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A COLEÇÃO
O homem magro empurrava o carrinho de supermercado pelas ruas da cidade, estranhamente, tinha um olhar altivo e entre as bugigangas que carregava podiam se ver alguns livros. Parou em frente à Universidade de Brasília e suspirou. Era o dia de isenção de taxa, na verdade, era o dia de ver o resultado. Havia se candidatado há algumas semanas, precisava da isenção de taxa para concorrer ao vestibular do curso de medicina. Seu nome era Pedro, veio da cidade de Uruoca, no Ceará, fugindo da seca. Quando chegou a Brasília não encontrou emprego e foi obrigado a morar nas ruas. Fuçando o lixo nas superquadras do plano piloto, conseguiu reunir alguns livros, o que foi motivo de festa para ele, já que nem sempre conseguia estudar na biblioteca sem chamar atenção e despertar o preconceito dos outros estudantes.
Enfrentar o preconceito não era nada fácil, podia dormir no chão duro da rua, comer os restos de comida nos containers atrás dos restaurantes, mas no trato com outros seres humanos queria respeito. Todavia, quando a moça lhe entregou o envelope lacrado ela fez gesto com as mãos e expressou seu asco pelo cheiro que exalava. Por outro lado, Pedro comprimiu os olhos sentido a dor da situação. A única coisa que buscava era ser tratado como qualquer outro cidadão. Não abriu o envelope para saber se havia conseguido a isenção. Apenas o colocou dentro do carrinho e fez meia volta. Alguma coisa nele, me inspirava, pois mesmo o mundo caindo em sua cabeça, ele não se incomodava, e altivo, buscava o seu sonho.
─ O que esse cara está fazendo aqui, meu deus do céu. Será que pensa que tem alguma chance? Disse alguém na fila, o vendo passar sério.
─ Achei punk, disse uma garota.
─ Pediram a redemocratização, agora vocês vão ver de tudo. Disse outro.
Ainda não foi naquela sexta-feira de 1989 que fiz amizade com o Dr. Pedro, mas pude vê-lo desfilar na minha frente sorrindo para o preconceito, pois além de estar na condição de mendigo, também era negro, desses bem apanhados. Na verdade estava bastante magro e com os cabelos enormes. Apesar da indumentária e da impressão crua dos outros, uma bondade plácida era denunciada por seus olhos de cinza acesa. A surpresa não foi pouca quando saiu o resultado do vestibular. O nome dele apareceu na lista em primeiro lugar e foi aclamado em todos os veículos de comunicação. Sua foto empurrando o carrinho de compras foi reproduzida como um paradoxo insofismável. Toda publicidade, no entanto, não o ajudou a sair da sarjeta por um motivo ou outro. Nos anos a fio que se seguiram, vi aquele homem surpreender o mundo acadêmico em cada resenha que fazia, em cada palavra polida que pronunciava. Não tinha uma casa, não tinha uma família, entretanto, num ritual precioso guardava os materiais didáticos em uma das muitas caixas de esgoto, nas calçadas da Asa Norte, e apesar de tudo era sempre o primeiro da turma.
Foi neste tempo que fizemos amizade, pois peguei um caderno com ele emprestado para copiar alguns exercícios de genética. O mau cheiro talvez pudesse embrulhar-me o estômago, não fosse o fascínio pela sabedoria latente naquele caderno fedido. Naturalmente não pude recusar sua gentileza, já que após ter ficado doente por alguns dias não recebi a cortesia de nenhum dos amigos da faculdade. Foi somente ele, com seu misto de sabedoria e bondade quem se aproximou para perguntar se precisava de alguma coisa. Dali a alguns dias teria prova e por estar despreparado pude contar com sua bondade.
Diversas vezes tentei ajudá-lo, inclusive tentando tirá-lo daquela condição de miséria e desalento. Sem sucesso. De alguma forma queria sair do poço fundo onde se achava com as próprias forças. Desengonçado, afundado dentro de si mesmo, tinha resposta para suas licenciosas indagações. À tarde era possível vê-lo estacionar seu carrinho prateado nos corredores da universidade, com muita dignidade arrumava a roupa puída e entrava na sala de aula. Ninguém conhecia como ele a Constituição de 1988, costumava, num habito saudável, andar até o Congresso Nacional para buscar alguns exemplares que distribuía totalmente de graça na frente da faculdade. Almejava que todos conhecessem a nova Carta e mesmo faltando tanto para ele sempre dizia quando tentava agradá-lo com dinheiro.
─ Ninguém pode cobrar pela Constituição, nem mesmo um mendigo!
Nesta altura, todos já sabiam que não era mendigo, pois nunca foi visto pedindo algo a alguém. Todavia, de coração aberto, presenciei sua bondade todos os dias daquele cansativo curso. Até o dia da formatura, quando pela primeira vez o vi vestido em uma roupa nova. Um terno preto escovado, botões de osso envernizados e gravata vermelha. Estava perfeito, entretanto naquele dia ninguém percebia a presença dele. Passou despercebido no único dia em que seu brilho desprendeu-se perfumado procurando o riso dos outros. Seu sorriso era translúcido. A sensação de dever cumprido apertava o coração. Aquele talvez fosse o único dia que o vi sem o carrinho de supermercado. Cheguei a dar falta. Apertei os olhos procurando na porta do auditório, aquele artefato tão singular na sua história.
─ Alô, Pedro! Exclamei sem esconder minha surpresa.
─ Não estranhe, sou eu mesmo. Arrumei um lugar para tomar banho e comprei estas roupas para não estragar as fotos da turma.
Todos estavam eufóricos. Daqui para frente seriam médicos. Isso não parecia tocar Pedro, ele circulava pelo local sem dar muita importância para o momento. Sozinho e sem família era difícil compreender seu sorriso fácil ao ver os amigos realizados abraçarem os pais. Percebi que a roupa não o mudava em nada. Era o mesmo homem íntegro, cheio de propósito conversando mansamente com minha família, para quem já era uma lenda. Até mesmo a Júlia, minha sobrinha de apenas três anos, queria saber da história daquele exótico estudante. Com ela no colo me punha a contar e era assim que pegava no sono, compadecida com a narrativa bela e triste.
Agora já não se via o carrinho de compras, não vivia nas ruas, mas não era raro vê-lo próximo a um grupo de sem tetos fazendo um agrado. Quando chegamos ao Hospital de Ceilândia, para atuarmos naboca,como era chamado o Pronto Socorro, devido a ser a entrada na emergência, onde os casos mais urgentes eram atendidos, costumava se aquecer em uma fogueira ali perto com um grupo deles. Nestas ocasiões, distribuía comida e até dinheiro, mas acima de tudo livros. Acreditava, sinceramente, no poder que a educação tinha de mudar o mundo.
Cansei de ver, entrar no consultório do Dr. Pedro pessoas pobres da rua com livros debaixo do braço, inspirados na sua história e ciceroneados por ele. Queria mudar o mundo e sabia fazer isso. Estava fazendo. Sozinho. Dizia de forma profunda:
─ Para mudar o mundo devemos mudar a nós mesmos.
Assim fazia, estava sempre mudando a si mesmo. Todas as conquistas grandiosas para qualquer ser humano, para ele era apenas mais um passo. O que importava era ajudar os outros. Tinha muita pressa e a medicina foi só um instrumento planejado cuidadosamente quando viu a tristeza das ruas. Tal foi que após se instalar nos melhores empregos na capital, largou tudo. Foi trabalhar com osMédicos Sem Fronteira. Doar seu talento e sua paz aos mais oprimidos mundo afora. A vontade de descobrir o mundo, expor suas feridas e curá-las era tudo para ele.
Viajando pelo mundo enviava cartas que vinham sem assinatura, apenas um desenho, meio infantil, de um carrinho de supermercado, feito à caneta, denunciava o autor. Trabalhou em diversos conflitos como voluntário, inclusive no Iraque, onde a população civil foi massacrada pela luta travada entre Americanos e Al-Qaeda. Em fevereiro de 1.999, outra missiva apontava seu destino. Estava no Congo para ajudar os feridos da Grande Guerra Africana, onde foram dizimadas 3,8 milhões de pessoas.
Ao cabo desse tempo as notícias sobre ele foram escasseando e não chegaram mais. O coração apertava, não dava para negar. Uma saudade cheia de orgulho me levava a pensar no que eu mesmo estava fazendo para melhorar o mundo. Relia suas cartas todos os dias, como uma coleção incompleta que esperava uma peça preciosa onde diria: “Estou voltando para o Brasil.” Desconfiei um tempo que fosse a única família dele. Como estava enganado. Empurrando seu carrinho de compras o Dr. Pedro agregava vidas e até uma criança sabia que todas as pessoas do mundo eram parte da sua família.