem. O destino de todas as pessoas com esta conduta é morrer á facadas.
Estas palavras que foram pronunciadas pelo seu pai marcaram profundamente, e as quais, nunca mais, Luiz Henrique iria esquecer.
Como abelhas atacando um pobre ser, que parecem adorar se agarrar nos cabelos da cabeça de suas vítimas, eram seus familiares á atormentar a cabeça do jovem rapaz. Não, ele não podia, ele não tinha o direito de se relacionar amigavelmente com os diferentes.
Seus amigos, uns envolvidos com desfile de modas, o que era o desejo de muitos jovens da época, normais ou “anormais”, outros comprometidos com o espiritismo, religião que pulsava dentro daquele pequeno coração. A confusão gerada dentro do cérebro entre o querer e não ser considerado correto, a luta para se desvencilhar do Demônio, já que o espiritismo fora imposto como uma religião demoníaca, no âmago do cristão.
Sim, a lavagem cerebral implantada na mente que temia entre a escolha do querer demoníaco ou o imposto Divino. Era mais um dilema á atormentá-lo.
Problemas começavam a tomar uma forma imensa na sua mente. Sua vida fora marcada pelas diferenças, uma religião imposta, a distância da mãe, o pai que não conhecia nem por foto, ou seja, tinha sido adotado. Tudo isso contribuía para uma mente conturbada. Mas, em toda e qualquer circunstância se mantinha um jovem centrado sem que nada o abalasse, mesmo que por dentro se sentisse com um cristal transparente e frágil.
Quase cinco anos haviam se passado, desde que completara 15 anos. Lembrava-se nitidamente que saíra do trabalho desesperado para chegar a sua casa, pois era seu aniversário, e poder ver sua mãe, que até então, pensava que sua vinda seria de surpresa. Porém, a decepção em forma de gotas rolava pela face ao constatar que ela não viera. O melhor presente que poderia ganhar naquele dia, seria estar ao lado de sua mãe. Trancado no banheiro para que não vissem sua tristeza, olhava para o espelho e se perguntava o porquê de tanto sofrimento? E mesmo não querendo que percebessem sua tristeza, seus olhos vermelhos o entregaram.
Um jantar, como era de praxe em ocasiões especiais, lhe fora feito. Por mais que se esforçasse, durante o jantar, algumas lágrimas desobedeciam a seu querer e rolaram sobre seu rosto; fazendo com que seus pais pudessem perceber que não eram suficientes para completar sua felicidade. Talvez, se sentiram frustrados, porém Luiz Henrique sabia o esforço que tinha feito para não demonstrar.
Ao se tornar de “maior idade” acreditava que tudo iria mudar, pois se sentia prisioneiro de si, dos familiares e da sociedade.
Começava sem se dar conta da profundidade do tema, a sentir necessidade de usar uma máscara, escondendo sua essência, que ofendia e incomodava uma sociedade hipócrita e preconceituosa, não só com o diferente, mas sim com o diferente de pequenas posses.
Parecia que tudo a sua volta tramava para lhe dar um empurrão, no que o fizesse dar o primeiro passo na estrada em que só ele poderia percorrer.
Apesar de ter nascido na capital, fora criado em um pequeno distrito do interior, pois não teve nem mesmo a sorte de ser uma cidade. Um bairro chamado de Dois Rios, onde todos se conheciam e o grau de parentesco entre os moradores parecia elos de correntes unidos um ao outro. Elos estes que facilitavam a comunicação entre as pessoas, que levando em consideração a mediocridade do lugar servia como distração. Mais um motivo para que Luiz Henrique se aprisionasse dentro de si. Não queria e nem podia ver sua vida exposta, seria o cume de seu tormento, aumentando ainda mais seu sofrimento. Sofrimento completamente solitário, pois ninguém queria saber de suas diferenças e sim de impor a ele que fosse igual, que fosse o que se chamava de normal.
Cansado das imposições sociais, familiares e religiosas, religião esta em que aos domingos servia de desfile de modas e suas reuniões serviam para se discutir, condenar e crucificar as atitudes de certos membros; já que cruz era o assunto salvador após enaltecerem, primeiro, as forças de Lúcifer, até mais do que as forças de Deus. Sentia e desejava que se aproximasse a hora de dar um basta.
O destino parecia lhe ouvir e colocou no seu caminho um anjo, ou um demônio no ponto de vista do poderio evangélico.
Já á algum tempo o espiritismo falava suavemente ao seu coração. Resolveu criar coragem e foi ter uma consulta espiritual. A indicação veio de um amigo, que admirava a força da entidade daquele médium, servindo de boas referências e assim ele o fez.
Sua forma de incorporação o impressionou, era muito diferente do pouco que já tinha presenciado em algumas ocasiões. A entidade ao incorporar fazia gestos igualmente a uma galinha ciscando na terra, e o tempo inteiro da consulta, ficou ajoelhada. Mas, não foi somente a incorporação que o impressionou, as palavras daquele espírito tocaram fundo no coração angustiado e atormentado de um ser jovem e despreparado. Elas serviram como bálsamo.
Sim o Universo conspirava á favor.
_ Á partir de hoje não sofro mais, nem pelo que sou e muito menos por uma religião que só ajudou á atormentar minha vida. Já me basta o espinho que trago na carne e que nenhum médico encontra a cura.
Estas foram as palavras pronunciadas pra si próprio, Luiz Henrique cansado, havia tomado uma atitude, mesmo que ainda não fosse a solução, começara aí a mudança. A principal mudança, que é a interna.
Os pensamentos começaram a tomar forma em sua mente, como estivesse se desabafando com alguém:
_ Sou grato pelo excesso de zelo de meus pais adotivos, que me criaram com todo amor e carinho e me deram tudo que podiam pra me tornar o homem que sou, como se eu fosse um filho de sangue. Essa gratidão e meu amor próprio faz com que eu busque uma saída sem magoá-los.
_ Lembro-me como foi constrangedor o dia em que Roberto foi a minha casa me pedir o sapato emprestado para desfilar e meu pai o convidou para almoçar conosco, depois que ele foi embora o assunto, as críticas e indagações era sobre como eu poderia ter amizade com um rapaz afeminado.
_ A humilhação no dia em que sai pra me divertir e acabei ficando um pouco mais, já que tudo me fazia feliz ao lado dos meus amigos e cheguei em casa duas da manhã e os móveis da sala tentavam me impedir de entrar, pois estavam todos amontoados atrás da porta, para que eu dormisse do lado de fora. Eu estava louco pra ir ao banheiro e tive que ir direto pro quarto para não acordá-los e segundos depois ouço alguém bater na porta; era meu tutor que não podia perder a oportunidade de me jogar na cara que a casa era dele e que se eu não me enquadrasse á sua autoridade, que eu fosse embora.
_ E o dia em que o professor do coral da igreja, no qual eu fazia parte, foi a minha casa e levou uma caixa de bombom para mim. Ao saber que eu não estava, pediu que me entregasse. Como eu ouvi. Parecia que o erro em dar bombons a outro homem fosse meu, ou talvez, que tivesse eu, dado algum motivo para que ele tivesse tomado àquela atitude?
_ Nunca vi isto, um homem dando bombons para outro homem, se ele viu que você não estava que pelo menos disfarçasse e desse a caixa para mim.
Minha mãe não me poupou de seus comentários malévolos. E como sempre o assunto rendeu por dias.
_ Deus que tormento. Terei e irei dar um basta neste inferno.
_ Será que ninguém se importa comigo, será que ninguém quer saber o que eu sinto, só sabem exigir isso e mais aquilo? Até por atitudes alheias eu sou cobrado.
Sim, Luiz Henrique estava certo, a sociedade, a família em nenhum momento queria saber de seus desejos, seus sonhos e sim cobrá-lo como as contas que chegam a todo mês em nossas caixas de correios e se não as pagarmos seremos punidos e condenados. O que na verdade importa para a igreja e para essa tal sociedade é que sejamos todos iguais, como assim sendo, Deus o fez o homem para a mulher. O amor não importa o que dita às regras do certo é a procriação entre os seres. Como se o mais importante é o macho cobrir a fêmea. Amor? “Deus amou o mundo de tal maneira que deu seu filho unigênito para todo aquele que nele crê, não pereça, mas tenha a vida eterna”.
_ Pelo que percebo só Deus tem o poder de amar, o homem não, o homem tem é que procriar. E somente após se unirem em laços matrimoniais, pois, nem a masturbação é permitida.
_ O homem para se masturbar necessita da imagem de outro ser e a cobiça é pecado.
Assim disse o professor na escola dominical.
_ Em se tratando de uma necessidade biológica, natural entre todos os seres vivos, como devemos proceder? Será que os solteiros devam se castrar ou se casarem desesperadamente com o primeiro ou a primeira que encontrarem?
_ As plantas e os animais, será que têm que se casarem? O sexo para eles, também é pecado? Era só o que faltava, tem algo de errado nisso tudo.
Com estes pequenos relatos amargurados, do início da vida de um jovem, será que brotam em nossas mentes a dúvida se devemos ou não impô-los alguma coisa ou alguma religião?
Incrivelmente, sobrevivendo a tantas pressões, inclusive físicas, nosso pequeno jovem guardava dentro de si a esperança de um amor. Sonhava com o dia em que encontraria um alguém que pudesse compreendê-lo, amá-lo, beijá-lo e pudesse viver uma grande história. Luiz Henrique era romântico, um sonhador; viajava com as músicas que tocavam ao coração. Enquanto seus amigos se divertiam ouvindo Wave, Michel Jackson, Engenheiros do Hawai e outros conjuntos da época, ele também ouvia Charles Aznavour, Richard Clayderman, Frank Sinatra, Roberto Carlos, Simone, dentre outros.
Tudo era bom, mas as músicas românticas realmente eram as suas preferidas.
Férias, benditas férias. De viagem marcada pra uma grande metrópole, a ansiedade tomava conta de seus pensamentos. Iria visitar sua mãe. Passagem comprada, sempre à noite, a noite que sempre o encantou. Iria matar a saudades de seus irmãos, da avó de seus irmãos, que a chamava de tia Carmem e mais ainda de Marta, sua mãe. E também o mais importante era poder gozar da liberdade, pois gostava de beber e fumar, tudo que em sua época era sinônimo de “status”, de liberdade, e o fazia escondido de seus pais adotivos.
Ah! Se o jovem mancebo soubesse que estas férias, lhe traria uma indecisão tamanha e a solução de grande parte dos problemas de sua vida... Mesmo detestando ficar indeciso a teria feito há mais tempo.
Enfim, chegara. Tia Carmem em nova residência, novos vizinhos, sua mãe também num apartamento dentro de um grande condomínio, tudo era muito novo. A paz reinava. Matou a saudades de todos, mas passava maior parte do tempo ao lado de Carmem, no qual nutria uma verdadeira paixão como se fosse sangue do seu sangue.
Numa de suas estadias na casa de tia Carmem, conheceu Evandro, um de seus vizinhos, e começaram uma amizade. Apesar de Evandro, ser um pouco mais velho que ele, era um belo rapaz, muito simpático, educado, sensual, charmoso, intrigante e até mesmo insinuante, só via adjetivos para ele. Evandro se comunicava bem, às vezes interessado, às vezes curioso, vez por outra disfarçado e alienado, despertando um certo interesse, talvez por curiosidade ou talvez, pela beleza física do rapaz. Luiz Henrique se sentiu atraído. Por vezes não queria sair de casa na esperança de que seu mais novo amigo lhe fizesse uma visita.
Conversavam sobre vários assuntos, nada que fosse muito íntimo. Evandro gostava de uísque com Coca-Cola, Luiz Henrique achava um desperdício. Em algumas circunstâncias a conversa ficava mais picante; sentia que seu amigo se insinuava de certa forma, mas discrição era uma das qualidades marcante em nosso rapaz. E assim se tornaram bons amigos.
As horas passavam rapidamente e os dias voavam, aproveitava o máximo de suas férias, pois rapidamente chegaria o dia do seu retorno. O retorno ao palco em que era obrigado á interpretar uma personagem que, em nenhum momento se assemelhava a ele. Começava, sem que se desse conta, a se questionar sobre o lá e o aqui.
_ Tia Carmem, estas foram as melhores férias da minha vida. Terei que retornar, mesmo contra vontade, se eu pudesse nem voltava.
_ Não sou feliz, não sou eu.
_ Henrique, como ela o chamava, deixe tudo pra traz, venha morar conosco, tens sua mãe, seus irmãos. Arrumarei um emprego pra você e poderá terminar seus estudos aqui.
A indecisão se apresentara e se tornou uma constante, ficou cada dia mais confuso, dividido entre o certo ou errado de se mudar ou não se mudar.
_ O que devo fazer, que atitude devo tomar?
Uma coisa era certa, seu regresso era chegado. Triste, já havia se despedido de todos e partiu. Sua bagagem voltava com mais peso, a dúvida e a saudades.
_ Agora retomo meus afazeres e meus estudos, este ano eu passei no colégio, mas ainda me resta o 4º ano. Meu trabalho é incerto, o pagamento nunca sai na data certa.
_ A verdade é que quero voltar, mas como meu Deus? Qual será a atitude correta a tomar? Não gosto de me sentir indeciso.
Realmente, se havia algo que o deixasse mais irritado era a indecisão, ter que tomar uma atitude que mudaria radicalmente sua vida. Não era mais uma criança, sair de casa representava ter que vencer na vida, pois se assim não acontecesse, seria apontado como fracassado ao ter que retornar ao ponto de partida. Certo que tinha seu porto seguro e incerto se poderia voltar e como seria esta volta.
A decisão não era fácil, havia muito a se pensar. Como uma criança, pegou um papel e uma caneta e começou a enumerar os pós e os contras da decisão de ir embora de uma vez ou ficar e continuar a viver aquela vida sem expectativas, sem alegria, sem cor. Mesmo tentando, mesmo se forçando, não conseguia ser imparcial e na hora da somatória, ir embora ganhou por pouca diferença.
_ Senhor, mostre-me mesmo que em sonho o que eu deva fazer.
Os dias se passavam sem que nem sonhar que estava voando ou sonhar que estava vendo uma cobra, o que lhe era comum ao sonhar, ele sonhava.
_ Ah! Se ao menos Dona Lucinda pudesse me atender. Neste momento preciso tanto dela, seu tarô seria a dissolução das minhas dúvidas, suas cartas nunca erraram comigo.
Nem a ajuda Divina e nem muito menos coma a ajuda de Dona Lucinda ele podia contar. Há pouco tempo, aquela respeitada senhora havia se separado e seu ex-marido não podia nem imaginar que ela estava atendendo homens, pois a ameaçava de pedir em justiça a guarda de seus filhos. Ele era doentemente ciumento, violento e em momentos de intimidade com sua esposa, revelava-se um homem com predileções diferentes do que se espera de um marido. Ela, uma mulher jovem, agraciada por traços de beleza e simpatia e o que Deus não havia dado em altura, pois talvez não chegasse a 1,60m, lhe abundou em competência, sua vidência era extraordinária. As vezes que conseguiu ser atendido por ela, talvez tivesse sido pelo jeito carinhoso, educado e humilde de Luiz Henrique, ou talvez a necessidade de ganhar a vida, já que este era o “ganha pão” daquela respeitada taróloga.
A casa de Dona Lucinda não era de fácil acesso, não passava ônibus. Seu bairro era localizado na parte alta da cidade e a subida, mesmo para um jovem, era por demais, exaustiva. Por vezes trilhou este caminho sem que ao menos conseguisse ser atendido, mas a necessidade e a confiança que lhe tinha, o fazia esquecer os sacrifícios.
Era um pequeno quarto que não fazia parte da casa principal, a porta de ferro, as paredes pintadas de branco, uma mesa forrada com uma toalha branca, uma taça vermelha com champagne, o cinzeiro com um cigarro aceso, um solitário com uma rosa vermelha, uma vela sempre acesa e que ao acabar acendia-se outra, na parede um altar com imagens de povos ciganos e ao seu lado uma vitrola portátil vermelha, que tocava sem parar um disco de vinil em que ele adorava escutar aquelas “músicas” que falavam de uma entidade chamada de “Pomba-gira”. Não entendia a razão e nem o porquê, que ao estar naquele local, sentia algo estranho em seu corpo, não podia e nem tinha como explicar, ficava arrepiado da cabeça aos pés, desde o momento que chegava até bem depois de ter ido embora. Dona Lucinda lia seu taro em pé, parecia não se cansar, a quantidade de pessoas que ela atendia não era pouca. Pacientemente ela dava um papel e uma caneta para o consulente ou pedia que levasse um gravador, tamanha era a certeza de sua vidência, para que ficasse registrado o que as cartas diziam e ao decorrer dos acontecimentos, fossem se confirmando suas palavras.
É, realmente, ela era boa, mas infelizmente não podia mais contar com sua ajuda. Teria que decidir por conta própria o caminho que iria seguir.
Os dias se passando e se cobrava por uma atitude, pois no ano seguinte, se partisse, teria que ver a transferência para outro colégio sem saber se conseguiria vaga.
As lembranças da cidade grande, a liberdade que sentia ao estar longe de sua casa, á vontade em estar ao lado de sua mãe, seus irmãos e sua tia e um algo a mais que ele não revelava, mas que de tempo em tempo vinha á sua mente, era o desejo de ver Evandro novamente. Tudo isso fazia um turbilhão em sua mente. Até que tomou a decisão de ir embora.
_ Vou sim, devo e quero ir, assumirei todas as consequências dos meus atos. Não tenho medo do que possa me acontecer, o que me importa é que não quero mais viver esta vida amargurada, esta vida sem graça, onde nada de bom acontece, as pessoas vivem como se fossem robôs. Nascem, crescem, casam-se, tem filhos e morrem. Não posso sair e me divertir, não posso nem ser eu mesmo. E á tempos me cobram por uma namorada, assunto que me irrita, falar ao telefone nem pensar, pois telefone é somente para um caso de emergência. Se morrer alguém conhecido, o rádio para ouvir músicas também não pode.
_ Não quero, não devo e não posso ser ingrato, mas eu não aguento mais este tal não. Não isso, não aquilo e não pra tudo.
_ É muito fácil para aqueles que estão de fora, me criticar. Garanto que em nenhum momento tentaram se colocar em meu lugar ou por uma fração de segundo ser o que sou ou viver o que eu vivo.
_ Tenho amor, tenho carinho, tenho conforto, mas não tenho o que eu quero, viver.
_ Quero poder sair sem hora pra chegar e nem dar satisfação aonde e com quem vou. Quero ter a ilusão da liberdade fazendo morada em mim.
_ Agora me pergunto como vou comunicar minha decisão? Nunca quis magoá-los.
Numa noite, ao chegar em casa depois do trabalho, todos reunidos à mesa para o jantar, tomou coragem e pediu licença pra falar:
_ Gostaria de poder continuar a viver com vocês, agradeço tudo o que fizeram para e por mim, mas é chegada a hora de morar com minha mãe. Percebo que está muito difícil a convivência entre nós. Sei também que vivemos em completa harmonia, mas a dificuldade se encontra dentro de mim. Queria ser diferente do que sou.
Imediatamente, sem tréguas, foi interpelado por sua mãe adotiva, fazendo que o pobre rapaz ficasse sem ar.
_ Diferente como? Você diz em relação a sexo?
Por alguns segundos o tempo parou, fazendo parecer que eles se tornaram séculos.
Meu Deus! O mundo desabou naquele momento. E agora como sairia dessa? Este era um assunto completamente vetado entre eles. Luiz Henrique sentia vergonha de si mesmo, em nenhum momento queria ser o que era, vivia na pele a repressão, o deboche e o preconceito. Quantas vezes se perguntou, por que eu sou assim? Por que eu sou diferente? Por que eu não sinto atração por mulheres? Por quê? Por quê? Causando um sofrimento que só ele sabia a intensidade e ninguém mais.
Conseguiu ter uma presença de espírito plausível. Não podia confirmar com sua boca, para que não os magoasse, o que realmente era fato. Sim, por acaso do destino, Karma, ou seja lá, o nome que se dê, Luiz Henrique era homossexual.
Sua aceitação própria foi muito difícil, foi conquistada com muito custo e acompanhada de muito sofrimento. Assumir para si mesmo foi mais complicado do que assumir, depois, para a sociedade. Quantas noites não conseguia dormir tentando achar uma resposta ou uma solução. Quantas vezes tentou se masturbar pensando em mulheres, parecia estar se flagelando para ver se conseguia reverter essa condição. Quantas noites não encostava uma perna sobre a outra porque sentia nojo de si mesmo.
E, tristemente, quantas vezes pensou em se suicidar. Achando ser a única solução para findar seus tormentos e suas angústias.
Sentimentos e pensamentos que só quem vive este tipo de problema, digo problema, pois em sua época o homossexualismo era como se fosse um crime, uma obsessão demoníaca, uma doença. Alvo de apedrejamento em público. De sorrisos debochados e onde a discriminação era uma atitude considerada correta, de qualquer pessoa considerada “normal”.
Sempre foi muito fácil, até mesmo nos dias atuais, criticar e menosprezar os que são considerados minoria.
Não podia estar em contato com seus amigos, também homossexuais, para que pudesse compreender que ele não era o único e que não estava sozinho.
Não existia a comunicação e a informação globalizada como atualmente, em que traz consigo, toda a positividade de poder se encontrar, poder se ver em outros iguais.
Bem, era preciso que respondesse negativamente a seu algoz, pois este tipo de pergunta, em nenhum momento tinha algo de carinhoso, mas talvez de ciúmes ou qualquer outro tipo de sentimento, menos compreensão ao fato comunicado.
_ Não entendi sua pergunta, a diferença na qual me refiro não tem nada a ver com sexo.
_ Gostaria de ser diferente em relação as minhas atitudes e poder acatar no cotidiano as leis impostas nesta casa, nesta família. Gostaria de aproveitar minha juventude á minha maneira, gostaria de não ser mais obrigado a frequentar uma religião na qual não aceito seus dogmas, gostaria de sair sem ter que chegar “No máximo até as 23hr”.
_ E o mais importante é que não quero feri-los ou magoá-los por pensar e agir diferente nestes assuntos apenas.
O silêncio novamente se fez presente ao jantar, sua família se calou mediante seus argumentos. Suas palavras bem colocadas e o desejo de não mais trazer qualquer tipo de aborrecimento demonstrava carinho de sua parte, talvez tenha sido a causa da aceitação de ambos, por sua atitude.
A educação que recebera foi fundamental, pra que pudesse naquele momento constrangedor, ter se saído da forma magistral como o fez.
Aprendera a colocação, o vocabulário e o tom das palavras ao falar, com seu pai adotivo, os anos de convivência serviram de aprendizados para este aluno aplicado.
O jantar terminou com a tristeza da partida, que já se tornara eminente, restava apenas definir a data.
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