person_outline



search
  • Drama
  • Postado em

Citadino

O velho marujo aposentado me dizia que já não podia mais beber, e que a razão maior de sua angústia não era o anonimato e nem a pobreza. Tinha relação com a abstinência alcoólica, mas com um agravante estranho. Ele sentia que todas as vezes em que conversava sobre outras pessoas, principalmente sobre aquelas que em tese estavam em condições mais desoladoras que a dele, havia algo que na cabeça dele parecia congelar ou entorpecer as tais pessoas no tempo e no espaço, fazendo delas pessoas felizes ou ao menos imunes ao sofrimento; mesmo algum sofrimento do qual justamente se estava falando a respeito. Sabia que isso não era real, mas não conseguia se livrar desse delírio. Talvez gostasse dele e nem ao menos tentasse fazer por onde deixá-lo de lado. E dizia também que nessas horas a companhia da pessoa com a qual ele conversava geralmente o levava ao desespero. Ele queria um éden. Foi expulso da marinha por bebedeira, hábito que cultivou com avidez nos momentos de tédio que eram alternados com as horas de trabalho duro nos navios. Trabalhou como garçon mais tarde.

Dizia ainda: ‘Não há bonanza, não há saída. A humanidade é um grande rebanho de baixo custo aos produtores; esses últimos ceifaram a alma de cada uma de suas cabeças de gado. Digo que não há saída porque se você for alguém cuja alma eles não conseguiram ceifar, então sua alma vai te levar à loucura, pelo efeito do estágio de devastação ao qual a humanidade se autopuniu. Os homens mais fortes da história, de uma maneira ou de outra sucumbiram quando a vida resolveu que eles mereciam ser destruídos. E como você deve saber, o homem digno pode até ser destruído, mas jamais derrotado.'

O velho falava de sua velhice também. ‘O que posso dizer é que não é realmente triste envelhecer. Você aceita com o tempo. É estupidez lutar contra isso. A velhice pode ser decepcionante, se você não souber se recolher e se divertir de outras maneiras, talvez assistindo da maneira mais privilegiada possível o planeta perecer. Se hoje eu fosse jovem teria que reaprender uma série de coisas novas e esquecer das bases sólidas nas quais meus princípios foram moldados. Eu sou da velha escola, meu filho... Prezo demais o velho código. Se o que me resta é muito pouco do ponto de vista material, eu tenho meu café forte e meus bifes com cebola. Eu tive whisky e conhaque quando eu tinha pâncreas e fígado e rins. Ainda posso sentir os sabores se eu pensar neles. Mas a bebida é mais devastadora que as guerras. Eu jogava e bebia em navios, quando eu nem sabia que existiam Jack London e George Orwell. Quando eu era jovem, já haviam muitos homens burros, mas quando vejo esses jovens frouxos de hoje em dia, me orgulho dos amigos que já tive. Desde os militares de direita até os bêbados literados de esquerda. Mas hoje os jovens são covardes.'

A bonanza da vida pode ter chegado pra ele. Não é preciso mais correr, não é preciso mais lutar por causa alguma que não sua comida e seu aluguel, pagos pela previdência social ao velho homem, que passou por poucas e boas, mas era um bom contribuinte. Eu só o encontrava no elevador do prédio, de modo que minha presença não chegava a levá-lo ao desespero. O velho homem ainda vive.

A ruína da sociedade vem sendo arquitetada desde que existe o conceito de família, mas o que se vê atualmente não é apenas uma sociedade devastada. A burrice com a qual esse declínio permanente foi traçado ao longo de todos os tempos fez da década de 1990 e dos anos 2000 um período em que foi e é inútil tentar viver sem claustrofobia social. O Micheal Stipe não pode passar imune, tendo ele grana pra comprar isolamento ou que quer que ele goste ou queira. Assim como o mais desgraçado dos nóias da Cracolândia também está exposto aos horrores da ruína social. É a ponta extrema em relação aos mais poderosos. No fim das contas ninguém está livre.

Agora que as lan houses ficam abertas e cheias todas as noites e os bares fecham cedo, a palavra desolação é potencializada em seu significado. Houve tempos, e esses tempos não são tão remotos assim, em que poucas figuras poderiam se comparar a um garçon no que diz respeito à desolação. Era possível observar um garçon trabalhando e atingir um estado estranho de satisfação por não estar no lugar dele, e ao mesmo tempo ter aquela triste sensação de que as coisas realmente podem e provavelmente vão ficar tão assustadoras ao ponto de não termos alternativa alguma para sobreviver a não ser sindicalizarmo-nos nessa categoria e arrumarmos trabalhos como de garçon, ou ainda ajudante de garçon.

Não é o fato de estar trabalhando enquanto os outros comem e bebem. È ver as pessoas ali, sem rosto, sem vida, entrando e saindo de barese restaurantes só pela força da inércia. Aquela massa anônima, toda desprovida de alma. Casais que nem sabem mais porque estão juntos. Não há bonanza para eles também. Não se pode sentir compaixão por esses humanos. Nem por si próprio, quando estamos expostos a esses nossos semelhantes, que nos envergonham, nos constragem e nos entristecem.

Num desvio do acaso, um garçon me contou que teve que aguentar aquele escritor que é a voz da periferia bebendo chope e falando a amigos com ouro pendurado aos montes no pescoço sobre suas proezas literárias e sobre como ele representa uma classe social por meio de sua arte. Que sujeito desprezível (a voz da periferia, não o garçon).

Vejam, eu realmente não tinha sobre o que falar nesse tempo todo, e resolvi não escrever nada, ainda que minha falta de assunto fosse melhor do que o melhor do escritor da periferia e também o daquela ‘consagrada' escritora que gosta de John Fante.Eles continuaram escrevendo, pois para ela ‘escrever é uma terapia', e para ela é uma ‘responsabilidade social'...A não escrita é melhor do que a literatura ruim. A literatura brasileira está submersa na limbose. Onde está o mérito de não se ter outra coisa a fazer senão escrever? Consta que ela queria a princípio o rock e não a literatura. Ela achou mais fácil tentar a literatura e a reduziu a lixo. É curioso o fato de que alguns desses escritores novos tem de fato alguma cultura literária. Isso é algo positivo, mas o bom leitor não é necessariamente bom escritor. E nem o contrário pode ser dito. Se você tem o que dizer, pode fazê-lo sem que necessariamente tenha uma carga cultural já adquirida. O que intriga de verdade nisso é que essas pessoas não conseguem fazer comparações adequadas entre o que produzem e o que produziam os grandes escritores lidos por essas pessoas. Não se trata apenas de verificar se há habilidade com as palavras, mas principalmente se nessas palavras há verdade, no sentido de terem sido escritas por alguém que de fato viveu o que escreve, ou que conheça realmente os assuntos tratados.

Há aquele escritor que mora na Vila Madalena e escreve sobre morar na boca do lixo. Isso constrange. Ele quer parecer sujo e marginal. Por que é preciso ainda buscar isso na literatura? Parece que essa fórmula nunca mais vai ser abandonada pelos aspirantes a escritor. Por mais que temas como prostitutas e drogas estejam desgastados, eles insistem, sem ter jamais vivido uma vida realmente marginal. Sem jamais terem passado fome. Não há glória nem mérito nesse tipo de vida. O velho homem enfiar-lhe-ia a bengala no rabo. Não creio que ele pudesse permanecer indiferente. Sobre essas coisas já se escreveu, e os que vieram antes por esse caminho fizeram o que poderia se fazer de bom no gênero, simplesmente porque havia verdade e qualidade na escrita. Ou pelo menos a qualidade, que no fim das contas, é o que realmente interessa. Se houver a qualidade sem que haja a verdade dos fatos, ainda sim há algo de sublime nesses escritos, que é o fato deles estarem afastados do que se chama de jornalismo.

Eu vivo na Cracolândia, e o que pode ser dito sobre aquilo é que as pessoas e as ruas são ruins em qualquer bairro. Alguns desses bairro são apenas mais feios e seus habitantes também. Mas as ruas e as pessoas são ruins em todo lugar, e em todo lugar o melhor a se fazer quando se tem moradia é entrar em casa, fechar a porta e não deixar o meio externo interferir, no caso de haver por parte do dono dessa casa um desprezo mínimo que seja pela vizinhança. Ah, a vizinhança...Ela costuma ser ruim em qualquer lugar que se viva. Sempre o melhor é que haja uma distância regulamentar para o vizinho mais próximo, mas esse talvez seja o ítem mais caro quando se gasta dinheiro corretamente, comprando qualidade de vida. É óbvio que as pessoas mais inteligentes e que podem gastar, viverão com um mínimo de isolamento, a fim de ver sua bonanza inabalável diante do constante aborrecimento que telefonemas e visitas podem trazer.

O talento para a escrita não pode ser aprimorado, apenas a técnica. Esses concursos literários de internet são propositadamente planejados para que qualquer um que leve a literatura a sério jamais se sujeite a participar deles. São tão burocráticos que o sujeito que escreve um pouco melhor e preza pelo seu trabalho de verdade, não vai ter dinheiro o bastante para a taxa de inscrição e nem a vontade de não ser lido pela ‘banca' responsável, ou pior ainda, ser avaliado por um acadêmico frouxo que não sai de casa há anos. Lêem sobre a vida e sobre o mundo, escrevem sobre a vida e sobre o mundo, e no entanto perecem em seus gabinetes. Mas os prêmios em dinheiro dos tais concursos literários costumam ser bons. Os participantes querem a todo custo algum tipo de reconhecimento por seus clichês mal adaptados dos livros que leram. Não sabem fazer nada direito. Se chegarem em casa depois de serem arrombados pelo patrão, não sabem nem escolher uma música que preste para ouvir antes do dia acabar.

Sempre pensei que ter dinheiro sem ter fama fosse o que de melhor um homem inteligente pudesse conquistar. Ter condições de manter o sossego longe da menor possibilidade dele ser molestado, tanto do ponto de vista financeiro como pessoal.. Não precisar jogar com as pessoas, ainda que elas mereçam ser tratadas assim e façam o mesmo com os outros. Isso é algo digno no qual se deve investir dinheiro.

Talvez o que haja de melhor em morar na Cracolândia seja poder observar de perto como a sociedade é a ruína dela própria. Há algumas famílias que embora estejam devastadas no que diz respeito à qualidade de vida, estão quites com seus princípios morais de existência e conduta, sempre apostando que a bonanza só vem depois da morte, num éden comprado a prestação e pago com antecedência aqui no purgatório. Combinemos que moral é o que nos faz sentir bem depois , e imoral é o que nos faz sentir mal. Gosto de estar lá quando os moradores do prédio estão trabalhando. Gosto de tardes entorpecidas no centro de São Paulo, ouvindo o barulho da rua não tão de perto. Grande parte da burrice humana consiste no fato de as pessoas não terem a menor clareza para enxergarem o que de fato deveriam esperar da vida. O gosto da indiferença por algo ou alguém pelo qual sofremos no passado. As manhãs agitadas de cidades grandes quando se está simplesmente vadiando sem culpa. Os bons vagabundos parecem mesmo ser coisa do passado. O velho homem soube ser um deles. Soube e sabe viver sem culpa. ‘Você pode achar que hoje sou um velho amargurado, mas não acho que eu seja exatamente isso. Fui mais insatisfeito durante diferentes momentos da minha juventude. Gosto de saber que apesar de tudo, vivi sem culpa, baseava-me no meu discernimento, e fui ter mais paz quando descobri heróis na literatura, que sem que eu jamais pudesse imaginar, tinham interesses e valores não tão diferentes dos meus. Quando eu já estava com 40 anos fui correr atrás da educação e cultura que jamais me havia sido dada. Se eu tivesse sido um estudante universitário vinte anos antes disso, talvez tivesse virado um leitor de gabinete. Não tinha vontade e nem referências sobre os homens que uniram numa força só o intelecto e o físico pra tirar da vida o sabor que ela pode proporcionar. No começo era a vitalidade físoca, os esportes, as brigas, a bebida e o trabalho braçal. Depois uma certa maturidade, reflexão e literatura, que aliás veio a mim por um sujeito que devorava livros em viagens de navio, enquanto os jogos de baralho e a fumaça de cigarro permeavam as entranhas do navio nas horas de folga dos marinheiros. Passei a pensar que não era mais necessário ser o cara mais forte, e nem o mais erudito. Era preciso tentar ser as duas coisas, indo o mais longe possível em ambas. Isso também pode levar à loucura. Será que Hemingway estava louco quando escreveu sobre o velho Santiago? Será que seu suicídio foi um ato de covardia? Ninguém pode afirmar, nem deve. Ele só quis colocar um fim nisso. O álcool já lhe era proibido, assim como pra mim hoje...As mulheres já tinham feito na vida dele o que as mulheres fazem...Quando resolveu mandar tudo às favas prvavelmente estava entre a satisfação pelos prazeres, dortes e sensações que viveu, e a agonia da falta de vitalidade física e mental. Para um homem como ele, isso é pesado.'

Só que depois que saiu de Cuba para morrer, Hemingway escolheu Ketchum, Idaho, uma cidade com pouquíssimos habitantes, onde mais a maioria dizia tê-lo conhecido no fim da vida. Já o outro velho homem vive no centro de São Paulo. E depois que me despeço dele, quase invariavelmente ouço meu amigos dizendo coisas como: ‘Porra, Beat...Adan and the Ants? Que porra de banda é essa? O que você tem na cabeça?', ou algum daqueles bastardinhos que esperam um dia ser salvos por alguma mulher que os sustente, comentando coisas como ‘Você não é mais moleque, precisa de estabilidade financeira de uma vez...'

Há a solidão do homem que estabelece suas próprias regras e vive de acordo com seu próprio código. Ela não é menos devastadora que os outros tipos de solidão. Mas tornar-se inacessível é ter poder. O único crime é ser descoberto e pego. E se pego você for pela alma, um arrombado mutilado você é.
Pin It
Atualizado em: Seg 5 Jan 2009

Comentários  

#4 Nadi 17-05-2011 22:12
A soilidão não faz doentes, pelo contrário reencontra o que há de mais útil na alma de um homem.
Creio que escrever é dom. Mas querer
escrever é vontade e vontade nem sempre é autêntica, é ilusão.
Quem lê sempre interpreta o texto conforme seu próprio conteúdo, ou seja, muito de si mesmo...
As melhores leituras ainda são as do tipo que descreves. Ouvindo o que os outros têm a dizer.
Ai, então não pretendo me expor, nada publicarei, para comércio. Rsrsrsrsrsrsrsrsrs.
Bjs estrelas.
#3 Nadi 17-05-2011 22:12
A soilidão não faz doentes, pelo contrário reencontra o que há de mais útil na alma de um homem.
Creio que escrever é dom. Mas querer
escrever é vontade e vontade nem sempre é autêntica, é ilusão.
Quem lê sempre interpreta o texto conforme seu próprio conteúdo, ou seja, muito de si mesmo...
As melhores leituras ainda são as do tipo que descreves. Ouvindo o que os outros têm a dizer.
Ai, então não pretendo me expor, nada publicarei, para comércio. Rsrsrsrsrsrsrsrsrs.
Bjs estrelas.
#2 Áureo Lima 07-01-2009 08:42
Os velhos sempre têm uma sabedoria que não se encontra nos livros, em teses acadêmicas ou num vídeo do YouTube. Além disso, eles são nosso espelho daqui a alguns anos. É respirando essa sabedoria que podemos moldar nosso futuro, para o bem ou para o mal.

Concordo quando diz que escritores devem escrever sobre o que conhecem. A experiência vivida é uma das mais preciosas inspirações. E há muita hipocrisia com “capa dura e orelhas” por aí.

Um belo texto, meu caro. Denso e reflexivo. Parabéns!

Agora...o que seus amigos têm contra Adam & The Ants?
“Stand and deliver your money or your life!....”
+5 #1 Áureo Lima 07-01-2009 08:42
Os velhos sempre têm uma sabedoria que não se encontra nos livros, em teses acadêmicas ou num vídeo do YouTube. Além disso, eles são nosso espelho daqui a alguns anos. É respirando essa sabedoria que podemos moldar nosso futuro, para o bem ou para o mal.

Concordo quando diz que escritores devem escrever sobre o que conhecem. A experiência vivida é uma das mais preciosas inspirações. E há muita hipocrisia com “capa dura e orelhas” por aí.

Um belo texto, meu caro. Denso e reflexivo. Parabéns!

Agora...o que seus amigos têm contra Adam & The Ants?
“Stand and deliver your money or your life!....”

Deixe seu comentário
É preciso estar "logado".

Curtir no Facebook

Autores.com.br
Curitiba - PR

webmaster@number1.com.br