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REVELAÇÃO

Não sei ao certo quando a sombra tomou conta da minha alma. Só sei dizer que foi sutil e libertador.
Aliás chamar a presença de sombra é incorreto e o faço apenas por não encontrar termo melhor. Mas isto não vem ao caso no momento.
Sempre fui uma pessoa quieta e introspectiva. Minha mãe (meu amor a ela, esteja onde estiver) sempre dizia que não dei trabalho nenhum quando bebê e que às vezes ela acordava assustada à noite, não pelo meu choro, mas pelo meu silêncio. Pulava da cama esbaforida com medo de eu ter sufocado ou coisa assim e quando chegava na beira do berço constatava aliviada que estava dormindo. Nem para mamar acordava de madrugada.
Minhas brincadeiras eram solitárias e minha mãe achava peculiar uma atitude adotada por mim frequentemente: sentava quieto em algum ponto e de olhar perdido em um ponto ficava ali cismando algum tempo, até que uma espécie de click me despertava da cartasse. Não apreciava a companhia das outras crianças, incluindo a dos meus irmãos. Não que fosse antissocial ou coisa assim. Gostava apenas de permanecer sozinho.
Aprendi a ler muito rápido e mais rápido ainda peguei gosto pelos livros, e não eram os com figuras. Parecia o menino daquela série da Warner: THE MIDLE, porém sem o costume estranho de sussurrar a última palavra que falava. Basta assistir a alguns episódios para entender do que estou falando.
Um dia em que não tinha nada pra ler, resolvi pegar o livrão de capa preta que ficava aberto numa mesma página na estante da sala pegando poeira e na hora me interessei por ele. A encadernação era fantástica. Couro e letras douradas em baixo relevo. O papel era liso e brilhante com bordas também douradas (isto só se percebia quando as páginas estavam agrupadas). E as gravuras, que espetáculo artístico. Mas quando comecei a leitura achei muito confuso e deixei pra lá.
A infância passou sem percalços e a adolescência sem menções honrosas, a não ser a minha obsessão por religião; a parte história para ser mais exato, sem beatices.
Minha família era religiosa. Íamos às reuniões uma vez por semana e participávamos de algumas confraternizações do grupo. Podia classificar-nos como praticantes, mas não fanáticos.
O primeiro contato com as palavras da Bíblia não foram empolgantes como o seu visual e atribuo a esta má impressão a minha pouca idade e imaturidade. Porém o tempo se encarregou de encaminhá-la às minhas mãos novamente e em momento mais propício.
Novamente o que li inicialmente não me empolgou, mas intrigou. E como a minha curiosidade e sede de entendimento dominavam minha vontade comecei a estudar seus textos. Estudos estes que tomavam horas do meu dia e toda a mesa da sala, já que precisava de três ou mais exemplares além dos livros de apoio como: chave bíblica, dicionário bíblico, etc. Só um detalhe não acrescentado e relevante: usava a versão católica por terem mais textos, embora tivesse um exemplar protestante também.
Quanto mais me aprofundava menos entendia a lógica da história apresentada. O Velho Testamento era uma loucura. Prostituição, fornicação, embriaguez, ira descabida, castigos desproporcionais, cultos diversos, profetas que não se uniam e um Criador tirano e que não entendia ninguém. Bela leitura para um jovem.
O Novo Testamento já trouxe mais alento, embora cada evangelista citasse as palavras e vida de Cristo à sua própria maneira. As cartas de Saulo são um capítulo à parte, pois o que seria do cristianismo sem sua militância ferrenha?
Tive várias discussões acaloradas com o líder e membros mais experientes do nosso grupo e meu pai perdeu a paciência de conversar comigo à respeito, pois não conseguia entender porque  eu complicava tanto as coisas.
Da Bíblia pulei para os fatos históricos à respeito das religiões católica, protestante e finalmente para a ortodoxa. E esta linha de estudo me agradou mais por lhe dar com fatos e não com fantasias e delírios.
Comecei a pesquisar as demais religiões e o passo natural foi meu ingresso no curso de história, depois um mestrado em antropologia e doutorado em simbologia. Passar pelas áreas de demonologia, ocultismo e exorcismo foi mais um entretenimento. Achava divertida a fantasia que as cerca. Estes assuntos foram meu SENHOR DOS ANÉIS e HARRY POTTER.
Aos poucos meu nome foi se tornando conhecido e os convites para palestras, entrevistas e debates começaram a surgir e em pouco tempo minha carreira internacional teve início.
Certa vez fui perguntado a respeito de minha religião e respondi que não professava nenhuma. Como poderia? Não confiava em algo estabelecido por uma raça tão imperfeita, ignorante, arrogante e dominadora quanto a que pertenço. A meu ver, todas as religiões (excetuando a budista, cuja filosofia é a que mais se aproxima do propósito de religar o homem ao seu eu divino) tem o mesmo sistema segregacionista (separando os que professam a mesma fé dos demais), escravagista (agrilhoando o pensamento a uma forma bitolada e limitada de ver o todo) e cruel (o domínio é exercido quase sempre pela culpa e não pela responsabilidade ou meritocracia, na qual todos já são réus e necessitados de redenção, não raro pela dor e penitência).
Embora confrontasse partidários raivosos de todas as religiões (os ocidentais eram os mais belicosos) deparei-me com várias pessoas que compartilhavam de minha visão e ideias.
Nunca fui ambicioso financeiramente falando, mas acalentava o desejo grandiloquente de criar uma instituição não religiosa que fundiria todas as religiões, as debateria e confrontaria com livre pensamento.
Aos quarenta anos meu sonho tomou forma e consegui erigir a primeira fraternidade do pensamento livre. Parece coisa de hippie, mas não havia chás, ritos, cânticos. Só a palavra e a discussão esclarecedora. E mais rápido do que pretendia minha criação cresceu e se espalhou, sendo que após sete anos de atividades intensas fui convidado a abrir a primeira casa internacional.
Como disse no início, não sei precisar o momento exato em que a sombra começou a exercer sua influência sobre mim, mas nesta época ela era mais do que atuante. Era palpável. Uma presença quase física e constante em meu período de vigília ou de sono.
Não sei precisar o início de sua manifestação, mas posso dizer o dia e a hora em que ela fez a revelação que mudaria a condução da instituição criada por mim e consequentemente dos meus seguidores.
Foi em um dia claro e fresco, às dez da manhã de um domingo de março quando descansava preguiçosamente na rede em minha varanda. Ela se achegou a mim e disse:
“É hora de tomar rumo novo e conduzir esta raça ignorante à verdadeira iluminação. O cenário mundial está propício e foi previamente preparado para tal. Você derrubará as religiões e mostrará à humanidade o caminho a seguir.
Seja o algoz e salvador que esta raça incrédula e impura precisa.
Consolide seu lugar na história e apresente-nos finalmente a eles.
Basta aceitar ser o receptáculo da estrela da manhã, pois seu lugar no reino de fogo que está por vir já se encontra reservado e à sua espera. O banquete será servido e ocupará o assento de honra.
Seja bem-vindo, emissário da boa nova!
Legião o saúda.”
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Atualizado em: Qui 19 Jan 2017

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