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O Caso Carla

Um cigarro. É assim que começa meu dia. Normalmente eu tomaria uma boa xícara de café puro para despertar os ânimos, mas o Delegado Ricardo fez questão de me enviar para Santa Roseira das Cruzes, uma cidade pequena ao sudoeste da São Paulo, um pouco depois de Ilha Comprida, quase na divisa com Paraná. Ah! E um detalhe, sozinho, porque esse delegado filho da puta falou que era para não fazer os moradores se sentirem ameaçados… independente... claro que com a cobrança dele não tive outra opção a não ser sair logo. 
Por sorte eu não tenho quem me espere na capital, no fim até penso em partir de la mesmo, vai que Deus está me mandando para Santa Roseira das Cruzes ver o lugar onde sempre deveria estar? Pensar nisso me faz rir.
Bom, sobre o caso, aparentemente uma garota desapareceu por uma semana e antes de ontem foi encontrada morta de jeito estranho, agora, isso é algo necessário para enviar um policial para uma viagem de quase quatro horas? Como não parece nada urgente fiz uma pausa no meio do caminho e tomei um café da manhã de verdade, cigarros não matam fome. Após minha pausa voltei a estrada e acendi o último cigarro do meu maço, claro que não sou bobo e trouxe meu próprio estoque.
A viagem foi assim, mais alguns cigarros, um pouco de rádio e às vezes minha própria playlist post punk para me distrair da voz dos radialistas. Quando se está entretido nessas coisas você nem vê o tempo passar, cheguei na cidade como num piscar de olhos, entrei na pequena cidade praiana, ela era fortemente cercada pelas matas em sua parte de trás, isso dava um grande contraste com a frente aberta da praia, passei por uma praça e parei ali para respirar um pouco, nela havia uma grande estátua de uma bela mulher com um vestido, uma espada em uma mão e na outra uma rosa, seus olhos e boca estavam costurados e em sua base estava escrito “Em memória de Maria Roseira das Cruzes e sua batalha incessante contra o mal oculto.” Pensei um pouco sobre a frase, mas logo me foquei no meu objetivo, vi um rapaz sentado no banco a ler um livro me aproximei dele e pigarreei esperando sua atenção.
— Desculpe-me interromper rapaz. — Falei buscando ser o mais educado possível. — Poderia me dizer onde tem uma estadia?
— Boa tarde, senhor. — Ele falou colocando o livro sobre seu colo, era bronzeado, olhos castanhos escuros e cabelos escuros num corte militar, possuía um sorriso simpático e um olhar curioso me medindo de cima a baixo. — Virando aquela rua — Ele apontou para uma das ruas que saiam de volta para a praia. —, na praia tem uma pequena hospedaria, tem uma placa meio escondida escrita “Hospedaria Flores” mas tenho certeza que você vai enxergar. — Ele sorriu mais uma vez como se estivesse satisfeito com a própria explicação.
— Claro muito obrigado. — Me virei pensando em partir, mas dei de cara com aquela estátua novamente e me voltei, mais uma vez, ao rapaz que ainda me observava como se esperasse mais algo. — Sei que não tem muito a ver, mas por que dessa estátua?
— Maria Roseira das Cruzes, la para a primeira guerra mundial ela estava viva, dizem que um grupo de americanos se instalaram aqui buscando espalhar sua influência e dominaram essa cidade, vivíamos normalmente, mas ela descobriu o que eles faziam por trás dos panos, eliminando todo e qualquer pessoa que tentasse mostrar que só estavam aqui para nos explorar, então Roseira das Cruzes se levantou com seu pequeno grupo e lutou, pena que não viveu muito, um tiro a deixou incapacitada durante uma de suas investidas, com isso foi pega e, nessa mesma praça, foi morta, seus olhos e bocas costurados por ver de mais e falar de mais, como último pedido, que a deixaram escrever, óbvio, foram rosas, que abraçou como se sua vida dependesse daquilo e assim ela levou um tiro na cabeça… uma história triste.
— Então ela foi mártir para que a cidade se livrasse deles? Bonito. — Respondi olhando a estátua com um sorriso. — Bom, era só isso, desculpe incomodar, já vou indo.
O rapaz me respondeu com alguma fala simpática que eu não prestei atenção e apenas acenei a cabeça com um sorriso. Voltei para o carro e não demorei muito para partir na direção que me foi dada, pensei que seria mais complicado encontrar a tal hospedaria, eu até tinha passado por ela, apenas a placa que não é perceptível já que está meio escondida por uma moita que estranhamente não retiraram.
Parei o carro em algum lugar propício a estacionar, peguei minhas poucas malas, que consistiam basicamente de uma mochila com algumas mudas de roupa e itens de higiene e outra de equipamentos, fui até sua porta, que estava aberta, e entrei vendo um garoto de aproximadamente treze anos, sua pele era mais escura e tinha cabelos lisos que caiam um pouco sobre o rosto abaixado que olhava para o celular sobre o pequeno balcão.
— Boa tarde, eu queria me hospedar aqui… — Falei um tanto desconcertado, sem saber se deveria tratar com um rapaz tão novo.
— Se hospedar? Oh! — O garoto lentamente direcionou o olhar para mim e pareceu surpreso quando meu viu. — VÓ!
O garoto gritou se virando a uma das portas e correndo até o cômodo. De lá saiu uma voz que dava bronca provavelmente no garoto e acompanhado uma mulher negra de aproximadamente um metro e sessenta, provavelmente tinha seus cinquenta e tantos anos, cabelos negros com alguns fios já platinados pela idade, cobertos por um pano colorido, ela exitou ao me ver, mas sorriu, era um largo sorriso genuino de compaixão, apesar da obvia vergonha do jeito do neto. Olhei para ela levantando suavemente minha sobrancelha esquerda, mas logo sorri.
— Desculpe-me pela atitude do meu neto, muito raro ver visitantes na cidade — Ela riu simpaticamente. —, ele é muito envergonhado, me chamo Ivanir Flores.
— Um prazer, dona Flores. Sou Lucas Ferreira.
— Veio a cidade de visita, rapaz? — Ela falou animada abrindo um grande livro um tanto empoeirado.
— Não, não, trabalho. Sou detetive, vim investigar…
— A mocinha desaparecida, né? — Ela falou com certo pesar. — Eu não conhecia ela, mas as fotos no jornal… ela parecia tão feliz, tão pura… — A mulher parecia agora perdida em seus pensamentos, com um olhar triste.
— Não fique assim, sei que é triste, mas farei questão de ir atrás de quem fez isso…
— Deus o proteja nessa sua missão… bom, vamos mudar de assunto, vamos fazer seu check-in, meu neto que ensinou essa palavra. — Ela riu tentando abafar aquele clima tenso, ri junto dela e me aproximei do balcão.
Não demorou muito, ela mostrou meu quarto que me recebeu com uma brisa suave do mar, sai para a pequena varanda e observei a praia onde alguns jovens brincavam, já fazia anos que eu não tinha coragem de ir em um lugar desses… voltei para dentro me distanciando desses pensamentos, o quarto era pequeno, mas aconchegante. Como não pretendia ficar por muito tempo não desfiz as malas, peguei meu coldre axilar ajeitando ele sobre minha camisa e coloquei meu casaco por cima, peguei minha velha 9mm, chequei se estava municiada, agarrei dois pentes extras, peguei também minha pequena caderneta, minha camêra e desci até a cozinha vendo a senhora Flores, que tinha me dado a liberdade de ir lá falar com ela, perguntei onde ficaria a delegacia local e ela me indicou com facilidade o caminho. Finalmente começaria meu trabalho de verdade. Chegando la fui até a recepcionista que me cumprimentou com um olhar de estranheza, apresentei meu distintivo e expliquei a situação, ela me disse que havia sido informada que eu viria e já me dirigiu ao delegado. Entrei na sala do homem, era pequena, um pequeno gabinete de metal no canto dela, uma mesa de madeira no centro e um vaso de plantas para manter o ambiente mais bonito.
— Então você é o Detetive Lucas? — O homem careca olhou para mim desconfortavelmente, possuía a pele bronzeada e uma bela barba negra. — Delegado Alberto Torres, me chame apenas de Torres, espero que você se mostre tão bom quanto Ricardo disse ser, venha, deixe seu carro ai, lhe levarei ao IML onde poderemos ver o corpo. — Assenti e segui o homem para fora, não tinha outra escolha. — Você foi chamado porque nossos detetives… tiveram problemas, podemos dizer assim, de um dia para o outro se negaram a continuar o caso, eles insistiram que o assassinato não era nada de mais e não conseguiriamos resolver, mas…
— Sua intuição diz outra coisa? — Sorri para o homem o olhando por cima do carro, ele sorriu confirmando minha suspeita e adentramos o veículo. — Sei que um assassinato não ser investigado é impossivel, mas está me dizendo que mais de um de seus homens falaram para arquivar e você não quer… algo pessoal?
— Quando se vive numa cidade pequena todo crime é pessoal, garoto… ela era Carla Fernandes Rocha, filha de um borracheiro, uma garota comum, estudava na escola Comandante Marcelo Ferreira, último ano inclusive…
— Tentando me comover? Desculpa, não vai funcionar…
— Não, detetive, apenas falando, quando você ver o estado dela você vai entender por que estou falando isso.
Ele se manteve quieto até chegarmos no IML, quando estávamos lá fiquei ao seu lado ouvindo ele cuidar das burocracias pra ver o corpo até que finalmente nos foi liberado, entramos na sala fria, o médico legista me encarou com certa surpresa, mas logo se normalizou, colocamos luvas e trouxeram o saco preto para aquela mesa de metal, quando o abriram… é até difícil de dizer... cabeça solta do corpo, olhos e bocas com marcas de costura, seus peitos tinham marcas de abusos assim como as pernas e regiões pélvicas, não só isso, entre seus peitos havia um grande corte, não igual da necropsia, mas sim feito antes disso, em seu estômago um estranho símbolo marcado como uma cicatriz, era um círculo e em cima dele três linhas onduladas subiam, olhei aquilo um pouco confuso, tirei fotos do corpo da garota e principalmente daquele símbolo estranho..
— Um crime muito violento pra uma garota comum… nunca vi um símbolo como esse... — Apontei para a barriga dela. — Algo local? — Questionei olhando para o delegado.
— Eu lhe disse que você entenderia, mas não, nunca vi esse símbolo também, isso que me chamou a atenção e além dela nada mais foi encontrado…
— Bom, gostaria de atualizar inclusive — O médico-legista iniciou. —, acredito que os detetives não contaram, mas dentro da boca da garota foi encontrada uma rosa e no seu caule foi encontrado um papel enrolado…
— Ah! — Exclamei como se tivesse chegado a uma solução. — Já sabemos por onde começar, isso com certeza tem ligação com quem nomeia essa cidade, ou seja, precisamos descobrir quem foi tirado do poder pela milícia de Roseira das Cruzes, isso pode ser algum descendente meio louco tentando se vingar contra a cidade.
— Você pode estar certo. — Ele me olhou, agora mais impressionado. — Pedirei para minha equipe pesquisar isso. Agora, doutor, pode por favor mostrar esse papel?
O médico acenou positivamente com a cabeça e foi até um pequeno gabinete pegando um pequeno saco plástico onde se encontrava a rosa e o papel já desenrolado, peguei aquela estranha evidência e a abri, a rosa parecia comum, apesar de sua bela coloração vermelha que eu não sabia ser o sangue ou da própria flor, peguei o papel no fundo daquele saquinho e o abri, estava com algumas manchas de sangue, mas no geral seria possível de ler, mas, como eu mesmo disse seria, se ele não estivesse escrito em alguma língua que eu desconheço, coloquei tudo de volta em seu lugar e cocei minha cabeça pensando em uma solução.
— É, eu sei — Falou o médico. —, língua desconhecida, eu questionei para alguns amigos se eles conheciam, mas nada, lembra arabe, mas não é…
— Então uma língua desconhecida? Obrigado doutor, eu vou levar isso comigo. Talvez algumas pesquisas esclareçam minha mente. Acho que isso é tudo, pode me levar de volta a delegacia, Torres?
— Claro, vamos.
Saímos do local e entramos no carro, passei o tempo todo olhando aquela escrita estranha, eu não sabia o que significava, mas não era a primeira vez que tinha visto ela. A dois anos atrás aconteceram sete homicídios nas redondezas da Rua Augusta, muito famosa por sua prostituição. Todos os mortos eram prostitutas, coincidentemente ou não, também eram travestis, não foi uma investigação demorada, encontramos um suspeito, era um morador da região, diziam que ele contratava as prostitutas e elas não voltavam mais, pensávamos que era seu jeito de “limpar as ruas”, já vimos casos parecidos, mas quando entramos na casa dele… ah… peço a Deus todos os dias para esquecer aquilo, a casa cheirava a morte, o homem estava nu fazendo algum tipo de ritual, tinha simbolos estranhos no corpo, nas paredes, escrito com sangue estavam letras parecidas com a nesse papel, quando as imagens foram a público não demorou muito para aparecem supostas traduções, mas uma me chamou a atenção, era um vídeo de um homem de aparentemente sessenta anos, ou até mais, foi enviado diretamente a mim antes de sair para o público, ele mesmo disse que a tradução é imprecisa e  precisava de ajustes para nossa língua, ele me ensinou como as pronunciavam, me deu as provas da onde ele tirou isso e me deu uma tradução “Glória a cabra negra dos bosques, que sua fertilidade preencha as terras e suas crias dominem o cosmos.” como ele mesmo disse, a tradução precisou de muitas adaptações, mas isso foi a melhor tradução, esse homem era José Gabriel Cunha, doutor em arqueologia, formado em linguística e teologia, tinha diversas pesquisas em línguas e religiões ocultas, sua vida era dedicada a isso, como poderia suspeitar dele? Por isso eu estaria enviando isso a ele, buscando pelo menos uma luz no fim do túnel.
Passei tanto tempo com minha mente focada naquele pedaço de papel que mal percebi já estava na delegacia, sai do carro e antes de me despedir do delegado pedi seu número para poder entrar em contato caso necessário, trocamos nossos números e me enfiei no meu carro saindo o mais rápido possível para a hospedaria, chegando la o lugar parecia vazio, ouvi algumas vozes vindo de outro cômodo que deveria ser como uma sala de estar, peguei meu celular vendo que já eram por volta das cinco da tarde e eu não havia almoçado, depois de eu resolver o que eu teria que fazer aqui eu como, fui ao quarto e peguei meu notebook, tirei uma foto do papel e mandei um email para o Doutor Gabriel junto da foto que tirei daquele símbolo .
“Ola doutor, peço desculpas por incomodá-lo, mas em uma nova investigação encontrei a escrita em anexo, me parece muito com o que você tinha decifrado para mim a dois anos atrás, poderia pelo menos dar uma olhada rápida? Não precisa ter pressa, sei que seu tempo é precioso. Junto disso, poderia me dizer se já viu esse simbolo estranho?”
Bom, talvez seja o suficiente, espero que não demore para ver nem para responder.
Saí e fui até uma padaria e restaurante mais para o centro da cidade, quando vi o relógio já eram mais que seis da noite, bom, hora de jantar, ri sozinho e pedi um prato, meu favorito, bife, posso dizer que é um dos melhores que já comi, recebi alguns olhares desconfiados, talvez amedrontados ou até enojados, não sei dizer, é o comum mas isso não importa, ainda tenho uma investigação, como vou prosseguir se ainda não me enviaram os nomes? Pensei enquanto comia e uma lâmpada se acendeu na minha cabeça, o pai da garota, óbvio, mandei mensagem para o delegado pedindo o nome do homem, onde morava e trabalhava, não demorou mais que dez minutos para receber as informações, coloquei o endereço no meu GPS, terminei de comer, comprei uma latinha de energético favorito e então fui para o endereço indicado, ficava ali pelo centro mesmo e não demorou para encontrá-lo, era uma garagem utilizada como borracharia e ao lado uma pequena entrada para uma casa, bati palmas nessa pequena entrada e chamei pelo nome do pai da garota. Não demorou muito para um homem moreno aparecer, seu rosto possuía algumas marcas de expressão formadas pela idade, tinha um farto bigode grande maioria platinado pela idade, apenas alguns fios pretos se salvavam ali, seu cabelo, de coloração igual, era bem curto, provavelmente tinha entre seus quarenta e cinquenta anos, primeiramente me olhou com um olhar confuso e levemente assustado, até que levantei meu distintivo e seus olhos brilharam esperançosos.
— É o senhor Sérgio Rocha? Sou o detetive Lucas Ferreira, eu estou tentando solucionar o caso de sua filha, se importaria que eu entrasse e fizesse algumas perguntas?
— Sem problemas rapaz. — Ele se aproximou do portão me fazendo perceber que ele era um pouco menor que eu, algo como um e setenta e dois, era um homem saudável, talvez mais em forma do que eu, com certeza aquele homem tinha passado boa parte de sua vida no interior. — Eu sei que veio perguntar sobre o caso, mas vocês avançaram em algo? — Ele questionou enquanto me guiava pelo corredor que levava para sua casa, virou para mim revelando seus olhos marejado.
— Desculpe senhor, eu acabei de chegar na cidade, mas prometo que resolverei o mais rápido possível, prometo com minha vida. — Sorri buscando reconforta-lo e entramos na casa, um rapaz de aproximadamente vinte anos brincava com seu irmão mais novo de aparentemente uns doze anos tentando animar ele que não parecia ligar muito. Ambos olharam para mim me estranhando um pouco, respondi com um sorriso, o mais novo pareceu meio assustado, mas o irmão mais velho voltou a distrair ele.
— Quem era, Sérgio? — Questionou a dona da voz que adentrou a sala e me viu parando um pouco confusa. Seus olhos me mediram com suspeita.
— Detetive Lucas Ferreira, apenas vim fazer algumas perguntas para seu marido e, se não houver nenhum problema, para a senhora também.
— Certo, sem problema nenhum. — Seu olhar parecia um pouco triste, eu sei como ela se sente, mas eu não vou deixar tudo isso acontecer sem fazer nada.
O homem me guiou para os fundos da casa onde tinha uma mesa de madeira um pouco velha e algumas cadeiras, o lugar era até grande, tinha algumas áreas de terras e vasos com plantas como temperos e coisas parecidas.
Peguei minha câmera e armei um pequeno tripé apontando para o homem.
— Algum problema se eu gravar? É apenas para repassar e anotar coisas mais minuciosas.
— Fique a vontade, sei que é tudo pra conseguir solucionar o caso.
— Aprecio o seu jeito, senhor Sérgio. — Ele sorriu fraco para mim, respirei fundo, peguei minha caderneta e uma caneta, anotei o nome do homem e a data de hoje. — Certo, vamos com o mais simples, quando ela desapareceu? Qual a ultima vez que teve contato?
— Faz uma semana então… quarta passada, dia treze. Nesse dia ela ia pra festa de uma amiguinha dela, a Lídia, as nove ela mandou mensagem, disse que ia demorar um pouco, depois disso ela desapareceu.
Anotei em meu caderno “Dia treze de junho. Festa da Lídia. Último contato: 21 hrs” olhei para o rosto do homem com calma e prossegui.
— Você conhece alguém que iria querer fazer mal para você ou para sua família? Ou até mesmo para a senhorita Carla?
— Não, não teria por que, somos tão reservados, evitamos incomodar os outros, também tenho uma das poucas borracharias da cidade, não tenho por que brigar com pessoas que podem ser clientes.
— Bom, faz sentido. — Anoto que ele desconheça qualquer inimigo deles. — Você tinha falado de uma amiga da Carla, Lídia, certo? Você conhecia ela? Poderia me passar algum contato? Talvez ela tenha mais informações.
— Sim, eu conheço, são amigas de infância, éramos vizinhos antigamente, mas as duas estudavam na mesma escola. 
Fiz minhas últimas anotações e sorri para o homem dizendo que era só isso, perguntei se ele poderia chamar sua esposa, ele assentiu e saiu, logo ela veio, fiz as mesmas perguntas e a mulher desmanchou em lágrimas, foi um pouco mais difícil de compreender suas respostas, mas além disso, nada de novo, terminei as perguntas e seu marido veio consolar ela, o homem me entregou um pequeno pedaço de papel com um endereço escrito “Lídia” em cima, anunciei minha partida e ele chamou seu filho mais velho, Pedro, pedindo que ele me guiasse, saímos e no portão, antes que pudesse ir embora senti uma mão segurar meu braço, olhei lentamente para o rapaz que estava com uma feição ligeiramente triste.
— O que foi, rapaz? — Perguntei preocupado.
— Ela estava ficando escondida com um garoto, Pietro Rodrigues, minha irmã tinha deixado isso comigo. — Pegou um post-it com um endereço e me entregou. — Era pra se ela fosse pra casa dele eu ir buscar no lugar do pai, pra ninguém descobrir.
— Pietro… — Olhei para o papel e sorri, eu e minha irmã fazíamos a mesma coisa, até que meu pai descobriu e bateu nos dois, a gente ria muito disso… bom, não é momento para ficar lembrando do passado. — Ele estava na festa? Aliás, a festa é pelo menos real?
— Sim, a festa era real, mas ele estava lá… talvez ele saiba de algo.
Balancei a cabeça positivamente e me despedi do garoto olhando aquele post-it entrei no meu carro e parti para o endereço de Lídia, parei em um farol vermelho e vi uma mensagem no celular, era de Torres e dizia “Lucas, fiz minhas pesquisas e, apesar de encontrar os nomes que pediu, nenhum descendente ficou por aqui, ou foram mortos ou foram embora da cidade, perdão por não poder ajudar.” não respondi, pois tinha que seguir meu caminho, mas aquilo me deixou mais estranhado, o que significaria então as costuras? Minha mente já estava muito confusa, passei alguns minutos ainda dirigindo, mas cheguei na casa da Lídia, estacionei em frente e toquei a campainha, uma mulher veio em minha direção, cabelos longos e loiros, olhos azuis e pele branca, ela estava com um avental, tinha algumas marcas de expressão, provavelmente seus trinta a quarenta anos, ela me olhava com certo pesar, mas forçou um sorriso animado.
— Boa noite. Sou o detetive Lucas Ferreira, gostaria de falar com Lídia, ela era amiga de uma garota que foi assassinada, senhorita Carla e eu gostaria de fazer algumas perguntas.
— Minha filha foi em um acampamento com o namorado dela e alguns amigos hoje de manhã, provavelmente só voltam amanhã, me desculpe, detetive.
— Acampamento? Sabe onde ela foi?
— Sim, é no final do Caminho das Roseiras, é uma trilha que tem por aqui, no final dela tem um lago que os jovens gostar de acampar.
Franzi minhas sobrancelhas, terceiro ano do colegial num acampamento com os amigos… bom, eu sou detetive, não estou aqui pra dar pitaco na criação dos filhos de ninguém, mas além dessa liberalidade dela me incomodar, outra coisa me incomoda, uma amiga de infância saindo pra uma festa com os amigos dois dias após a morte confirmada da amiga? Eu sinto que tenho, pelo menos, um cúmplice na mira.
— Poderia me passar seu contato? Só para se eu precisar de alguma informação extra.
— Claro sem problemas. — Peguei meu celular e anotei o numero da mulher que, inclusive se apresentou apenas agora, como dona Ana.
— Muito obrigado, tenha uma ótima noite, senhorita Ana.
Sorri para a mulher e sai um pouco decepcionado, só me restou uma pessoa, Pietro, não perdi tempo e fui a casa dele que não era longe, parei meu carro em frente e toquei a campainha, após tocar mais duas vezes a figura que havia encontrado no parque anteriormente veio ao meu encontro com um sorriso confuso.
— Eu sou o detetive Lucas Ferreira, gostaria de falar com Pietro Rodrigues. — Mostrei meu distintivo a ele.
— Eu mesmo, fiz algo de errado? — Ele questionou rindo enquanto abria o portão.
— Não, não, vim falar sobre a senhorita Carla. — Senti que os olhos do rapaz iriam pular para fora, um tanto quanto suspeito, mas não acho que ele tenha feito algo, a surpresa é só que foi caguetado da relação por alguém.
— Por favor, entre… como descobriu da minha relação com ela? — Eu não falei? Sorri para o garoto e balancei a cabeça negativamente.
— O irmão dela, mas não se preocupe, nada sairá daqui, só quero fazer algumas perguntas, eu vou gravar, apenas pra fazer uma análise profunda, mas nada de mais.
— Hm… — O garoto pareceu relutante, caminhou para dentro me guiando pela casa aparentemente pensando sobre o assunto. — Ok, certo, não acho que será um problema. 
— Está sozinho? — Perguntei confuso.
— Moro sozinho.
Olhei para o garoto de maneira confusa, ele se sentou em um sofá, peguei minha câmera e montei apontada para ele. Ele parecia jovem, da idade da senhorita Carla, mas já morava sozinho?
— Certo, vamos para as perguntas básicas, quantos anos têm?
— Vinte e um anos.
— Bom, você aparentemente gosta de garotas mais novas. — Sorri por fora anotando seu nome e idade, mas estava preocupado por dentro, o garoto não mostrou reação de tristeza e ainda é bem mais velho que ela… por que estou farejando problema? — Então, trabalha do que?
— Sou dono de uma pequena livraria aqui, mas recebo uma pequena ajuda dos meus pais que moram na capital.
— Qual era sua relação com Carla?
— Estávamos saindo, quase namorando. — Ele falou tão despreocupadamente, talvez ele não seja envolvido, mas tenho uma pulga atrás da orelha, como pode alguém que está quase namorando não demonstrar reação a morte? 
— Como se conheceram?
— Lídia me apresentou ela.
— O que você estava fazendo no dia do desaparecimento?
— Bem… — “Bem…”? Todas as respostas foram bem diretas até aqui, por que essa troca de compasso agora? Talvez eu esteja caçando pelo em ovo, mas já vi isso outras vezes. — Estava na festa da Lídia com ela.
— E depois? — Questionei tendo como resposta alguns segundo de silêncio.
— Desculpe, é que… acabamos brigando na hora de ir embora… não queria que parecesse um chorão, mas… a culpa é minha… — Ele falou em prantos, era um choro alto e até escandaloso, talvez ele seja só do tipo que gosta de fingir de durão, imagina quanto tempo ele está segurando isso… eu tenho dó deste rapaz. Mantive meu profissionalismo sem esboçar muita reação. — Eu deixei ela voltar sozinha… ela deve ter sido sequestrada na volta.
Olhei para o rapaz e desliguei a câmera sentando ao seu lado passando a mão em suas costas.
— Desculpa, eu acho que forcei demais, rapaz, acho que já está bom de pergunta né? Vamos, lave esse rosto e tome uma água. Não se culpe, você não poderia ter impedido algo assim.
Fiquei mais alguns minutos conversando calmamente com o rapaz até ele retomar sua consciência, me arrumei e parti, era melhor não incomodar mais ele, já estava ficando tarde e ele não parecia muito bem, me desculpei mais uma vez pelas perguntas e sai dali, estava me sentindo meio mal, não era meu objetivo fazer aquilo com o rapaz. Peguei meu cigarro e vi estar fumando o último do maço, basicamente dois maços em um dia… Deus deve me amar muito pra não ter me levado por um câncer de pulmão. Rumei de volta para a hospedaria, já eram quase sete e meia, chegando lá dona Flores se aproximou de mim com um olhar preocupado.
— Senhor Lucas, você não apareceu o dia inteiro, você não está com fome? Eu sempre faço janta pros hóspedes mas...
— Agradeço a preocupação, Dona Flores, eu comi no centro, mas não precisa se preocupar comigo, eu passo noventa por cento do meu dia focado no trabalho, então eu como em algum restaurante.
A mulher sorriu simpaticamente, era por conta disso que trabalhava, quero que as pessoas possam ser felizes desse jeito sempre, o mundo é ruim, sim, todos os dias eu vejo assassinatos, roubos, pessoas em condições sub-humanas… mas meu trabalho faz as pessoas pelo menos viverem menos pior do que vivem… 
— Não se afogue muito no trabalho, tem que aproveitar a vida também, você é jovem, garoto.
— Jovem? — Ri ouvindo essa palavra. Não costumam me chamar assim. — Tenho quarenta e dois anos, dona Flores, posso não ser velho, mas jovem já é um elogio incabível.
— Ah! Não diga isso, ainda há muito o que viver. Digo por mim mesmo, tenho quase sessenta anos e continuo vivendo como se tivesse vinte. — Ela riu de maneira simpatica.
— Você parece bem mais nova do que é, até me anima falando assim, dona Flores. — Ri junto da mulher. — Bom, eu vou ir pro meu quarto porque tenho coisa pra arrumar ainda. — Sorri simpaticamente e recebi o mesmo como resposta.
Subi para meu quarto e descarreguei os vídeos da câmera no notebook, fui assistindo eles calmamente, voltando sempre que necessário e anotando tudo possível, algo me chamou atenção, bem de longe, alguns segundos antes de Pietro começar seu estardalhaço, foi possível escutar um gemido estranho… talvez seja alguma captação da rua, mas realmente fez minha mente ficar mais atenta, um choro tão escandaloso repentinamente… bom, como nada de mais precisava a ser visto, coloquei minha playlist mais uma vez, comecei a olhar alguns emails e mexer em outras coisas, mandei uma mensagem para a mãe de Lídia, pois tinha lembrado que não perguntei o nome do namorado da garota e precisava dessa informação, por fim percebi ter recebido uma resposta a alguns minutos atrás do professor Gabriel.
“Ola senhor Lucas, algum tempo que não nos falamos, não? Bom, demorei para responder por conta desse símbolo, minhas pesquisas mostram sua aparição por muitas épocas, mas não têm nenhum significado concreto, muitas das referências dizem que é um símbolo das crianças de um grande deus dos mares, outras dizem ser das crias de um deus estelar, realmente não sei, já a tradução do papel ficou ‘No caminho das roseiras cresço e lá permaneço, rastejando pelas águas alimentado pelos meus amados’ não sei se tem alguma ligação com o símbolo, mas espero que essa tradução tenha lhe ajudado.”
Terminei de ler um tanto quanto travado, coloquei meu coldre axilar mais uma vez, peguei a arma, dois pentes extras e coloquei meu casaco, já eram mais de dez horas, mas tinha que correr, não sei exatamente o que estava acontecendo, mas com certeza algo estava acontecendo. Entrei no meu carro e saí em disparada da onde seria a entrada dessa trilha, apesar da certa demora consegui a encontrar, uma placa rústica, mas chamativa marcava o inicio do local, peguei minha lanterna, botei minha arma em mãos e corri para dentro, alguns minutos de corrida e cheguei ao seu final, claro que não pude me conter de contemplar aquela bela vista, era um lago com árvores floridas sobre ele, apesar de escuro ele não perdia o tom de mágico com alguns vagalumes passando por ali, olhei em volta e não vi nenhum barraca, gritei pela Lídia algumas vezes e não ouvi resposta… cadê essa garota? Não faz sentido, era pra ela estar aqui.
Estava concentrado, mas um som me chamou a atenção, primeiro pensei ser alguém se aproximando, mas percebi que era algo estranho, me escondi entre as árvores e vi, saindo daquele lago um ser meio homem meio peixe, minha mente não podia conceber aquilo, como era possível? Enquanto estava na minha loucura eu percebi seus grandes olhos me encarando diretamente, levantei minha arma com calma e quando ele deu o primeiro passo não poupei munição, disparei quase dez vezes contra ele… quando finalmente o vi cair me aproximei mais alguns metros buscando entender, vi algumas tremulações incomuns na água e preferi não ficar para descobrir o que era, corri em desespero de volta pra meu carro e, apesar de minha mente estar em surto, precisei agir assim mesmo, acelerei o carro cantando pneu e voltei para a hospedaria o mais rápido que pude, corri para meu quarto e nem troquei de roupa ou tirei meu coldre, apenas coloquei a arma na cabeceira para poder deitar na cama e chorar, eu não sei o que deu em mim, mas eu quis chorar, passei alguns minutos encolhido na cama chorando, senti minha cabeça prestes a explodir, fui ao banheiro e a dor era tão forte que vomitei.
— Está tudo bem? — Dona Flores questionou batendo na porta.
— Sim. — Falei me levantando, saindo da beira da privada para lavar minha boca. — Acho que eu comi algo que me fez mal.
— Ouvi você saindo a quase uma hora atrás, ta tudo bem mesmo, né?
— Sim, está, só recebi uma mensagem e fui buscar uma papelada urgente. — Ri um pouco baixo tentando acalmar ela. — Meu trabalho é movimentado, sabe como é, agora pode voltar a dormir, já to melhor.
— Tudo bem, Lucas, mas se precisar de algo é só me chamar.
Ouvi seus passos se afastarem e lavei minha boca e rosto, me levantei encarando o espelho quem que me saudava com um olhar de nojo. Pude ver aquela figura desfigurada que sou, minha orelha direita, assim como parte do meu rosto completamente queimado, meu olho direito com sua cor levemente leitosa, quase não enxergava por ele, sabia que por baixo da minha roupa se escondia aquele corpo retorcido pelas queimaduras… a muito anos atrás minha casa pegou fogo, vazamento de gás, meus pais morreram, pude ouvir os gritos deles, minha irmã conseguiu fugir, mas ainda me embrenhei para salvar meu irmão mais novo, consegui tirar ele de la, mas era muito tarde, seus pulmões colapsaram pela falta de oxigênio, depois disso minha vida apenas piorou, fomos adotados pela nossa tia, eu discutia demais com minha irmã e quando ela teve a chance se casou e nunca mais olhou no meu rosto… olhei a parte de pele ainda intacta, morena e bem cuidada, talvez se aquilo não tivesse acontecido eu não precisaria estar aqui… talvez eu pelo menos não teria que me afundar nos cigarros e prostitutas…
Caminhei pra fora daquele banheiro e me joguei na cama, senti as lágrimas caindo, mas apenas desmaiei de cansaço, tive um sonho estranho, estava debaixo da água, sentia que estava a quilometros e quilometros de baixo do mar, uma voz falava comigo, eu não compreendia, nem tinha certeza se era uma voz, mas me chamava, cantava as melhores canções, fazia os melhores discursos e ditava os melhores poemas, mas ao mesmo tempo, não dizia nada, eram frases chamativas, mas também eram apenas sons desconexos, quando vi estava em uma cidade afundada, ao longe tinha como uma grande porta e dela vinha aquela voz, quando me aproximei pude ouvir um grito, um grito ensurdecedor, apesar de no fundo do mar estava calor e o grito ficava mais alto, era um grito de dor, acordei no desespero e vi a casa em chamas, uma nuvem de fumaça negra cobria o local e os gritos… não… 
Agarrei minha mochila de equipamentos e minha arma, corri até o quarto da senhora Flores e vi ela ali no chão, gritando por socorro, a porta estava aberta, mas barrada por um pedaço do teto que havia caído, na frente da porta o seu neto chorando e gritando pela vó, eu encarei aquilo… de novo, eu estava destinado a matar todos que mereciam o bem… o sorriso da velha senhora Flores estava tatuado nas minhas retinas,mas agora seria sobreposto por essa cena, apesar de conhecer ela por um dia… não tenho tempo pra devaneios, agarrei o garoto e segurei seu rosto contra meu corpo. Mesmo que eu tentasse salvar ela eu e o garoto morreríamos no processo e seu eu conseguisse ela provavelmente não teria chance de sair viva, apenas sofreria numa cama até sua morte, fiz o sinal da cruz.
— Não chore, vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem, prenda a respiração e afunde seu rosto contra mim.
O garoto respondeu com lágrimas e tossiu algumas vezes, vi que ele não compreendia a situação, então prendi ele contra meu corpo, tudo estava em chamas, não havia sido um acidente, foi criminoso, era fácil perceber que eu mexi num vespeiro, talvez aquela criatura que vi… seus irmãos vieram me buscar? Não importava, estava tentando sair vivo dali, desci aquelas escadas frágeis, um dos degraus quebrou sob meu pé, me fazendo afundar ali, senti minha pele rasgar contra a madeira, mas não me importei, segui ferozmente, alguns pedaços do andar de cima haviam despencado, segurei o garoto e empurrei os restos em chamas para os lados, senti minhas mãos queimarem, mas não me importei, finalmente cheguei a porta que abri com um chute, sai vendo as pessoas que olhavam a cena estarrecidos, caminhei mais a frente e respirei aquele ar puro tossindo algumas vezes.
— Chamem uma ambulância… o garoto precisa de ajuda. — Algumas tosses me interromperam, me sentei ali no local checando se o garoto estava bem, tinha desmaiado por inalar muita fumaça, mas eu não demorei tanto, tenho certeza que ele pode sair dessa.
Senti meu celular vibrar no meu bolso e vi a mensagem da mãe de Lídia “O nome do namorado dela? Pietro Rodrigues.” um calafrio subiu pela minha espinha e meu corpo ficou gelado, finalmente tudo fez sentido… nada tinha a ver com Santa Roseira das Cruzes, Carla descobriu os planos de Pietro, sejam eles qual forem, olhos e boca costurados por ver de mais e falar de mais, era uma mensagem para todos, quem falasse algo seria morto… perdi minha atenção com a sirene da ambulância, uma levou o garoto pro hospital, passei meu contato como responsável, já que aparentemente o único estava morto.
Me levantei e fui até meu carro que, por sorte, não foi queimado, apenas o antigo carro daquela senhora foi pego, mas quando me dirigia a ele um enfermeiro me parou.
— Senhor, você inalou muita fumaça, precisa ir pro hospital. — O homem falou com um olhar preocupado.
— Eu estou bem, tenho algo importante a fazer. — Ele segurou meu pulso com força e apenas abri a jaqueta um pouco revelando minha arma e distintivo. — Me solte, por favor, tenho coisas a fazer.
O homem me olhou assustado, aparentemente reparando além de minha arma minhas cicatrizes de queimadura também, deu dois passos para trás e então finalmente entrei no carro, coloquei a mochila no banco ao lado e parti para a casa do meu alvo, no caminho recebi uma ligação de Torres.
— Para onde está indo, por que não foi pro hospital?
— Sem tempo, Torres. — Falei numa voz meio rouca entre algumas tosses sentindo a leve dor no meu pulmão. — Vai no hospital e cuida do garoto da dona Flores até eu voltar, por favor.
— Eu acabei de chegar e vi você saindo, se você está indo atrás de alguém… não vai fazer… — Desliguei o celular, apenas mais um delegado querendo me impedir de fazer o certo, nesse momento preciso impedir um sequestrador de matar mais uma garota.
Não demorou até chegar na porta do rapaz, na minha mente seu choro passava em looping, um ator realmente bom, mas não vai mais me enganar. Fui até aquele portão e sorri fraco, ainda sentindo a dor de respirar, não seria a primeira vez que abriria um desses, fui até o carro e senti minha perna machucada enfraquecer, abri o porta mala e peguei minha caixa de ferramentas, lá procurei uma das minhas maiores chaves de fenda e um martelo, coloquei contra o encontro do portão com a grande e forcei um pouco com o martelo até ouvir o portão se abrir. Guardei tudo de volta no carro e empunhei minha arma entrando na casa, parecia vazia então comecei a revirar o lugar até descobrir onde estava aquele garoto, após alguns minutos encontrei bem disfarçado junto do piso um alçapão, não demorei muito em abri-lo, era uma escada vertical, apenas uma luz fraca iluminava o fundo, desci me escondendo entre algumas caixas que tinham no local fiquei observando a cena. Amarrada de joelhos estava uma garota loira e de olhos azuis completamente nua, em sua barriga foi marcado com ferro quente aquele símbolo estranho, em frente dela haviam quatro seres encapuzados e ao seu lado uma mulher também encapuzada, todos falavam uma língua estranha que eu não podia compreender.
— Hoje eles nasceram finalmente. — Gritou a mulher ao lado de Lídia interrompendo os outros. — E a menina será o alimento, as grandes Crias de Cthulhu virão aqui e nos ensinarão como libertar o grande sacerdote, para só assim… os antigos nos agraciarem com a liberdade.
A mulher tirou sua roupa, seu corpo possuía várias marcas diferentes como aquele homem que matava as prostitutas a dois anos atrás. Ela se prendeu a parede por correntes e os seres encapuzados começaram um cântico frenético, eu estava paralisado olhando aquilo e então o estômago da mulher começou a mexer de forma estranha, ela gritava de dor, de sua boca vi escapar algo que parecia um grande tentáculo negro que rompeu seu maxilar e meu corpo reagiu sozinho, disparei duas vezes contra um dos homens de costas para mim que caiu de frente, com isso todos pararam e aquele tentaculo se contraiu de volta para dentro da mulher.
— DETETIVE? Estou feliz com sua visita. — Pietro falou com uma voz esganiçada. — Veio assistir as Crias de Cthulhu renascerem?
— Não Pietro, vim acabar com essa loucura, devolvam a garota e não resistam talvez assim vocês saiam com vida.
— Não detetive… apenas não… você não entende. 
Ele começou a cantar mais uma vez naquela língua e todos o acompanharam, vi um tentáculo romper a barriga daquela mulher espalhando o sangue para o rosto da garota ajoelhada que agora chorava, aquele tentáculo se esticou agarrando o pescoço dela, em minha mente passava mil coisas, minha perna mais uma vez cedeu a dor e perdi o equilíbrio, senti uma forte dor no pulmão, mas segurei a arma com firmeza e sem hesitar disparei contra aqueles seres encapuzados e a mulher no altar, vi aquele tentáculo se contorcer de dor e um grito infernal sair da mulher morta e então ele sumiu em minha frente soltando a pobre garota, fui até a menina e soltei as cordas que a prendiam a entregando meu casaco.
— Detetive Lucas, venha comigo.
Saímos daquele lugar, minha cabeça doía e senti ânsia de vômito mais uma vez, me segurei e fomos até meu carro consegui dirigir até o hospital apesar da tontura, chegar lá pareceu uma década, quando finalmente chegamos eu senti uma extrema tontura e meu corpo passou a pesar nada… eu estava debaixo do mar... aquela cidade brilhava com uma luz azul ciano, vi ao longe um peixe de tamanho humano me observar, olhei novamente para aquela grande porta e ela continuava fechada, mas eu sentia que algo batia nela, implorando para sair, seja lá o que era, gritava em desespero naquela língua que ouvia antes. O homem peixe lentamente levantou seu braço, apontando para trás de mim, me virei e a distância vi um ser de mais de quatorze metros, ele me olhava, ele parecia não gostar da minha presença e então o vi nadar em minha direção...
Abri meus olhos lentamente, estava em uma sala de hospital, vi uma mulher de roupa branca ao meu lado e olhei confuso para ela.
— Onde estou? — Questionei.
— No Hospital Santa Maria, você teve uma crise quando chegou aqui e desmaiou.
— O que? — Levantei assustado me sentando naquela cama e olhei em volta. — A garota loira e a criança da dona Flores, eles tão bem? — A mulher me olhou com um sorriso simpático e acenou positivamente com a cabeça.
— O senhor salvou aquela criança, mais alguns segundos e ele teria morrido… sobre a garota… está machucada um pouco, mas sua mente está incrivelmente perturbada, eu não sei a o que submeteram ela, mas irá precisar de algum acompanhamento psicológico.
Suspirei e acenei com a cabeça, eu sei o que vi… e se ela viu pior? Eu não sei se compreendo mais nosso mundo. Nesse mesmo dia alguns policiais vieram ao meu encontro pedindo para eu relatar o que fiz… omiti, sim, falei que teve um sacrifício, mas nunca contarei tudo o que vi, seria chamado de louco… tenho muito mais a descobrir. Terei alta do hospital daqui a alguns dias, aparentemente os pais daquele garoto morreram a algum tempo em um acidente então fiz de tudo para adotá-lo, com ajuda do delegado torres consegui… partirei dessa cidade o mais rápido possível com ele, voltaremos a grande São Paulo, longe do mar… eu não contei para ninguém, mas eu ouço todas as noites em meu sonho o chamado de dentro da porta…  cada dia está mais próximo, tão próximo que eu consigo ouvir até acordado. Toda vez que olho pela janela tenho uma bela visão da praia, mas só vejo aquela silhueta gigante me observar odiosamente… ontem ele me contou seu nome… ou talvez o vento cantarolou para mim… Dagon…
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Atualizado em: Dom 29 Nov 2020

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