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O Primeiro Dia

Em um dia outonal de abril Helen, após um tempo considerável realizando treinamentos e respondendo testes, finalmente iria iniciar seu voluntariado na associação de valorização a vida – prevenção ao suicídio. De fato ela sentia-se estranhamente empolgada com seu primeiro dia enquanto seu instrutor mostrava-lhe o local de trabalho dando uns últimos toques antes do inicio.
Helen, ainda na infância, perdera sua mãe vítima da violência urbana, a jovem senhora de apenas trinta e cinco anos levou três tiros (dois na região torácica e um no crânio) em uma tentativa de assalto, passou alguns longos dias na UTI do hospital municipal, porém não resistiu. O culpado nunca foi encontrado, testemunhas oculares apontaram que ela não houvera demonstrado resistência, no entanto o criminoso estava demasiado agressivo e agitado...
O senhor Santiago, pai de Helen, nunca se recuperou do luto, passou os anos seguintes entregando-se às bebidas e outras drogas, ficava horas chorando sozinho em seu quarto e desejando a não existência, quando notou que estava tornando-se perigoso para a própria filha a entregou aos cuidados da tia materna. Três anos e cinco meses depois do infortunado dia no qual enterrou sua esposa o senhor Santiago tirou a própria vida com um tiro na cabeça, na ocasião ele estava vivendo em um cômodo mal iluminado, úmido e com muito lixo, no mesmo local foram encontradas diversas capsulas de cocaína vazias, um revolver calibre .357 de cano curto e numeração raspada, um cachimbo improvisado de alumínio, três pacotes de lã de aço (um aberto e dois fechados), cinco pedras de crack, um celular antigo com a bateria colada com fita adesiva e muitos preservativos usados. Obviamente a pequena Helen só soube disso após adulta, sua tia materna (que não tinha filhos) a manteve dentro de uma bolha de felicidade o máximo de tempo possível, deixando a criança (no momento da morte do pai uma pré-adolescente) o mais distante que conseguia da cruel realidade de sua vida.
Adulta e ciente do que houvera ocorrido com seus pais (não com muitos detalhes), Helen, que sempre foi uma ótima aluna, conseguira passar em um concorrido vestibular de uma instituição educacional e agora cursava o sétimo semestre em psicologia. Seu voluntariado também serviria como horas complementares para o curso, sem contar que a principal razão de Helen está ali era conseguir salvar alguém de si mesma, em seus pensamentos sempre remoía o caso de seu finado pai e sabia que se alguma pessoa o tivesse escutado e oferecido novas perspectivas ele possivelmente estaria vivo e bem.
–Helen, sei que você já escutou isso inúmeras vezes estes últimos dias, mas preciso dizer novamente, não deixe que nada aqui te abale, ok? – Avisou o instrutor, ao afastar a cadeira na qual Helen iria permanecer nas próximas horas. – Caso se sinta, mesmo que levemente, incomoda com algumas das chamadas é valido se levantar e ir tomar um ar lá fora. Além de qualquer coisa, também estarei aqui, basta me chamar. – apontou com a cabeça para quatro mesas adiante de onde ela estava.
– Ok, não se preocupe. – Tranquilizou-o. – Se houver alguma dúvida ou se surgir alguma ligação que eu não me sinta segura em lidar te chamo. – Com um sorriso de canto falou sentando-se na cadeira e se posicionando diante o computador.
Em pouco menos de vinte minutos Helen atendeu sua primeira ligação, um caso complexo; uma garota com voz doce e calma narrava que acabara de cortar seu pulso esquerdo com um estilete, teria feito isso para amenizar a dor que sente por viver, porém, vendo a quantidade de sangue que agora saia do corte, temia a chegada da morte. Estava sozinha em casa e só lembrara-se do número da associação. – Desculpa tá?! É que liguei pra vocês algumas vezes e acabei gravando o número na cabeça. – Falou em um tom calmo que disfarçava quase que perfeitamente o medo crescente. – Eu meio que sei que deveria ter ligado pro SAMU, mas, sei lá, fiquei sem jeito, acho que eles iriam me julgar, achar que sou louca. – Continuou, desta vez deixando transparecer seu temor com a voz tremula.
Helen lidou de maneira inigualável com a situação, deixando a jovem calma com suas palavras enquanto acionava o serviço de atendimento móvel de emergência para o local na qual a mesma se encontrava.
As horas passaram e o primeiro dia de voluntariado de Helen havia sido realmente produtivo, atendeu diversas chamadas e em todas desenvolveu de forma profissional a escuta e a conversa. Ela estava se sentindo plena consigo mesma.
– Helen, seu período acabou. Vou pedir pra você ficar só mais um pouquinho enquanto a outra moça que vai assumir não chega. Ela avisou que o metrô está com a velocidade reduzida e irá se atrasar, tudo bem pra você? – Amigavelmente perguntou o instrutor.
– Sem problemas. – Sorriu Helen.
– Muito obrigado, a propósito, ótimo trabalho. – Sorriu. – Vou ali fora acender um cigarro, qualquer coisa me chama. – falou virando-se.
Fazia cinco minutos que seu instrutor havia saído para fumar, a moça que chegaria para assumir seu lugar continuava atrasada, Helen olhou a hora que ficava a mostra no canto direito inferior da tela do computador, marcava dezenove e treze, ela deveria ter deixado seu posto há treze minutos, mas estava tudo bem, nenhuma ligação havia chegado neste meio tempo e ela não estava se sentindo culpada em deixar seu gato sozinho por mais alguns minutos em seu apartamento.
Uma ligação recebida:
– Como posso ajudar? – Helen amigavelmente falou.
– Hã, oi? Peço desculpa por isso. – Uma voz aflita e familiar respondeu entre chiados típicos de uma ligação feita de um local com o sinal ruim. – Sei que depois que ela se foi eu te negligenciei meu feijãozinho. – Helen sentiu um frio subir de seus pés até a base do pescoço, aquela voz familiar e o carinhoso apelido “feijãozinho”, ela sabia perfeitamente quem estava falando. – Que bom que te encontrei ainda, fiquei com medo de você já ter saído, esperei muito por isso, na verdade mais tempo do que aparenta, aqui os minutos parecem horas...
–  P-pai?! – Tentou elaborar uma frase, mas não conseguiu.
– Sim, feijãozinho. Precisava ouvir tua voz antes disso... – A voz silenciou e tudo que se ouviu durante longos segundos foi o chiado da ligação. – Acho que só não queria fazer isso sozinho novamente, precisava de alguém junto comigo, talvez dessa vez seja a ultima. – Ela ouviu um som de algo metálico sendo arrastado brevemente por uma superfície solida. – Desculpa por isso, sempre te amei. – O som do tiro ecoou, algo caiu, agora só restava o insistente chiado e subitamente este também silenciou.
– Oi Helen, essa é a Natalia, ela que assume agora. – O instrutor regressando apresentou uma garota baixinha aparentemente um pouco acima do peso com óculos posicionado sobre o nariz levemente torto. – O que ouve? – Mudou de tom preocupando-se ao notar que Helen estava paralisada diante o computador olhando fixamente o protetor de tela. – Helen? – tocando-a no ombro.
– Ah, desculpe. – Olhou para o lado, despertando para a realidade. – Ah sim, muito prazer. – Respondeu levantando-se da cadeira e complementando a companheira voluntária.
– Tudo bem? – Perguntou o instrutor estranhando o comportamento.
– Sim, sim. Só me desliguei um pouquinho pensando nas provas semestrais que devem iniciar em breve. – Sorriu sem jeito. – Então até amanhã?
– Sim, sim. Tenha um bom descanso.
– Obrigado, até mais.
Enquanto deixava as duas pessoas na sala Helen, sem olhar para trás, deixou algumas lágrimas viajarem pelo seu rosto.
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Atualizado em: Qui 25 Abr 2024

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