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Surpreenda - me Morrendo
Ele olhou para ela, com olhos de espanto. Não podia ser verdade. “Não! Não era ela”!
Uma lágrima correu pelo seu rosto, uma dor foi surgindo em seu peito, era tão insuportável aquilo que estava sentindo. Seu inconsciente estava gritando, seu coração disparado, raiva, angústia, revolta, dor, ódio, tudo ao mesmo tempo.
Sentia-se um fracassado, culpado, o lixo do lixo.
- “Por que”?
Começou entrar em desespero, precisava fazer alguma coisa para reverter à situação. Daquele jeito as coisas não poderiam ficar
Como todos sabem, há coisas ruins que acontecem sem que planejemos, às vezes fazemos e nem se quer nos damos conta da burrada. Como um filho sem previsão. Algumas pessoas pensam apenas no prazer, e acabam cometendo um equívoco. Porém, já está feito. Nesse momento é que as idéias malucas, que naquele instante parecem ser as únicas soluções, começam a surgir.
Foi então que pensou, ele iria fazer uma peça teatral em uma hora, poderia incluir mais alguém na peça. Era simples, maquiagem, figurino, umas cenas de improviso e estava tudo “okay”.
Um largo sorriso brotou em seu rosto, esta idéia era genial, como não pudera ter pensado nisto antes. Era um tolo mesmo.
Euforicamente, saiu saltitando em busca dos acessórios, abriu seu baú, onde continha seus figurinos. –“O que poderia por naquela linda jovem”?
Vestidos azuis, brancos, rosa, amarelo, foram todos rejeitados. Mas quando bateu os olhos em um, vermelho cor de sangue, decidiu, seria aquele mesmo!
“Como era pesada”, - pensou. Fisicamente não aparentava afinal ela era uma deusa, corpo definido, magro, alto.
Bom, pelo menos o vestido tinha entrado perfeitamente no corpo dela. -“uau, como ela tinha um corpo perfeito, tão delineado”.
Deu um leve tabefe no rosto, e repetiu pra si mesmo:
- Afasta esses pensamentos homem. Seria desprezível isto.
Concordou com seu próprio pensamento e continuou com seus afazeres.
Prendeu o cabelo de uma forma que parecesse um belo penteado, um coque meio desfiado, com uma franja tampando um pedaço do olho direito, e um fio ondulado caindo ao lado do olho esquerdo.
Hora da maquiagem! Passou um pouco de pó de arroz, não seria necessário excesso, a moça já era branca por natureza, e ainda as circunstâncias ajudaram à torna - lá ainda mais clara. Passou lápis em seus olhos, deixando-os bem profundos e escuros, uma sombra preta, muito blush, e um batom vermelho sangue, para combinar com o vestido. Pintou as unhas de preto, e colocou duas fitas pretas em cada pulso dela e brincos de bolinhas pretas.
Faltava um detalhe, por algo em seu pescoço.
- Ah, Deus! Que alegria! – disse em voz alta.
Aquele era o momento perfeito para dar o colar que sua mãe havia deixado e recomendado que ele desse para a jovem que o atraísse. Sim, esta merecia.
Levou-a até sua cama, e deitou o corpo de forma reta, com as mãos uma sobre a outra, e pôs uma rosa dentre elas.
Parou para admira - lá.
Ela estava tão maravilhosa, que um desejo foi consumindo-o. Uma vontade de pular em cima dela como um leão faminto, e devora - lá. Tantos anos sem saber o que era contato sexual que seus hormônios estavam o deixando louco. Vinte anos sem jamais ter tocado em alguém, e agora ele tinha uma moça, linda e indefesa, sobre sua cama. Mas não! Ele não iria fazer nada.
Que espécie de indivíduo ele seria se fizesse isso com uma pessoa praticamente sem sentidos? Jamais! Ele não era um monstro. Ou era? Já não sabia mais.
Sentou -se e começou a colocar mais algumas cenas na peça, e sem perceber acabara escrevendo uma peça nova.
Faltavam trinta minutos para começar a apresentação. Correu para o Teatro Mundial, deixando a moça no banco do carro.
Já no camarim, chamou dois de seus alunos, e pediu que o ajudassem a trazer a jovem.
Sem entender, os dois garotos foram. Cada um pegou de um lado do braço dela, ela estava com seu rosto coberto por um véu negro, e com um, sobretudo, cobrindo todo seu corpo.
- Deite-a no sofá. Ordenou ele.
Os alunos obedeceram.
- É o seguinte. Ouve algumas mudanças na peça e nós iremos ter que readaptar algumas cenas, pois como vocês podem ver, temos uma personagem a mais. Ela se chama Isadora, mas na peça irá chamar-se Carmem. Leiam as cenas 15 e 16, a partir das falas 98, tudo muda.
Os alunos um pouco assustados, porém curiosos, obedeceram à ordem e começaram a reler.
Um deles sorriu, e disse encantado:
- Professor, isto está perfeito. Será um espetáculo e tanto.
- Sim meu caro! E talvez seja o último. – respondeu o professor.
- Sim. O último desse ano. E fecharemos com chave de ouro.
Foi anunciado, o espetáculo iria começar.
A peça chamava-se “Surpreenda - me morrendo”!
Era um nome um tanto quanto estranho, porém parecia ser muito interessante, demonstrava certo mistério e isto deixava o público curioso.
Tudo caminhou como o ensaiado. De repente Alferdes, aparece trazendo um caixão. Iria iniciar a cena 15.
O Professor Marcelus então entrou em cena. Começou dizendo:
- Olá Alferdes, o que trazes aqui?
- O corpo de Carmem!
- Carmem? A jovem prisioneira?
- Sim! Aquela cujos pais prenderam no porão. Pois a jovem tinha hábitos, um tanto quanto estranhos. Condenaram – na à forca em praça pública, pois não havia mais solução para ela. Foi esta manhã.
- Sim, sim! Recordo-me deste caso. A Senhora Ortis veio até mim, queixar-se de que Carmem estava falando sobre coisas estranhas. Dias depois, retornou dizendo que Carmem começara a cortar seus pulsos e ter ataques de raiva, onde começava a babar-se toda.
- E lembra-te doutor, de quando o Senhor Ortis veio até aqui, queixar-se a ti, de que Carmem havia arrancado às roupas no meio da feira da igreja. E saiu a disparada de encontro aos fiéis, dizendo que o dia deles chegaria, e que aquele corpo que estavam vendo, seria o mais pecador de todos, envolvido em orgias com padres da própria igreja.
- Ah, lembro-me deste dia. A forma como ela ria após dizer isto foi pavorosa.
- Pavoroso foi quando saiu à notícia de que o que ela havia dito, realmente acontecera. O espanto dos fiéis, diante dos padres degolados por Carmem, que quando flagrada, ria e jogava sangue sobre seu corpo nu.
- É, foi quando a internaram. Coitada! Não acreditei que aquela jovem que conversava comigo, era mesma que havia cometido àqueles atos macabros. Durante todo o tempo que passamos juntos, ela se comportou de maneira tão dócil. Calma como um anjo.
- Sim, mas em minha opinião doutor ela mantinha postura de boa moça perto do senhor para poder ter alta. Pois a cada vez que a liberaram ela cometeu atos horrorosos.
- Creio que isto não acontecia com consentimento dela, meu caro.
- Como assim doutor? Como alguém pode dizer e fazer coisas tenebrosas, cometer crimes, matar pessoas sem consentimento? Ela mesma cometia, não havia ninguém a obrigando, era visível que ela era maluca, e Deus me perdoe por usar destes termos, mas Carmem devia ter pacto com, “o coisa ruim”.
- Não! Isto jamais. Não, não e não!
- Como o senhor pode afirmar isto? Ela era outra pessoa quando estava sob sua companhia.
- Cale – se! Basta! Este assunto já passou dos limites. Saia daqui. Quero ficar só.
O garoto então se retirou.
O doutor pegou uma dose de whisky, pôs duas pedrinhas de gelo e foi de encontro ao caixão, onde estava o cadáver da jovem moça.
Uma lágrima escorreu de um dos olhos dele, ele sentou – se ao lado do caixão e começou a dizer:
- Oh Carmem! Minha doce Carmem. Por que tinhas que me abandonar? Eu jurei que fugiríamos e que eu livraria – te de sua mãe.
Tomou um gole de whisky, e continuou a falar:
- Maldita mulher. Tinha que acabar com sua vida? Por que você? Uma moça tão bondosa, que nada tinha a ver com as loucuras de sua mãe. O pior era ver, aquela maldita fazendo papel de boazinha e tornando-te a maluca, como se você fosse à criatura monstruosa...
Mais lágrimas escorreram pelo seu rosto.
-... Quando na realidade era ela, aquela desgraçada, que se fazia de carola, ia à igreja, rezava e pagava dízimo, com a cara mais deslavada, após ter feito pactos com o demônio. Tudo por ganância, para limpar a imagem. Oh Carmem! E todos pensavam que era você, jamais desconfiaram dela. Porém, eu irei limpar tua imagem, e ainda mais, irei desmascarar sua mãe.
Dizendo isto, pegou um caderno, uma caneta e pôs-se a escrever uma carta de desabafo e revelação.
Como todos sabem, Carmem está morta.
Eu, que por anos fui o médico dela e da família, acompanhei todos os dias difíceis desta jovem. Porém, eu, Doutor Marcelus Hellerman, venho por meio desta carta, revelar fatos.
Neste momento a platéia assustou-se, o professor Macelus, nome real e não fictício, estava usando seu nome na peça, onde até então era uma surpresa, pois nunca havia ocorrido fato como este. Bom, o jeito era permanecer em silêncio e assistir a peça para descobrir.
Bom! Carmem, não era filha biológica da Sra. Ortis, ela foi adotada quando tinha cinco meses, isto somente pela Sra. Ortis, (que até então chamava-se Merley Castroano), que a adotou de uma moça que havia tido uma gravidez indesejada aos quatorze anos. Desde então a Srta. Merley a criou. Quando Carmem estava com oito meses Merley veio morar aqui em Conrado, onde conheceu o Sr. Ortis. Os dois vieram a se casar e assim acabou dando seu sobrenome para Carmem.
Carmem ser adotada creio que vocês não sabiam não é?
Vamos descobrir um pouco mais...
O Sr. Ortis conheceu Merley na rodoviária, quando ele voltava de uma viagem à Portugal. Viu Merley e Carmem na rodoviária e acabou indo para Portellas, onde casou-se com Merley e batizou Carmem, dando-lhe seu sobrenome. Nesta época, todos pensavam que ele havia prolongado a viagem de Portugal, como ele já estava viajando há um ano e meio, foi normalmente aceito ele retornar casado, com Merley, que agora viera apenas como a Sra. Ortis.
Fatos revelados em relação à família, agora, vamos para fatos ocorridos somente com a Srta. Merley.
Merley, era uma jovem prostituta, saiu de casa aos quinze anos, pois não agüentava os maus tratos de seu padrasto. Ainda na rua, conheceu Madame Margo, que a convidou para fazer programas na Boate Viella Star. Merley sem ter outra escolha aceitou. Um dia, em um desses programas, conheceu Jonas, um cara um pouco estranho, que a convidou para participar de uma reunião na casa dele, mas ordenou que Carmem abandonasse a boate, prometendo-lhe que iria dar tudo o que ela precisasse.
Merley, já com dezenove anos aceitou o convite. E assim passou a viver com Jonas.
Jonas era um satânico, e possuía um espaço em sua casa reservado para seus cultos.
Tinha mais ou menos sessenta seguidores, espalhados por toda a cidade. Merley era sua “serva”, amada e seguidora. Realizou muitos pactos e participou de muitos cultos com Jonas.
Porém, um dia, ela saiu para ir comprar algumas capas que Jonas havia pedido. Quando retornou, pegou Jonas no quarto com outra. Jonas estava amarrado na cama, e a moça estava fazendo cortes no corpo dele, onde os lambia.
Revoltada Merley entrou no quarto e degolou a moça, e aproveitando que Jonas estava amarrado, injetou várias seringas de heroína nele, o fazendo morrer de overdose. Desamarrou-o e deixou ao lado do corpo da moça. Ligou para polícia, que de imediato vieram socorre – lá.
Não houve suspeita dela, todos os vizinhos confirmaram que Merley tinha ido à mercearia, e como ela retornou vestindo uma das capas, ninguém suspeitou dela. Era muito normal ver pessoas de capas entrando na casa, e como todos os vizinhos da vizinhança eram tolos, acabaram não suspeitando de nada.
Merley então, realizou seu último pacto, este onde ela vendeu sua alma, e desejou que sua imagem jamais fosse descoberta. Ofereceu então, como agradecimento uma criança, onde iria dar como filha dele.
Foi então que apareceu Carmem.
Por isso Carmem sofria seus ataques, pois era possuída com consentimento de sua mãe, e o mais surpreendente do Sr. Ortis também, pois ele estava por dentro de toda a história de Merley, ajudando assim a limpar a imagem dela.
Eu, que passava meus dias tratando de Carmem e conversando com ela, fui descobrindo aos poucos as coisas que acontecia, Carmem queixava-se demais.
Então decidi investigar toda a história.
E foi isto tudo que descobri.
Por fim, tenho que dizer aqui, que eu Dr. Marcelus, me encantei por Carmem e acabamos nos envolvendo. Prometi que limparia a imagem dela, assim como o Sr. Ortis limpou de Merley, e que após, fugiríamos daqui. Infelizmente não foi o que aconteceu, Carmem veio a falecer antes mesmo que eu cumprisse minha promessa.
Carreguei isto junto a mim por muitos anos, e então agora com o corpo de Carmem aqui, decidi revelar.
Agradeço a todos e que a justiça seja feita.
Descanse em paz minha adorável Carmem.
Só com você eu fui capaz de descobrir o amor!
Dr. Marcelus Hellerman.
O médico saiu de cena, onde Alferdes apareceu, e encontrou a carta que foi lida no centro da cidade de Conrado.
A Sra Ortis, ou melhor Merley, foi condenada pela igreja à forca em praça pública. E o senhor Ortis à prisão, por toda a vida.
E o Dr. Marcelus? Ninguém mais havia visto.
E a vida em Conrado continuou a mesma, marcada pela dor e pela vergonha de terem condenado um inocente, mas aliviados por terem feito justiça.
Neste momento as luzes se apagam... E acende uma no centro do palco, alguém de costas... É o Dr. Marcelus.
- Creio meus queridos, que a justiça em relação à Carmem já foi feita, e a Isadora também será. Não vejo mais motivos para permanecer aqui, desejo apenas encontrar minha doce amada, no lugar maravilhoso onde ela deve estar.
Agradeço a todos que em mim acreditaram e todos que fizeram justiça.
Obrigado!
Marcelus Hellerman.
Um tiro.
Silêncio.
As cortinas se fecham.
Palmas.
...
O público se retira.
Um grito:
- Deus!
É de uma das alunas de Marcelus.
- Corram aqui meninos. Meu Deus, Meu Deus. O professor está morto.
- Morto? – pergunta Mathias, intérprete de Alferdes.
- Sim! Ele realmente atirou, atirou no próprio coração.
- Pensei que era apenas uma arma de mentira e que o tiro tinha vindo das caixas de som.
- E veio! Encobrindo o verdadeiro.
- Foi estranho mesmo. Ele errou o texto. Falou de uma tal de Isadora.
Mathias deu um pulo.
- Isadora! Claro, a moça do caixão. Jesus. O cadáver. Nós estamos com um cadáver aqui. Ahhhhhhhhhhhh! Precisamos fazer algo. Alguém liga para a polícia.
Foi então que Raul viu um papel na mão do professor.
- Olha Mathias, uma carta. Leia.
- Okay.
Alunos, platéia, todos que estiverem lendo e ouvindo isto...
Deixo aqui uma pequena história.
Carmem, minha personagem, nada mais é do que Isadora, a moça do caixão. Eu e Isadora fugimos da cidade de onde morávamos. Pois eu queria livra – lá de tudo o que estavam fazendo com ela. Chegaram a exorciza – lá, e não queria mais que estas coisas acontecessem com ela.
Parte da peça era fictícia, porém havia mais verdades que invenções.
Bom, quero me desculpar por ter cometido o ato assustador que cometi (estou falando do meu suicídio, foi de caso pensado).
Há vinte anos eu não via Isadora, pois desde que fugimos para cá, ela me abandonou sabe Deus o porquê. Só sei que ela reapareceu hoje pela manhã, fiquei muito contente, corri ao mercado comprar algumas coisas para comermos, porém quando eu voltei, ela já havia tomado veneno. Eu só permaneci vivo por todos estes anos, pois sabia que ela voltaria, mas agora com ela morta, não vi mais motivos para viver.
Perdoem – me, pois fui um fraco. Lamento também, não ter feito a justiça que Isadora merecia, mas contando toda a história aqui, permaneço feliz.
Peço apenas que enterrem – me juntamente com Isadora, para que possamos viver juntos pelo menos no infinito.
Marcelus Hellerman.
07 de novembro de 1979.
Tudo foi feito, como o pedido do professor Marcelus.
... Anos depois.
Dia 07 de Novembro de 2000,
No Teatro Mundial
Peça: Surpreenda – me Morrendo,
De: Marcelus Hellerman.
Com os atores: Mathias Klim, Raul Dantes e elenco.