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O gesto do perdão

1

 

Grande, moreno fechado, reclama de tudo aos gritos:

- Suzete já mandou ajeitar a bainha da calça nova?

A mãe morena, de rosto de traços corretos, pálida, responde com a voz trêmula:

- Ainda não porque...

Nervoso, o homem não lhe permite que conclua o que deseja esclarecer:

- Você é muito displicente. Desligada de tudo!

Volta-se e percebe o menino próximo, mudo pela cena, trêmulo, medroso:

- E esse amarelinho por que não foi pra escola?

A mulher busca defender o filho:

- Hoje é feriado...

O homem abotoa o cinturão no corpo cheio, forte, e encaminha-se a porta da sala, ausentando-se.

- Tudo aqui nessa casa é desorganizado. Tenho de ficar controlando, controlando. Porra!

Bate a porta com força, para abrir a outra, do carro, no oitão da residência, e ganhar a rua, descendo-a, em sentido da avenida transversal um pouco adiante, a fim de iniciar o dia como taxista.

A zoada dos pneus velozes. O choro da mãe, no sofá, na resignação de vencida pela existência árdua, grosseira, enquanto o menino tudo vê, entende. Sofre.

As lágrimas nas faces morenas. Os cabelos lisos, negros, compridos. As mãos bonitas de dedos longos. Os soluços baixinhos... Por que a mamãe é tratada assim aos gritos, pelo homem grande? Ah, se fosse também grande, parrudo, queria ver seu Osair tratar a mamãe como trata! É mas um dia... Também será um homem grande, fortão! Devagarzinho deixa a sala, indo para o quintal, à procura de se distrair, esquecer o que mais uma vez presenciou. Entende.

2

- Seu pai morreu e vivo com o Osair.

Sim, ele não é seu pai não...

A confissão um dia. E ele, então, realista:

- Por isso que ele grita com a gente. Por quer a senhora também não grita com ele mamãe?

O abraço que o aproxima do corpo quente, e o silêncio como resposta, seguido das lágrimas, que lhe caem na face esquerda.

A seguir, ouve a voz baixinha, cansada:

- Vá brincar por aí, Luis.

Um dia, você entenderá tudo. Aprenderá com a vida. Vá brincar.

3

Dirige.

A Praça de Beberibe. As lojas comercias. O posto de gasolina à esquina. Os supermercados. Colegiais que se encaminham ao Colégio Pedro Celso, próximo. O sol que esquenta. A manhã que passa. Automóveis que se cruzam, com motos, bicicletas. Pedestres nas calçadas laterais, apressados. Tudo na rotina que se inicia do novo dia, no bairro populoso, agitado.

Estaciona o carro defronte ao "Mercado do Galego" e, saltando, se encosta à porta direita, no aguardo do próximo passageiro, pois, à semelhança do padastro, é também taxista.

Logo, escuta a indagação conhecida:

- Desocupado Luis?

Voltando-se e reconhecendo o rosto gordo do negro, responde sorrindo:

- Tou sim, seu Geraldo.

Então abre a porta traseira do táxi e em gestos rápidos põe os pacotes do carrinho-de-mão empurrado pela mulher muda, que ganha gorjetas assim conduzindo os carrinhos com a feira dos fregueses do mercado.

- Calor danado, meu!

- Tá mesmo, seu Geraldo. Vamos?

O carrinho é restaurado ao mercado pela mulher branca, magra, envelhecida e o táxi parte. Veloz, aproveitando ainda o pouco movimento do dia.

- Mas, meu camarada, a inflação tá voltando...

- Pois é, seu Geraldo. E o pobre que se lasque!

O sol esquenta. A vida continua em tudo.

O carro avança.

4

O velho na cadeira de rodas, junto à janela que exibe os telhados das residências circunvizinhas. Os quintais. As árvores. Um ou outro morador cruzando-os. Um cachorro latindo. A pipa que sobe ganha o céu de nuvens azuis, de verão. E a voz rouca, gritada, a mesma do passado, em delírio:

- Amarelinho você não quer nada com a vida!

A risada de deboche continua, a mesma de outrora:

- Suzete por que você não faz o que eu mando? Criatura displicente!

A nova risada. O rosto magro, moreno-cinzento. A cabeleira encaracolada, crescida, branca. Os braços compridos. O nariz mais chato. O tronco e as pernas longas, finas, na bermuda azul. Os olhos sem brilho. A chapa frouxa... O delírio de quem vegeta, pertence ao passado, fugitivo que é da realidade.

- Suzete cadê o seu filho, o amarelinho?

À porta do quarto, o homem maduro e a mulher idosa, calados, testemunham à cena da decadência humana.

- Cadê você Suzete?

A idosa se volta ao filho e diz compreensiva, serva da obrigação de zelar pelo enfermo:

- Luis vá trabalhar. Vou saber o que o rabugento do Osair quer agora.

Ele nada diz. Solidário ao que mais uma vez entende.

Cruza o corredor, a sala e abrindo a porta, encaminha-se ao oitão da residência, onde entra no carro e parte, para ganhar a vida de taxista, como fazia o homem grande do seu passado, aquele que hoje está velho, doente, desligado, sombra do que foi, marca da crueldade.

Entra, liga o carro e parte.

- Para que me lembrar do que me maltratou tanto?

Sorri realista e acelera, como se pudesse se ausentar do que ficou como uma chaga do passado cruel.

O táxi corta a Avenida Hildebrando de Vasconcelos.

- Suzete?

- Tou aqui. Que é que você quer Osair?

A risada e a voz forte, como se ainda fosse à do passado:

- Você mandou subir a bainha da minha calça?

- Mandei. Fique calmo. Mandei.

- Cadê o amarelinho do seu filho?

- Saiu pra praça, foi trabalhar.

- Ainda bem que ele deu pra gente, é um homem!

Ela sorri, aquiescendo. Sim, de repente há uma lucidez à mente doente do Osair. Então, o braço se ergue e a mão aberta afaga a cabeça alva, numa carícia do perdão. 

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Atualizado em: Sáb 18 Dez 2010

Comentários  

#5 rackel 19-01-2011 15:03
Paulo, admiro a maneira pungente como traça os perfis da gente comum, dos seres que com suas mazelas, desfiam-nas diuturnamente, até que num átimo, escapa um lampejo de lucidez e de humanidade. Gostei.
#4 PMCV 30-12-2010 10:28
Cerson,
Mais uma vez lhe sou grato às palavras simples, inteligentes e incentivadoras ao que escrevo. Obrigado.
Abraços.
#3 PMCV 30-12-2010 10:22
azaro,
Obrigado colega!
Feliz Ano Novo para você e família.
Abraços.
#2 Cerson 26-12-2010 19:10
Vi-me preso aos seus contos; o perdão é um dom de amor e enaltecimento para qualquer um de nós ter a hombridade de pedir... Obra bem trabalhada, parabéns. Abraços
#1 azara 22-12-2010 08:58
bonito seu texto parabens

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